Os erros da política cultural brasileira


Pensadores alertaram para os problemas da conflituosa relação entre Estado e cultura nos anos 1980

Por Luiz Armando Bagolin
Logo do programa Cultura Viva, do Governo Federal 

Há mais de três décadas Michel de Certeau publicou uma obra antológica sobre sociologia da cultura, A Invenção do Cotidiano (1980), estudada por educadores e agentes públicos também no Brasil. A sua premissa é simples: o consumidor cultural não é passivo, pois intervém sempre na recepção dos produtos culturais produzidos pelo sistema capitalista de bens de mercado demarcando um desvio, uma apropriação e uma transformação daquilo que lhe é ofertado para consumo.

Partindo do mote “É sempre bom lembrar que não se deve tomar as pessoas por idiotas”, Certeau repropôs o consumidor cultural como um usuário ativo, uma espécie de produtor inventivo que, através de diferentes transgressões ou “trampolinagens”, conseguiria alterar e ressignificar o conteúdo dos produtos ofertados para o seu consumo, não se comportando de modo massificado. A tal comportamento o autor dá o nome de “tático”, equiparando-o com a métis grega, ou seja, a habilidade prática, a eficácia instintiva num determinado ofício.

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Em contraponto ao “tático”, Certeau propõe o comportamento de tipo “estratégico” que tipificaria as práticas institucionais cometidas a partir de um lugar e tempo próprios, que podem ser capitalizadas e disciplinadas (o autor dialoga explicitamente com Foucault). Ao “estratégico” concerne a gestão dos recursos necessários para salvaguardar tanto a existência dessa instituição quanto a administração de suas relações exteriores, postulando-se nitidamente como a prática ou a operação do “mais forte”. 

No Brasil, as políticas públicas para a área cultural, como ocorreu em determinado momento na França, foram dominadas pelos pensadores da esquerda ou centro-esquerda que relativizaram o valor dado à tradição cultural identificada como sendo a representação das elites, do autoritarismo e do neoliberalismo econômico. É conhecido o conceito “cidadania cultural” proposto pela filósofa Marilena Chauí, entre 1979 e 1982.

Chauí nos informa sobre quatro modalidades que se evidenciaram historicamente, no Brasil, de relação do Estado com a cultura: a cultura como arte liberal, elitizada e vista como privilégio das classes mais ricas; a do Estado autoritário, que produz, regula e censura os produtos culturais ofertados à sociedade civil; a populista, que nada mais seria do que a “versão popular” dos produtos feitos seja pela elite econômica, seja pela indústria cultural, formatados para as classes menos favorecidas; a neoliberal, que entende o campo cultural como campo de oportunidades exclusivamente a ser partilhado pelo mercado, inclusive com a privatização de espaços e equipamentos públicos. Por fim, a filósofa nos adverte que o papel do Estado é o de defender o direito do cidadão à cultura, ainda que haja a compreensão sobre a existência de obstáculos na administração pública dificultando a preservação deste direito. 

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Essa visão infelizmente não se traduziu em conquistas abrangentes e efetivas no campo das políticas públicas para a área da cultura durante os treze anos de governo do PT, justamente no interior do qual havia sido proposta, uma vez que a política econômica adotada pelo lulopetistmo, para longe da teoria, privilegiou a cultura de massa em detrimento das manifestações que implicariam aquela revolução tática do usuário que age à margem do sistema dominante, proposta por Certeau. Uma análose de como foi utilizada a Lei Rouanet nestes anos demonstra como foram privilegiados os eventos patrocinados por grandes empresas, sobrando aos “mais fracos” apenas uma pequena parcela dos recursos econômicos públicos disponíveis para a área cultural (por exemplo, para o programa Cultura Viva, que foi uma ótima iniciativa do governo Lula). O discurso preponderante nessa época foi que finalmente havia chegado o momento de ascensão dos movimentos sociais, no interior dos quais a cultura se promoveria espontaneamente, sem a indesejada intervenção do Estado. Mas o discurso apenas, interminável, desobrigado das ações executivas efetivas correspondentes funcionou somente como uma estratégia de apaziguamento desses movimentos que negociavam com o governo: foi política do grande blablablá. 

As manifestações culturais das minorias e das pessoas comuns, vulneráveis porque não encontram apelo comercial ou não se vendem facilmente no mercado de bens de consumo devem ser preservadas pelo Estado e fiscalizadas pelo poder público e sociedade civil. Elas se encontram na base da cadeia da economia da cultura e da construção de nossa identidade. Não deveriam, pela mesma razão, se tornar meras representações de argumentos vazios nas vozes de indivíduos cuja única aspiração é a velha política partidária. Repito o argumento: “Não se deve tomar as pessoas por idiotas”. 

*É filósofo, professor de história da USP e ex-diretor da biblioteca Mário de Andrade

Logo do programa Cultura Viva, do Governo Federal 

Há mais de três décadas Michel de Certeau publicou uma obra antológica sobre sociologia da cultura, A Invenção do Cotidiano (1980), estudada por educadores e agentes públicos também no Brasil. A sua premissa é simples: o consumidor cultural não é passivo, pois intervém sempre na recepção dos produtos culturais produzidos pelo sistema capitalista de bens de mercado demarcando um desvio, uma apropriação e uma transformação daquilo que lhe é ofertado para consumo.

Partindo do mote “É sempre bom lembrar que não se deve tomar as pessoas por idiotas”, Certeau repropôs o consumidor cultural como um usuário ativo, uma espécie de produtor inventivo que, através de diferentes transgressões ou “trampolinagens”, conseguiria alterar e ressignificar o conteúdo dos produtos ofertados para o seu consumo, não se comportando de modo massificado. A tal comportamento o autor dá o nome de “tático”, equiparando-o com a métis grega, ou seja, a habilidade prática, a eficácia instintiva num determinado ofício.

Em contraponto ao “tático”, Certeau propõe o comportamento de tipo “estratégico” que tipificaria as práticas institucionais cometidas a partir de um lugar e tempo próprios, que podem ser capitalizadas e disciplinadas (o autor dialoga explicitamente com Foucault). Ao “estratégico” concerne a gestão dos recursos necessários para salvaguardar tanto a existência dessa instituição quanto a administração de suas relações exteriores, postulando-se nitidamente como a prática ou a operação do “mais forte”. 

No Brasil, as políticas públicas para a área cultural, como ocorreu em determinado momento na França, foram dominadas pelos pensadores da esquerda ou centro-esquerda que relativizaram o valor dado à tradição cultural identificada como sendo a representação das elites, do autoritarismo e do neoliberalismo econômico. É conhecido o conceito “cidadania cultural” proposto pela filósofa Marilena Chauí, entre 1979 e 1982.

Chauí nos informa sobre quatro modalidades que se evidenciaram historicamente, no Brasil, de relação do Estado com a cultura: a cultura como arte liberal, elitizada e vista como privilégio das classes mais ricas; a do Estado autoritário, que produz, regula e censura os produtos culturais ofertados à sociedade civil; a populista, que nada mais seria do que a “versão popular” dos produtos feitos seja pela elite econômica, seja pela indústria cultural, formatados para as classes menos favorecidas; a neoliberal, que entende o campo cultural como campo de oportunidades exclusivamente a ser partilhado pelo mercado, inclusive com a privatização de espaços e equipamentos públicos. Por fim, a filósofa nos adverte que o papel do Estado é o de defender o direito do cidadão à cultura, ainda que haja a compreensão sobre a existência de obstáculos na administração pública dificultando a preservação deste direito. 

Essa visão infelizmente não se traduziu em conquistas abrangentes e efetivas no campo das políticas públicas para a área da cultura durante os treze anos de governo do PT, justamente no interior do qual havia sido proposta, uma vez que a política econômica adotada pelo lulopetistmo, para longe da teoria, privilegiou a cultura de massa em detrimento das manifestações que implicariam aquela revolução tática do usuário que age à margem do sistema dominante, proposta por Certeau. Uma análose de como foi utilizada a Lei Rouanet nestes anos demonstra como foram privilegiados os eventos patrocinados por grandes empresas, sobrando aos “mais fracos” apenas uma pequena parcela dos recursos econômicos públicos disponíveis para a área cultural (por exemplo, para o programa Cultura Viva, que foi uma ótima iniciativa do governo Lula). O discurso preponderante nessa época foi que finalmente havia chegado o momento de ascensão dos movimentos sociais, no interior dos quais a cultura se promoveria espontaneamente, sem a indesejada intervenção do Estado. Mas o discurso apenas, interminável, desobrigado das ações executivas efetivas correspondentes funcionou somente como uma estratégia de apaziguamento desses movimentos que negociavam com o governo: foi política do grande blablablá. 

As manifestações culturais das minorias e das pessoas comuns, vulneráveis porque não encontram apelo comercial ou não se vendem facilmente no mercado de bens de consumo devem ser preservadas pelo Estado e fiscalizadas pelo poder público e sociedade civil. Elas se encontram na base da cadeia da economia da cultura e da construção de nossa identidade. Não deveriam, pela mesma razão, se tornar meras representações de argumentos vazios nas vozes de indivíduos cuja única aspiração é a velha política partidária. Repito o argumento: “Não se deve tomar as pessoas por idiotas”. 

*É filósofo, professor de história da USP e ex-diretor da biblioteca Mário de Andrade

Logo do programa Cultura Viva, do Governo Federal 

Há mais de três décadas Michel de Certeau publicou uma obra antológica sobre sociologia da cultura, A Invenção do Cotidiano (1980), estudada por educadores e agentes públicos também no Brasil. A sua premissa é simples: o consumidor cultural não é passivo, pois intervém sempre na recepção dos produtos culturais produzidos pelo sistema capitalista de bens de mercado demarcando um desvio, uma apropriação e uma transformação daquilo que lhe é ofertado para consumo.

Partindo do mote “É sempre bom lembrar que não se deve tomar as pessoas por idiotas”, Certeau repropôs o consumidor cultural como um usuário ativo, uma espécie de produtor inventivo que, através de diferentes transgressões ou “trampolinagens”, conseguiria alterar e ressignificar o conteúdo dos produtos ofertados para o seu consumo, não se comportando de modo massificado. A tal comportamento o autor dá o nome de “tático”, equiparando-o com a métis grega, ou seja, a habilidade prática, a eficácia instintiva num determinado ofício.

Em contraponto ao “tático”, Certeau propõe o comportamento de tipo “estratégico” que tipificaria as práticas institucionais cometidas a partir de um lugar e tempo próprios, que podem ser capitalizadas e disciplinadas (o autor dialoga explicitamente com Foucault). Ao “estratégico” concerne a gestão dos recursos necessários para salvaguardar tanto a existência dessa instituição quanto a administração de suas relações exteriores, postulando-se nitidamente como a prática ou a operação do “mais forte”. 

No Brasil, as políticas públicas para a área cultural, como ocorreu em determinado momento na França, foram dominadas pelos pensadores da esquerda ou centro-esquerda que relativizaram o valor dado à tradição cultural identificada como sendo a representação das elites, do autoritarismo e do neoliberalismo econômico. É conhecido o conceito “cidadania cultural” proposto pela filósofa Marilena Chauí, entre 1979 e 1982.

Chauí nos informa sobre quatro modalidades que se evidenciaram historicamente, no Brasil, de relação do Estado com a cultura: a cultura como arte liberal, elitizada e vista como privilégio das classes mais ricas; a do Estado autoritário, que produz, regula e censura os produtos culturais ofertados à sociedade civil; a populista, que nada mais seria do que a “versão popular” dos produtos feitos seja pela elite econômica, seja pela indústria cultural, formatados para as classes menos favorecidas; a neoliberal, que entende o campo cultural como campo de oportunidades exclusivamente a ser partilhado pelo mercado, inclusive com a privatização de espaços e equipamentos públicos. Por fim, a filósofa nos adverte que o papel do Estado é o de defender o direito do cidadão à cultura, ainda que haja a compreensão sobre a existência de obstáculos na administração pública dificultando a preservação deste direito. 

Essa visão infelizmente não se traduziu em conquistas abrangentes e efetivas no campo das políticas públicas para a área da cultura durante os treze anos de governo do PT, justamente no interior do qual havia sido proposta, uma vez que a política econômica adotada pelo lulopetistmo, para longe da teoria, privilegiou a cultura de massa em detrimento das manifestações que implicariam aquela revolução tática do usuário que age à margem do sistema dominante, proposta por Certeau. Uma análose de como foi utilizada a Lei Rouanet nestes anos demonstra como foram privilegiados os eventos patrocinados por grandes empresas, sobrando aos “mais fracos” apenas uma pequena parcela dos recursos econômicos públicos disponíveis para a área cultural (por exemplo, para o programa Cultura Viva, que foi uma ótima iniciativa do governo Lula). O discurso preponderante nessa época foi que finalmente havia chegado o momento de ascensão dos movimentos sociais, no interior dos quais a cultura se promoveria espontaneamente, sem a indesejada intervenção do Estado. Mas o discurso apenas, interminável, desobrigado das ações executivas efetivas correspondentes funcionou somente como uma estratégia de apaziguamento desses movimentos que negociavam com o governo: foi política do grande blablablá. 

As manifestações culturais das minorias e das pessoas comuns, vulneráveis porque não encontram apelo comercial ou não se vendem facilmente no mercado de bens de consumo devem ser preservadas pelo Estado e fiscalizadas pelo poder público e sociedade civil. Elas se encontram na base da cadeia da economia da cultura e da construção de nossa identidade. Não deveriam, pela mesma razão, se tornar meras representações de argumentos vazios nas vozes de indivíduos cuja única aspiração é a velha política partidária. Repito o argumento: “Não se deve tomar as pessoas por idiotas”. 

*É filósofo, professor de história da USP e ex-diretor da biblioteca Mário de Andrade

Logo do programa Cultura Viva, do Governo Federal 

Há mais de três décadas Michel de Certeau publicou uma obra antológica sobre sociologia da cultura, A Invenção do Cotidiano (1980), estudada por educadores e agentes públicos também no Brasil. A sua premissa é simples: o consumidor cultural não é passivo, pois intervém sempre na recepção dos produtos culturais produzidos pelo sistema capitalista de bens de mercado demarcando um desvio, uma apropriação e uma transformação daquilo que lhe é ofertado para consumo.

Partindo do mote “É sempre bom lembrar que não se deve tomar as pessoas por idiotas”, Certeau repropôs o consumidor cultural como um usuário ativo, uma espécie de produtor inventivo que, através de diferentes transgressões ou “trampolinagens”, conseguiria alterar e ressignificar o conteúdo dos produtos ofertados para o seu consumo, não se comportando de modo massificado. A tal comportamento o autor dá o nome de “tático”, equiparando-o com a métis grega, ou seja, a habilidade prática, a eficácia instintiva num determinado ofício.

Em contraponto ao “tático”, Certeau propõe o comportamento de tipo “estratégico” que tipificaria as práticas institucionais cometidas a partir de um lugar e tempo próprios, que podem ser capitalizadas e disciplinadas (o autor dialoga explicitamente com Foucault). Ao “estratégico” concerne a gestão dos recursos necessários para salvaguardar tanto a existência dessa instituição quanto a administração de suas relações exteriores, postulando-se nitidamente como a prática ou a operação do “mais forte”. 

No Brasil, as políticas públicas para a área cultural, como ocorreu em determinado momento na França, foram dominadas pelos pensadores da esquerda ou centro-esquerda que relativizaram o valor dado à tradição cultural identificada como sendo a representação das elites, do autoritarismo e do neoliberalismo econômico. É conhecido o conceito “cidadania cultural” proposto pela filósofa Marilena Chauí, entre 1979 e 1982.

Chauí nos informa sobre quatro modalidades que se evidenciaram historicamente, no Brasil, de relação do Estado com a cultura: a cultura como arte liberal, elitizada e vista como privilégio das classes mais ricas; a do Estado autoritário, que produz, regula e censura os produtos culturais ofertados à sociedade civil; a populista, que nada mais seria do que a “versão popular” dos produtos feitos seja pela elite econômica, seja pela indústria cultural, formatados para as classes menos favorecidas; a neoliberal, que entende o campo cultural como campo de oportunidades exclusivamente a ser partilhado pelo mercado, inclusive com a privatização de espaços e equipamentos públicos. Por fim, a filósofa nos adverte que o papel do Estado é o de defender o direito do cidadão à cultura, ainda que haja a compreensão sobre a existência de obstáculos na administração pública dificultando a preservação deste direito. 

Essa visão infelizmente não se traduziu em conquistas abrangentes e efetivas no campo das políticas públicas para a área da cultura durante os treze anos de governo do PT, justamente no interior do qual havia sido proposta, uma vez que a política econômica adotada pelo lulopetistmo, para longe da teoria, privilegiou a cultura de massa em detrimento das manifestações que implicariam aquela revolução tática do usuário que age à margem do sistema dominante, proposta por Certeau. Uma análose de como foi utilizada a Lei Rouanet nestes anos demonstra como foram privilegiados os eventos patrocinados por grandes empresas, sobrando aos “mais fracos” apenas uma pequena parcela dos recursos econômicos públicos disponíveis para a área cultural (por exemplo, para o programa Cultura Viva, que foi uma ótima iniciativa do governo Lula). O discurso preponderante nessa época foi que finalmente havia chegado o momento de ascensão dos movimentos sociais, no interior dos quais a cultura se promoveria espontaneamente, sem a indesejada intervenção do Estado. Mas o discurso apenas, interminável, desobrigado das ações executivas efetivas correspondentes funcionou somente como uma estratégia de apaziguamento desses movimentos que negociavam com o governo: foi política do grande blablablá. 

As manifestações culturais das minorias e das pessoas comuns, vulneráveis porque não encontram apelo comercial ou não se vendem facilmente no mercado de bens de consumo devem ser preservadas pelo Estado e fiscalizadas pelo poder público e sociedade civil. Elas se encontram na base da cadeia da economia da cultura e da construção de nossa identidade. Não deveriam, pela mesma razão, se tornar meras representações de argumentos vazios nas vozes de indivíduos cuja única aspiração é a velha política partidária. Repito o argumento: “Não se deve tomar as pessoas por idiotas”. 

*É filósofo, professor de história da USP e ex-diretor da biblioteca Mário de Andrade

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