Osman Lins examina obstáculos do Brasil de um ponto de vista cultural


Morto há 40 anos, autor prova relevância com artigos reunidos em 'Problemas Inculturais Brasileiros'

Por Martim Vasques da Cunha

Dizem que os números não mentem. Uma das provas dessa afirmação está nos dados que tentam abarcar a falta que faz um gigante das letras nacionais como Osman Lins. Nascido há 94 anos, em 5 de julho de 1924, e morto há 40, em 1978, cinco anos depois de lançar Avalovara – a sua obra-prima –, ele retorna do mundo dos mortos com Problemas Inculturais Brasileiros, organizado por Fábio Andrade e que reúne dois livros de combate cultural escritos no final da vida – Do Ideal e da Glória (1977) e o póstumo Evangelho na Taba (1979).

O escritor pernambucano Osman Lins Foto: Estadão Acervo

Composto por artigos divulgados em vários jornais da época – entre eles, o Estado –, o relançamento mostra que Osman Lins continua relevante. Partindo da tradição de crítica cultural compartilhada por outros polemistas da imprensa escrita – como Paulo Francis, José Guilherme Merquior e Bruno Tolentino –, ele sempre viu o papel do escritor na sociedade moderna similar ao de um sujeito que vive uma “guerra sem testemunhas”, um combate feito na surdina no qual o ambiente desfavorável criado no Brasil sempre comprometeu o desenvolvimento da única coisa que importa na formação de um país: a liberdade interior.

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No clássico artigo Do Ideal e da Glória, Lins explica que, para este tipo de liberdade frutificar no Brasil, existe uma série de outros fatores que faz o ato de escrever, praticado sem qualquer tipo de concessão ao poder instituído, alcançar a plenitude – no caso, a situação material do escritor. A partir daí, desenvolve um raciocínio implacável sobre como há todo um clima de totalitarismo cultural que simplesmente impede, por exemplo, um jovem aprendiz no ofício da escrita de persistir no seu idealismo para conquistar algo por meio do triunfo da palavra. Nos outros textos da nova coletânea, o autor de Nove, Novena ramifica este princípio político (ou, no caso, antipolítico) para chegar ao ponto central da sua argumentação: a tal da glória de quem pretende vencer no reino das letras é, “para o verdadeiro escritor, ser lido – principalmente pelo seu povo – e poder viver do seu trabalho sem precisar de envilecê-lo”.

Contudo, para Lins, a popularidade de uma obra literária não significa também a vitória de um escritor best-seller – pois este último pode igualmente ter se rendido a um outro tipo de poder, simbolizado pelos “futuros inquisidores”. Em um texto com este mesmo título, ficamos perturbados ao notarmos como a nossa intelligentsia, tanto a da esquerda como a da direita, ainda está enredada em um pacto secreto entre o escritor e os novos potentados surgidos por aqui neste final de 2018. Este tipo de imposição “é um dos modos através dos quais o poder tenta amortecer os focos de renovação ou resistência. Mas que dos seus próprios pares, dos que como ele trabalham com a palavra, venha o escritor receber também pressões é muito mais sério. Significa que: a) certos autores, cegos pela ambição de se afirmarem, são capazes de ser tão intolerantes como qualquer autoridade (faltando-lhes, apenas, a força); b) subsiste, estranhamente, em muitos intelectuais, não me interessa se com as melhores intenções, um gérmen anti-intelectualista; c) paira sobre nós a ameaça de, livres das pressões que hoje nos esmagam, vermo-nos na dependência de outras, agindo em outra direção, mas tão cerceadoras quanto as atuais”.

É impressionante como Osman Lins, mesmo morto, parece se referir não só aos professores ideólogos que infestam nossas universidades, como também à deformação do movimento Escola Sem Partido, feito pelos seus defensores mais ardorosos – sempre, é claro, com o intento de manter a pureza do ensino. Esta suspeita pelo poder – e a liberdade oriunda no trato verdadeiro (e imperfeito) com a palavra – também permeiam a sua ficção, principalmente em Avalovara que, apesar dos seus experimentalismos formais e as diversas tramas que conta, lida com um tema muito simples e, ao mesmo tempo, universal, articulado na seguinte frase dita por Abel, o personagem principal desta saga: “A opressão infiltra-se nos ossos e invade tudo.”

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Foi contra esta opressão quase absoluta, no limiar entre o caos e a ordem petrificada, que Lins inspirou-se no famoso palíndromo em latim – Sator Arepo Tenet Opera Rotas (algo como “O lavrador mantém cuidadosamente a charrua nos sulcos” ou “O lavrador sustém cuidadosamente o mundo em sua órbita”) – para elaborar a estrutura intrincada de Avalovara. De todas as histórias narradas neste romance magnífico – do romance entre Abel e a mulher inominada à tragédia que cerca o misterioso relógio de Julius Heckethorn, passando pelo drama oculto do próprio romancista para dar coerência a esta “figura do tapete” –, uma das mais marcantes é, sem dúvida, a que envolve a lenda que deu origem à sentença latina. Criada pelo escravo Loreius, propriedade particular do tribuno romano Publius Ubonius, conforme uma exigência deste último, a dificuldade na concepção da frase é justamente o motivo da libertação interior do cativo. Quando ele enfim consegue elucidar o enigma, Loreius diz ao seu mestre, afoito para saber a resposta: “Trate-me como a um homem livre. Na verdade, eu já não sou seu escravo.”

Apesar do fim trágico desta lenda – Loreius seria traído por sua própria vaidade ao contar o segredo para Tyche, uma cortesã que informaria Ubonius, provocando assim seu suicídio –, Avalovara deve ser lido em conjunto com Problemas Inculturais Brasileiros porque mostra, por meio do seu drama “cósmico-simbólico” (nas palavras de José Paulo Paes), a solução que Osman Lins tanto procurava na sua própria biografia: a liberdade do artista surge somente no trato com a linguagem concreta, aquela que, quando alguém pede um copo d´água, trazem-no um copo d´água, nunca um punhal – a mesma linguagem que faz o escritor ser, na sociedade moderna e idólatra da técnica desumanizada, “um rumor, uma força espiritual, a consciência de um momento, a secreta lucidez de um povo”.

Isso não significa que Lins era um sujeito preocupado somente com as elucubrações intelectualistas ou – o que é pior – idealistas, típicos daqueles que pretendem viver por meio do verbo. Pelo contrário: em seus artigos, é nítida a preocupação que tem com as coisas concretas da vida cotidiana. É perturbador lê-lo ao descrever as diversas maneiras como a sociedade, indiretamente, retira do cidadão todas as possibilidades da leitura em público – desde as fracas luzes dos ônibus e dos metrôs (felizmente resolvidas nos nossos dias) até o ruído da televisão nos salões de entrada dos hotéis luxuosos. E é também emocionante vê-lo relembrar a liberdade que seu pai, um humilde alfaiate, tinha ao fazer ternos sob medida para o povoado de Vitória de Santo Antão. Aqui, o patriarca é um artesão que, ao criar obras semelhantes ao que o filho faria com seus livros, se torna o verdadeiro exemplo de como podemos escapar de qualquer tipo de opressão.

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É claro que estes modelos também seriam estendidos à vida do espírito. Não à toa, Osman Lins se vê alinhado na mesma tradição de Lima Barreto, Graciliano Ramos, Hermilo Borba Neto e o padre jesuíta José de Anchieta – e, last but not least, James Joyce. Todos foram soldados numa guerra silenciosa que parece ser a tônica dominante em uma nação possuída pela estupidez sem limites. No texto final desta coletânea mais do que profética, Diante do Túmulo de James Joyce, o escritor pernambucano narra como foi sua visita no memorial que cobre os restos mortais do vate irlandês em Zurique, na Suíça. Ao olhar para a famosa estátua, com Joyce sendo retratado numa “atitude descuidada”, ele se pergunta se o criador de Ulysses precisaria mesmo de um túmulo para ser lembrado: “Não é a sua obra inscrição e monumento?”

A resposta de Lins foi afirmativa: “Por esse pó, um dia transitou o verbo” – e o mesmo deve ser dito sobre quem nos deu Avalovara e Problemas Inculturais Brasileiros, livros que explicam o Brasil acima de todos com Deus acima de tudo. A única coisa a se reclamar desta publicação primorosa, feita em Recife, é que ela deveria estar na mesa de cabeceira de cada cidadão. Mas isto será algo infelizmente impossível, pois, logo na derradeira página do volume, lemos a seguinte informação técnica, provando tudo o que foi escrito anteriormente por Lins: “Tiragem: 300 exemplares”. De fato, na Terra de Santa-Cruz, onde cada escritor imita um Anchieta que prega o evangelho na taba, os números não mentem. ] É AUTOR DE ‘CRISE E UTOPIA – O DILEMA DE THOMAS MORE’E ‘A POEIRA DA GLÓRIA – UMA (INESPERADA)  HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA’

Dizem que os números não mentem. Uma das provas dessa afirmação está nos dados que tentam abarcar a falta que faz um gigante das letras nacionais como Osman Lins. Nascido há 94 anos, em 5 de julho de 1924, e morto há 40, em 1978, cinco anos depois de lançar Avalovara – a sua obra-prima –, ele retorna do mundo dos mortos com Problemas Inculturais Brasileiros, organizado por Fábio Andrade e que reúne dois livros de combate cultural escritos no final da vida – Do Ideal e da Glória (1977) e o póstumo Evangelho na Taba (1979).

O escritor pernambucano Osman Lins Foto: Estadão Acervo

Composto por artigos divulgados em vários jornais da época – entre eles, o Estado –, o relançamento mostra que Osman Lins continua relevante. Partindo da tradição de crítica cultural compartilhada por outros polemistas da imprensa escrita – como Paulo Francis, José Guilherme Merquior e Bruno Tolentino –, ele sempre viu o papel do escritor na sociedade moderna similar ao de um sujeito que vive uma “guerra sem testemunhas”, um combate feito na surdina no qual o ambiente desfavorável criado no Brasil sempre comprometeu o desenvolvimento da única coisa que importa na formação de um país: a liberdade interior.

No clássico artigo Do Ideal e da Glória, Lins explica que, para este tipo de liberdade frutificar no Brasil, existe uma série de outros fatores que faz o ato de escrever, praticado sem qualquer tipo de concessão ao poder instituído, alcançar a plenitude – no caso, a situação material do escritor. A partir daí, desenvolve um raciocínio implacável sobre como há todo um clima de totalitarismo cultural que simplesmente impede, por exemplo, um jovem aprendiz no ofício da escrita de persistir no seu idealismo para conquistar algo por meio do triunfo da palavra. Nos outros textos da nova coletânea, o autor de Nove, Novena ramifica este princípio político (ou, no caso, antipolítico) para chegar ao ponto central da sua argumentação: a tal da glória de quem pretende vencer no reino das letras é, “para o verdadeiro escritor, ser lido – principalmente pelo seu povo – e poder viver do seu trabalho sem precisar de envilecê-lo”.

Contudo, para Lins, a popularidade de uma obra literária não significa também a vitória de um escritor best-seller – pois este último pode igualmente ter se rendido a um outro tipo de poder, simbolizado pelos “futuros inquisidores”. Em um texto com este mesmo título, ficamos perturbados ao notarmos como a nossa intelligentsia, tanto a da esquerda como a da direita, ainda está enredada em um pacto secreto entre o escritor e os novos potentados surgidos por aqui neste final de 2018. Este tipo de imposição “é um dos modos através dos quais o poder tenta amortecer os focos de renovação ou resistência. Mas que dos seus próprios pares, dos que como ele trabalham com a palavra, venha o escritor receber também pressões é muito mais sério. Significa que: a) certos autores, cegos pela ambição de se afirmarem, são capazes de ser tão intolerantes como qualquer autoridade (faltando-lhes, apenas, a força); b) subsiste, estranhamente, em muitos intelectuais, não me interessa se com as melhores intenções, um gérmen anti-intelectualista; c) paira sobre nós a ameaça de, livres das pressões que hoje nos esmagam, vermo-nos na dependência de outras, agindo em outra direção, mas tão cerceadoras quanto as atuais”.

É impressionante como Osman Lins, mesmo morto, parece se referir não só aos professores ideólogos que infestam nossas universidades, como também à deformação do movimento Escola Sem Partido, feito pelos seus defensores mais ardorosos – sempre, é claro, com o intento de manter a pureza do ensino. Esta suspeita pelo poder – e a liberdade oriunda no trato verdadeiro (e imperfeito) com a palavra – também permeiam a sua ficção, principalmente em Avalovara que, apesar dos seus experimentalismos formais e as diversas tramas que conta, lida com um tema muito simples e, ao mesmo tempo, universal, articulado na seguinte frase dita por Abel, o personagem principal desta saga: “A opressão infiltra-se nos ossos e invade tudo.”

Foi contra esta opressão quase absoluta, no limiar entre o caos e a ordem petrificada, que Lins inspirou-se no famoso palíndromo em latim – Sator Arepo Tenet Opera Rotas (algo como “O lavrador mantém cuidadosamente a charrua nos sulcos” ou “O lavrador sustém cuidadosamente o mundo em sua órbita”) – para elaborar a estrutura intrincada de Avalovara. De todas as histórias narradas neste romance magnífico – do romance entre Abel e a mulher inominada à tragédia que cerca o misterioso relógio de Julius Heckethorn, passando pelo drama oculto do próprio romancista para dar coerência a esta “figura do tapete” –, uma das mais marcantes é, sem dúvida, a que envolve a lenda que deu origem à sentença latina. Criada pelo escravo Loreius, propriedade particular do tribuno romano Publius Ubonius, conforme uma exigência deste último, a dificuldade na concepção da frase é justamente o motivo da libertação interior do cativo. Quando ele enfim consegue elucidar o enigma, Loreius diz ao seu mestre, afoito para saber a resposta: “Trate-me como a um homem livre. Na verdade, eu já não sou seu escravo.”

Apesar do fim trágico desta lenda – Loreius seria traído por sua própria vaidade ao contar o segredo para Tyche, uma cortesã que informaria Ubonius, provocando assim seu suicídio –, Avalovara deve ser lido em conjunto com Problemas Inculturais Brasileiros porque mostra, por meio do seu drama “cósmico-simbólico” (nas palavras de José Paulo Paes), a solução que Osman Lins tanto procurava na sua própria biografia: a liberdade do artista surge somente no trato com a linguagem concreta, aquela que, quando alguém pede um copo d´água, trazem-no um copo d´água, nunca um punhal – a mesma linguagem que faz o escritor ser, na sociedade moderna e idólatra da técnica desumanizada, “um rumor, uma força espiritual, a consciência de um momento, a secreta lucidez de um povo”.

Isso não significa que Lins era um sujeito preocupado somente com as elucubrações intelectualistas ou – o que é pior – idealistas, típicos daqueles que pretendem viver por meio do verbo. Pelo contrário: em seus artigos, é nítida a preocupação que tem com as coisas concretas da vida cotidiana. É perturbador lê-lo ao descrever as diversas maneiras como a sociedade, indiretamente, retira do cidadão todas as possibilidades da leitura em público – desde as fracas luzes dos ônibus e dos metrôs (felizmente resolvidas nos nossos dias) até o ruído da televisão nos salões de entrada dos hotéis luxuosos. E é também emocionante vê-lo relembrar a liberdade que seu pai, um humilde alfaiate, tinha ao fazer ternos sob medida para o povoado de Vitória de Santo Antão. Aqui, o patriarca é um artesão que, ao criar obras semelhantes ao que o filho faria com seus livros, se torna o verdadeiro exemplo de como podemos escapar de qualquer tipo de opressão.

É claro que estes modelos também seriam estendidos à vida do espírito. Não à toa, Osman Lins se vê alinhado na mesma tradição de Lima Barreto, Graciliano Ramos, Hermilo Borba Neto e o padre jesuíta José de Anchieta – e, last but not least, James Joyce. Todos foram soldados numa guerra silenciosa que parece ser a tônica dominante em uma nação possuída pela estupidez sem limites. No texto final desta coletânea mais do que profética, Diante do Túmulo de James Joyce, o escritor pernambucano narra como foi sua visita no memorial que cobre os restos mortais do vate irlandês em Zurique, na Suíça. Ao olhar para a famosa estátua, com Joyce sendo retratado numa “atitude descuidada”, ele se pergunta se o criador de Ulysses precisaria mesmo de um túmulo para ser lembrado: “Não é a sua obra inscrição e monumento?”

A resposta de Lins foi afirmativa: “Por esse pó, um dia transitou o verbo” – e o mesmo deve ser dito sobre quem nos deu Avalovara e Problemas Inculturais Brasileiros, livros que explicam o Brasil acima de todos com Deus acima de tudo. A única coisa a se reclamar desta publicação primorosa, feita em Recife, é que ela deveria estar na mesa de cabeceira de cada cidadão. Mas isto será algo infelizmente impossível, pois, logo na derradeira página do volume, lemos a seguinte informação técnica, provando tudo o que foi escrito anteriormente por Lins: “Tiragem: 300 exemplares”. De fato, na Terra de Santa-Cruz, onde cada escritor imita um Anchieta que prega o evangelho na taba, os números não mentem. ] É AUTOR DE ‘CRISE E UTOPIA – O DILEMA DE THOMAS MORE’E ‘A POEIRA DA GLÓRIA – UMA (INESPERADA)  HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA’

Dizem que os números não mentem. Uma das provas dessa afirmação está nos dados que tentam abarcar a falta que faz um gigante das letras nacionais como Osman Lins. Nascido há 94 anos, em 5 de julho de 1924, e morto há 40, em 1978, cinco anos depois de lançar Avalovara – a sua obra-prima –, ele retorna do mundo dos mortos com Problemas Inculturais Brasileiros, organizado por Fábio Andrade e que reúne dois livros de combate cultural escritos no final da vida – Do Ideal e da Glória (1977) e o póstumo Evangelho na Taba (1979).

O escritor pernambucano Osman Lins Foto: Estadão Acervo

Composto por artigos divulgados em vários jornais da época – entre eles, o Estado –, o relançamento mostra que Osman Lins continua relevante. Partindo da tradição de crítica cultural compartilhada por outros polemistas da imprensa escrita – como Paulo Francis, José Guilherme Merquior e Bruno Tolentino –, ele sempre viu o papel do escritor na sociedade moderna similar ao de um sujeito que vive uma “guerra sem testemunhas”, um combate feito na surdina no qual o ambiente desfavorável criado no Brasil sempre comprometeu o desenvolvimento da única coisa que importa na formação de um país: a liberdade interior.

No clássico artigo Do Ideal e da Glória, Lins explica que, para este tipo de liberdade frutificar no Brasil, existe uma série de outros fatores que faz o ato de escrever, praticado sem qualquer tipo de concessão ao poder instituído, alcançar a plenitude – no caso, a situação material do escritor. A partir daí, desenvolve um raciocínio implacável sobre como há todo um clima de totalitarismo cultural que simplesmente impede, por exemplo, um jovem aprendiz no ofício da escrita de persistir no seu idealismo para conquistar algo por meio do triunfo da palavra. Nos outros textos da nova coletânea, o autor de Nove, Novena ramifica este princípio político (ou, no caso, antipolítico) para chegar ao ponto central da sua argumentação: a tal da glória de quem pretende vencer no reino das letras é, “para o verdadeiro escritor, ser lido – principalmente pelo seu povo – e poder viver do seu trabalho sem precisar de envilecê-lo”.

Contudo, para Lins, a popularidade de uma obra literária não significa também a vitória de um escritor best-seller – pois este último pode igualmente ter se rendido a um outro tipo de poder, simbolizado pelos “futuros inquisidores”. Em um texto com este mesmo título, ficamos perturbados ao notarmos como a nossa intelligentsia, tanto a da esquerda como a da direita, ainda está enredada em um pacto secreto entre o escritor e os novos potentados surgidos por aqui neste final de 2018. Este tipo de imposição “é um dos modos através dos quais o poder tenta amortecer os focos de renovação ou resistência. Mas que dos seus próprios pares, dos que como ele trabalham com a palavra, venha o escritor receber também pressões é muito mais sério. Significa que: a) certos autores, cegos pela ambição de se afirmarem, são capazes de ser tão intolerantes como qualquer autoridade (faltando-lhes, apenas, a força); b) subsiste, estranhamente, em muitos intelectuais, não me interessa se com as melhores intenções, um gérmen anti-intelectualista; c) paira sobre nós a ameaça de, livres das pressões que hoje nos esmagam, vermo-nos na dependência de outras, agindo em outra direção, mas tão cerceadoras quanto as atuais”.

É impressionante como Osman Lins, mesmo morto, parece se referir não só aos professores ideólogos que infestam nossas universidades, como também à deformação do movimento Escola Sem Partido, feito pelos seus defensores mais ardorosos – sempre, é claro, com o intento de manter a pureza do ensino. Esta suspeita pelo poder – e a liberdade oriunda no trato verdadeiro (e imperfeito) com a palavra – também permeiam a sua ficção, principalmente em Avalovara que, apesar dos seus experimentalismos formais e as diversas tramas que conta, lida com um tema muito simples e, ao mesmo tempo, universal, articulado na seguinte frase dita por Abel, o personagem principal desta saga: “A opressão infiltra-se nos ossos e invade tudo.”

Foi contra esta opressão quase absoluta, no limiar entre o caos e a ordem petrificada, que Lins inspirou-se no famoso palíndromo em latim – Sator Arepo Tenet Opera Rotas (algo como “O lavrador mantém cuidadosamente a charrua nos sulcos” ou “O lavrador sustém cuidadosamente o mundo em sua órbita”) – para elaborar a estrutura intrincada de Avalovara. De todas as histórias narradas neste romance magnífico – do romance entre Abel e a mulher inominada à tragédia que cerca o misterioso relógio de Julius Heckethorn, passando pelo drama oculto do próprio romancista para dar coerência a esta “figura do tapete” –, uma das mais marcantes é, sem dúvida, a que envolve a lenda que deu origem à sentença latina. Criada pelo escravo Loreius, propriedade particular do tribuno romano Publius Ubonius, conforme uma exigência deste último, a dificuldade na concepção da frase é justamente o motivo da libertação interior do cativo. Quando ele enfim consegue elucidar o enigma, Loreius diz ao seu mestre, afoito para saber a resposta: “Trate-me como a um homem livre. Na verdade, eu já não sou seu escravo.”

Apesar do fim trágico desta lenda – Loreius seria traído por sua própria vaidade ao contar o segredo para Tyche, uma cortesã que informaria Ubonius, provocando assim seu suicídio –, Avalovara deve ser lido em conjunto com Problemas Inculturais Brasileiros porque mostra, por meio do seu drama “cósmico-simbólico” (nas palavras de José Paulo Paes), a solução que Osman Lins tanto procurava na sua própria biografia: a liberdade do artista surge somente no trato com a linguagem concreta, aquela que, quando alguém pede um copo d´água, trazem-no um copo d´água, nunca um punhal – a mesma linguagem que faz o escritor ser, na sociedade moderna e idólatra da técnica desumanizada, “um rumor, uma força espiritual, a consciência de um momento, a secreta lucidez de um povo”.

Isso não significa que Lins era um sujeito preocupado somente com as elucubrações intelectualistas ou – o que é pior – idealistas, típicos daqueles que pretendem viver por meio do verbo. Pelo contrário: em seus artigos, é nítida a preocupação que tem com as coisas concretas da vida cotidiana. É perturbador lê-lo ao descrever as diversas maneiras como a sociedade, indiretamente, retira do cidadão todas as possibilidades da leitura em público – desde as fracas luzes dos ônibus e dos metrôs (felizmente resolvidas nos nossos dias) até o ruído da televisão nos salões de entrada dos hotéis luxuosos. E é também emocionante vê-lo relembrar a liberdade que seu pai, um humilde alfaiate, tinha ao fazer ternos sob medida para o povoado de Vitória de Santo Antão. Aqui, o patriarca é um artesão que, ao criar obras semelhantes ao que o filho faria com seus livros, se torna o verdadeiro exemplo de como podemos escapar de qualquer tipo de opressão.

É claro que estes modelos também seriam estendidos à vida do espírito. Não à toa, Osman Lins se vê alinhado na mesma tradição de Lima Barreto, Graciliano Ramos, Hermilo Borba Neto e o padre jesuíta José de Anchieta – e, last but not least, James Joyce. Todos foram soldados numa guerra silenciosa que parece ser a tônica dominante em uma nação possuída pela estupidez sem limites. No texto final desta coletânea mais do que profética, Diante do Túmulo de James Joyce, o escritor pernambucano narra como foi sua visita no memorial que cobre os restos mortais do vate irlandês em Zurique, na Suíça. Ao olhar para a famosa estátua, com Joyce sendo retratado numa “atitude descuidada”, ele se pergunta se o criador de Ulysses precisaria mesmo de um túmulo para ser lembrado: “Não é a sua obra inscrição e monumento?”

A resposta de Lins foi afirmativa: “Por esse pó, um dia transitou o verbo” – e o mesmo deve ser dito sobre quem nos deu Avalovara e Problemas Inculturais Brasileiros, livros que explicam o Brasil acima de todos com Deus acima de tudo. A única coisa a se reclamar desta publicação primorosa, feita em Recife, é que ela deveria estar na mesa de cabeceira de cada cidadão. Mas isto será algo infelizmente impossível, pois, logo na derradeira página do volume, lemos a seguinte informação técnica, provando tudo o que foi escrito anteriormente por Lins: “Tiragem: 300 exemplares”. De fato, na Terra de Santa-Cruz, onde cada escritor imita um Anchieta que prega o evangelho na taba, os números não mentem. ] É AUTOR DE ‘CRISE E UTOPIA – O DILEMA DE THOMAS MORE’E ‘A POEIRA DA GLÓRIA – UMA (INESPERADA)  HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA’

Dizem que os números não mentem. Uma das provas dessa afirmação está nos dados que tentam abarcar a falta que faz um gigante das letras nacionais como Osman Lins. Nascido há 94 anos, em 5 de julho de 1924, e morto há 40, em 1978, cinco anos depois de lançar Avalovara – a sua obra-prima –, ele retorna do mundo dos mortos com Problemas Inculturais Brasileiros, organizado por Fábio Andrade e que reúne dois livros de combate cultural escritos no final da vida – Do Ideal e da Glória (1977) e o póstumo Evangelho na Taba (1979).

O escritor pernambucano Osman Lins Foto: Estadão Acervo

Composto por artigos divulgados em vários jornais da época – entre eles, o Estado –, o relançamento mostra que Osman Lins continua relevante. Partindo da tradição de crítica cultural compartilhada por outros polemistas da imprensa escrita – como Paulo Francis, José Guilherme Merquior e Bruno Tolentino –, ele sempre viu o papel do escritor na sociedade moderna similar ao de um sujeito que vive uma “guerra sem testemunhas”, um combate feito na surdina no qual o ambiente desfavorável criado no Brasil sempre comprometeu o desenvolvimento da única coisa que importa na formação de um país: a liberdade interior.

No clássico artigo Do Ideal e da Glória, Lins explica que, para este tipo de liberdade frutificar no Brasil, existe uma série de outros fatores que faz o ato de escrever, praticado sem qualquer tipo de concessão ao poder instituído, alcançar a plenitude – no caso, a situação material do escritor. A partir daí, desenvolve um raciocínio implacável sobre como há todo um clima de totalitarismo cultural que simplesmente impede, por exemplo, um jovem aprendiz no ofício da escrita de persistir no seu idealismo para conquistar algo por meio do triunfo da palavra. Nos outros textos da nova coletânea, o autor de Nove, Novena ramifica este princípio político (ou, no caso, antipolítico) para chegar ao ponto central da sua argumentação: a tal da glória de quem pretende vencer no reino das letras é, “para o verdadeiro escritor, ser lido – principalmente pelo seu povo – e poder viver do seu trabalho sem precisar de envilecê-lo”.

Contudo, para Lins, a popularidade de uma obra literária não significa também a vitória de um escritor best-seller – pois este último pode igualmente ter se rendido a um outro tipo de poder, simbolizado pelos “futuros inquisidores”. Em um texto com este mesmo título, ficamos perturbados ao notarmos como a nossa intelligentsia, tanto a da esquerda como a da direita, ainda está enredada em um pacto secreto entre o escritor e os novos potentados surgidos por aqui neste final de 2018. Este tipo de imposição “é um dos modos através dos quais o poder tenta amortecer os focos de renovação ou resistência. Mas que dos seus próprios pares, dos que como ele trabalham com a palavra, venha o escritor receber também pressões é muito mais sério. Significa que: a) certos autores, cegos pela ambição de se afirmarem, são capazes de ser tão intolerantes como qualquer autoridade (faltando-lhes, apenas, a força); b) subsiste, estranhamente, em muitos intelectuais, não me interessa se com as melhores intenções, um gérmen anti-intelectualista; c) paira sobre nós a ameaça de, livres das pressões que hoje nos esmagam, vermo-nos na dependência de outras, agindo em outra direção, mas tão cerceadoras quanto as atuais”.

É impressionante como Osman Lins, mesmo morto, parece se referir não só aos professores ideólogos que infestam nossas universidades, como também à deformação do movimento Escola Sem Partido, feito pelos seus defensores mais ardorosos – sempre, é claro, com o intento de manter a pureza do ensino. Esta suspeita pelo poder – e a liberdade oriunda no trato verdadeiro (e imperfeito) com a palavra – também permeiam a sua ficção, principalmente em Avalovara que, apesar dos seus experimentalismos formais e as diversas tramas que conta, lida com um tema muito simples e, ao mesmo tempo, universal, articulado na seguinte frase dita por Abel, o personagem principal desta saga: “A opressão infiltra-se nos ossos e invade tudo.”

Foi contra esta opressão quase absoluta, no limiar entre o caos e a ordem petrificada, que Lins inspirou-se no famoso palíndromo em latim – Sator Arepo Tenet Opera Rotas (algo como “O lavrador mantém cuidadosamente a charrua nos sulcos” ou “O lavrador sustém cuidadosamente o mundo em sua órbita”) – para elaborar a estrutura intrincada de Avalovara. De todas as histórias narradas neste romance magnífico – do romance entre Abel e a mulher inominada à tragédia que cerca o misterioso relógio de Julius Heckethorn, passando pelo drama oculto do próprio romancista para dar coerência a esta “figura do tapete” –, uma das mais marcantes é, sem dúvida, a que envolve a lenda que deu origem à sentença latina. Criada pelo escravo Loreius, propriedade particular do tribuno romano Publius Ubonius, conforme uma exigência deste último, a dificuldade na concepção da frase é justamente o motivo da libertação interior do cativo. Quando ele enfim consegue elucidar o enigma, Loreius diz ao seu mestre, afoito para saber a resposta: “Trate-me como a um homem livre. Na verdade, eu já não sou seu escravo.”

Apesar do fim trágico desta lenda – Loreius seria traído por sua própria vaidade ao contar o segredo para Tyche, uma cortesã que informaria Ubonius, provocando assim seu suicídio –, Avalovara deve ser lido em conjunto com Problemas Inculturais Brasileiros porque mostra, por meio do seu drama “cósmico-simbólico” (nas palavras de José Paulo Paes), a solução que Osman Lins tanto procurava na sua própria biografia: a liberdade do artista surge somente no trato com a linguagem concreta, aquela que, quando alguém pede um copo d´água, trazem-no um copo d´água, nunca um punhal – a mesma linguagem que faz o escritor ser, na sociedade moderna e idólatra da técnica desumanizada, “um rumor, uma força espiritual, a consciência de um momento, a secreta lucidez de um povo”.

Isso não significa que Lins era um sujeito preocupado somente com as elucubrações intelectualistas ou – o que é pior – idealistas, típicos daqueles que pretendem viver por meio do verbo. Pelo contrário: em seus artigos, é nítida a preocupação que tem com as coisas concretas da vida cotidiana. É perturbador lê-lo ao descrever as diversas maneiras como a sociedade, indiretamente, retira do cidadão todas as possibilidades da leitura em público – desde as fracas luzes dos ônibus e dos metrôs (felizmente resolvidas nos nossos dias) até o ruído da televisão nos salões de entrada dos hotéis luxuosos. E é também emocionante vê-lo relembrar a liberdade que seu pai, um humilde alfaiate, tinha ao fazer ternos sob medida para o povoado de Vitória de Santo Antão. Aqui, o patriarca é um artesão que, ao criar obras semelhantes ao que o filho faria com seus livros, se torna o verdadeiro exemplo de como podemos escapar de qualquer tipo de opressão.

É claro que estes modelos também seriam estendidos à vida do espírito. Não à toa, Osman Lins se vê alinhado na mesma tradição de Lima Barreto, Graciliano Ramos, Hermilo Borba Neto e o padre jesuíta José de Anchieta – e, last but not least, James Joyce. Todos foram soldados numa guerra silenciosa que parece ser a tônica dominante em uma nação possuída pela estupidez sem limites. No texto final desta coletânea mais do que profética, Diante do Túmulo de James Joyce, o escritor pernambucano narra como foi sua visita no memorial que cobre os restos mortais do vate irlandês em Zurique, na Suíça. Ao olhar para a famosa estátua, com Joyce sendo retratado numa “atitude descuidada”, ele se pergunta se o criador de Ulysses precisaria mesmo de um túmulo para ser lembrado: “Não é a sua obra inscrição e monumento?”

A resposta de Lins foi afirmativa: “Por esse pó, um dia transitou o verbo” – e o mesmo deve ser dito sobre quem nos deu Avalovara e Problemas Inculturais Brasileiros, livros que explicam o Brasil acima de todos com Deus acima de tudo. A única coisa a se reclamar desta publicação primorosa, feita em Recife, é que ela deveria estar na mesa de cabeceira de cada cidadão. Mas isto será algo infelizmente impossível, pois, logo na derradeira página do volume, lemos a seguinte informação técnica, provando tudo o que foi escrito anteriormente por Lins: “Tiragem: 300 exemplares”. De fato, na Terra de Santa-Cruz, onde cada escritor imita um Anchieta que prega o evangelho na taba, os números não mentem. ] É AUTOR DE ‘CRISE E UTOPIA – O DILEMA DE THOMAS MORE’E ‘A POEIRA DA GLÓRIA – UMA (INESPERADA)  HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA’

Dizem que os números não mentem. Uma das provas dessa afirmação está nos dados que tentam abarcar a falta que faz um gigante das letras nacionais como Osman Lins. Nascido há 94 anos, em 5 de julho de 1924, e morto há 40, em 1978, cinco anos depois de lançar Avalovara – a sua obra-prima –, ele retorna do mundo dos mortos com Problemas Inculturais Brasileiros, organizado por Fábio Andrade e que reúne dois livros de combate cultural escritos no final da vida – Do Ideal e da Glória (1977) e o póstumo Evangelho na Taba (1979).

O escritor pernambucano Osman Lins Foto: Estadão Acervo

Composto por artigos divulgados em vários jornais da época – entre eles, o Estado –, o relançamento mostra que Osman Lins continua relevante. Partindo da tradição de crítica cultural compartilhada por outros polemistas da imprensa escrita – como Paulo Francis, José Guilherme Merquior e Bruno Tolentino –, ele sempre viu o papel do escritor na sociedade moderna similar ao de um sujeito que vive uma “guerra sem testemunhas”, um combate feito na surdina no qual o ambiente desfavorável criado no Brasil sempre comprometeu o desenvolvimento da única coisa que importa na formação de um país: a liberdade interior.

No clássico artigo Do Ideal e da Glória, Lins explica que, para este tipo de liberdade frutificar no Brasil, existe uma série de outros fatores que faz o ato de escrever, praticado sem qualquer tipo de concessão ao poder instituído, alcançar a plenitude – no caso, a situação material do escritor. A partir daí, desenvolve um raciocínio implacável sobre como há todo um clima de totalitarismo cultural que simplesmente impede, por exemplo, um jovem aprendiz no ofício da escrita de persistir no seu idealismo para conquistar algo por meio do triunfo da palavra. Nos outros textos da nova coletânea, o autor de Nove, Novena ramifica este princípio político (ou, no caso, antipolítico) para chegar ao ponto central da sua argumentação: a tal da glória de quem pretende vencer no reino das letras é, “para o verdadeiro escritor, ser lido – principalmente pelo seu povo – e poder viver do seu trabalho sem precisar de envilecê-lo”.

Contudo, para Lins, a popularidade de uma obra literária não significa também a vitória de um escritor best-seller – pois este último pode igualmente ter se rendido a um outro tipo de poder, simbolizado pelos “futuros inquisidores”. Em um texto com este mesmo título, ficamos perturbados ao notarmos como a nossa intelligentsia, tanto a da esquerda como a da direita, ainda está enredada em um pacto secreto entre o escritor e os novos potentados surgidos por aqui neste final de 2018. Este tipo de imposição “é um dos modos através dos quais o poder tenta amortecer os focos de renovação ou resistência. Mas que dos seus próprios pares, dos que como ele trabalham com a palavra, venha o escritor receber também pressões é muito mais sério. Significa que: a) certos autores, cegos pela ambição de se afirmarem, são capazes de ser tão intolerantes como qualquer autoridade (faltando-lhes, apenas, a força); b) subsiste, estranhamente, em muitos intelectuais, não me interessa se com as melhores intenções, um gérmen anti-intelectualista; c) paira sobre nós a ameaça de, livres das pressões que hoje nos esmagam, vermo-nos na dependência de outras, agindo em outra direção, mas tão cerceadoras quanto as atuais”.

É impressionante como Osman Lins, mesmo morto, parece se referir não só aos professores ideólogos que infestam nossas universidades, como também à deformação do movimento Escola Sem Partido, feito pelos seus defensores mais ardorosos – sempre, é claro, com o intento de manter a pureza do ensino. Esta suspeita pelo poder – e a liberdade oriunda no trato verdadeiro (e imperfeito) com a palavra – também permeiam a sua ficção, principalmente em Avalovara que, apesar dos seus experimentalismos formais e as diversas tramas que conta, lida com um tema muito simples e, ao mesmo tempo, universal, articulado na seguinte frase dita por Abel, o personagem principal desta saga: “A opressão infiltra-se nos ossos e invade tudo.”

Foi contra esta opressão quase absoluta, no limiar entre o caos e a ordem petrificada, que Lins inspirou-se no famoso palíndromo em latim – Sator Arepo Tenet Opera Rotas (algo como “O lavrador mantém cuidadosamente a charrua nos sulcos” ou “O lavrador sustém cuidadosamente o mundo em sua órbita”) – para elaborar a estrutura intrincada de Avalovara. De todas as histórias narradas neste romance magnífico – do romance entre Abel e a mulher inominada à tragédia que cerca o misterioso relógio de Julius Heckethorn, passando pelo drama oculto do próprio romancista para dar coerência a esta “figura do tapete” –, uma das mais marcantes é, sem dúvida, a que envolve a lenda que deu origem à sentença latina. Criada pelo escravo Loreius, propriedade particular do tribuno romano Publius Ubonius, conforme uma exigência deste último, a dificuldade na concepção da frase é justamente o motivo da libertação interior do cativo. Quando ele enfim consegue elucidar o enigma, Loreius diz ao seu mestre, afoito para saber a resposta: “Trate-me como a um homem livre. Na verdade, eu já não sou seu escravo.”

Apesar do fim trágico desta lenda – Loreius seria traído por sua própria vaidade ao contar o segredo para Tyche, uma cortesã que informaria Ubonius, provocando assim seu suicídio –, Avalovara deve ser lido em conjunto com Problemas Inculturais Brasileiros porque mostra, por meio do seu drama “cósmico-simbólico” (nas palavras de José Paulo Paes), a solução que Osman Lins tanto procurava na sua própria biografia: a liberdade do artista surge somente no trato com a linguagem concreta, aquela que, quando alguém pede um copo d´água, trazem-no um copo d´água, nunca um punhal – a mesma linguagem que faz o escritor ser, na sociedade moderna e idólatra da técnica desumanizada, “um rumor, uma força espiritual, a consciência de um momento, a secreta lucidez de um povo”.

Isso não significa que Lins era um sujeito preocupado somente com as elucubrações intelectualistas ou – o que é pior – idealistas, típicos daqueles que pretendem viver por meio do verbo. Pelo contrário: em seus artigos, é nítida a preocupação que tem com as coisas concretas da vida cotidiana. É perturbador lê-lo ao descrever as diversas maneiras como a sociedade, indiretamente, retira do cidadão todas as possibilidades da leitura em público – desde as fracas luzes dos ônibus e dos metrôs (felizmente resolvidas nos nossos dias) até o ruído da televisão nos salões de entrada dos hotéis luxuosos. E é também emocionante vê-lo relembrar a liberdade que seu pai, um humilde alfaiate, tinha ao fazer ternos sob medida para o povoado de Vitória de Santo Antão. Aqui, o patriarca é um artesão que, ao criar obras semelhantes ao que o filho faria com seus livros, se torna o verdadeiro exemplo de como podemos escapar de qualquer tipo de opressão.

É claro que estes modelos também seriam estendidos à vida do espírito. Não à toa, Osman Lins se vê alinhado na mesma tradição de Lima Barreto, Graciliano Ramos, Hermilo Borba Neto e o padre jesuíta José de Anchieta – e, last but not least, James Joyce. Todos foram soldados numa guerra silenciosa que parece ser a tônica dominante em uma nação possuída pela estupidez sem limites. No texto final desta coletânea mais do que profética, Diante do Túmulo de James Joyce, o escritor pernambucano narra como foi sua visita no memorial que cobre os restos mortais do vate irlandês em Zurique, na Suíça. Ao olhar para a famosa estátua, com Joyce sendo retratado numa “atitude descuidada”, ele se pergunta se o criador de Ulysses precisaria mesmo de um túmulo para ser lembrado: “Não é a sua obra inscrição e monumento?”

A resposta de Lins foi afirmativa: “Por esse pó, um dia transitou o verbo” – e o mesmo deve ser dito sobre quem nos deu Avalovara e Problemas Inculturais Brasileiros, livros que explicam o Brasil acima de todos com Deus acima de tudo. A única coisa a se reclamar desta publicação primorosa, feita em Recife, é que ela deveria estar na mesa de cabeceira de cada cidadão. Mas isto será algo infelizmente impossível, pois, logo na derradeira página do volume, lemos a seguinte informação técnica, provando tudo o que foi escrito anteriormente por Lins: “Tiragem: 300 exemplares”. De fato, na Terra de Santa-Cruz, onde cada escritor imita um Anchieta que prega o evangelho na taba, os números não mentem. ] É AUTOR DE ‘CRISE E UTOPIA – O DILEMA DE THOMAS MORE’E ‘A POEIRA DA GLÓRIA – UMA (INESPERADA)  HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA’

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