Os dois únicos Otto que tive o privilégio de desfrutar como amigos estão de volta ao noticiário cultural. O austríaco Carpeaux (Otto Maria) com a reedição, pela Faro Editorial, de sua História da Música, lançada 64 anos atrás, e o mineiro Lara Resende com um documentário, Otto, De Trás P/ Diante, dirigido por sua filha caçula, Helena, e Marcos Ribeiro, exibido esta semana no Festival de Cinema do Rio. Não conheci xarás que lhes fizessem sombra, nem me apontaram outro palíndromo de comparáveis grandezas. Verdade que o americano Otto Soglow, criador do Reizinho dos quadrinhos, nunca viveu entre nós.
Conheci, e até entrevistei, Rian, nom de plume adotado pela versátil Nair de Teffé, segunda esposa do presidente (e marechal) Hermes da Fonseca e nossa primeira mulher caricaturista. Vê-se que já fomos bem melhores também em matéria de primeira-dama. De marechais, nem tanto.
O simples, sensível e amoroso documentário da Heleninha, articulado em torno de cartas, bilhetes e outros escritos de seu grafomaníaco pai, lidos pela atriz Julia Lemmertz e pelo ator Rodolfo Vaz (um Otto muito mais do que convincente), tem o condão de despertar inveja naqueles que não conviveram com o biografado e seus três mais íntimos cupinchas mineiros e muita saudade naqueles que testemunharam o seu tempo, para ele encerrado em 28 de dezembro de 1992, dois dias antes, hélàs!, do impedimento do presidente Fernando Collor de Mello, pelo qual ansiava fervorosamente.
Quando há dias o ogro que nos governa ameaçou a República de, se reeleito, escalar Collor como ministro, fui, só de curiosidade, pesquisar o que Otto escreveu sobre ele, em suas crônicas na Folha entre 1991 e 1992. Elogiou-lhe a eloquência, e foi só. Abordou discretamente a polêmica em torno das acusações de plágio envolvendo o diplomata e ensaísta José Guilherme Merquior, e não se furtou a equiparar o plagiário presidente em fim de mandato a “um Napoleão de hospício”.
Otto foi meu inesperado guia por Lisboa na primeira vez em que a visitei, em 1969. Prestes a deixar seu posto de adido cultural em Portugal, encontrei-o na casa de Cláudio Mello e Souza, e ele me adotou, sem papel passado. Tive a honra de substituí-lo nas férias e folgas no espaço que lhe cabia na página 2 da Folha e de ter sido, também, o primeiro repórter a entrevistá-lo sobre a barba que, no auge de uma depressão, desempregado e sem planos para o futuro, decidiu cultivar em meio aos festejos do réveillon de 1984. “Se eu fosse um pouco mais burro, seria mais feliz”, foi um de seus primeiros desabafos com aquele new look meio Hemingway, meio Papai Noel, meio mendigo.
Compartilhávamos muito mais afeições, manias e idiossincrasias, além de torcer pelo Botafogo, do que a princípio supúnhamos. Apinhar de informações inúteis o cérebro, por exemplo. Vez por outra, altas horas, ele me ligava, intermediado pelo arquiteto Marcos de Vasconcellos, para tirar dúvidas sobre o nome de uma loja de eletrodomésticos famosa no centro do Rio dos anos 1950 ou como era mesmo que se chamava o personagem de Orson Welles em O Terceiro Homem. E se eu respondesse de primeira, no automático, resmungava: “Bandido!”
O que estaria achando e dizendo desse pandemônio em que nos meteram?, indagou-me um amigo em comum, ao final da sessão deOtto, Detrás P/ Diante. Fácil de prever, dado o proverbial ceticismo do personagem. Cético, porém propenso à ironia, talvez agradecesse não estar mais vivo para presenciar o grotesco espetáculo diuturnamente oferecido por Bolsonaro.
Em outro momento de crise nacional, embora não comparável ao atual, chegou a ameaçar “trancar sua matrícula de brasileiro”. Nos estertores do governo Collor, admitiu “não ter o direito de enjoar a bordo do Brasil”, reconhecendo afinal que, por ter assistido tantas vezes àquele filme, tinha, sim, o direito ao enjoo. Hoje é provável que estivesse vomitando a própria alma.<