RODRIGO FONSECA Lá pelas tantas das (necessárias e válidas) três horas e nove minutos de "Babilônia", fala-se em Proust. Fala-se nele, em parte, porque o crepuscular novo filme de Damien Chazelle é uma "busca do tempo perdido", igualzinho ao título do pilar literário publicado do escritor francês, que diz: "A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em procurar novas paisagens, e sim em ter novos olhos". Sempre que alguém te dizer que o desbunde promovido pelo realizador de "La La Landa" (2016) é "mais do mesmo", tipo xerox do ethos de "Cantando na Chuva" (1952) - e vão te dizer isso, num empenho de desmerecer uma experiência narrativa avessa aos aparelhos ideológicos castradores da atualidade -, lembre-se de Proust. Liberte-se. O que Chazelle nos mostra é ressaca... das mais ressequidas e paralisantes. Uma ressaca diante de um sonho que, em alguma medida triste, despertou(-se), para sonhar de novas formas, sejam elas neorrealistas, cinemanovistas, godardianas, videoartísticas, VRs ou apenas pipocas. Acabou aquele sonho dos Anos Loucos, os anos 1920, em que a vida seria uma festa, inclusive na maneira de se viver a euforia motovisual de um tipo de linguagem plenamente cinemática, de puro movimento. Mas surgiram outros sonhos. Sonhou-se Maya Daren, Rossellini, Henri-Georges Clouzot, Satyajit Ray, Yasujiro Ozu, Agnès Varda, Ousmane Sembene, Glauber Rocha, e por aí fomos... e vamos. Ainda vamos. O "ainda" é necessário pelo fato de a superprodução com Margot Robbie, Tobey Maguire e (um sublime) Brad Pitt chegar ao circuito num período da História em que o prazo de validade da arte cinematográfica anda apregoado por aí como se estivesse no fim, pela pandemia, pela streaminguesfera, e até por uma mudança de comportamento na qual as pessoas estão mais nos i-Phones do que nas telonas. É, portanto, um filme de alerta. Alerta proustiano acerca de uma grandiosidade humana que a gente pode perder se deixar a frequentar as salas, por medo do nada, por inércia. "Babilônia" merece ser visto em sala. Ele nos renova.
Aos 37 anos, Chazelle cresceu numa época em que "Sunset Blvd.", o "Crepúsculo dos Ídolos" (1950), de Billy Wilder, um tratado sobre o cinema, já estava em DVDs, com versões de áudio em muitas línguas - inclusive com dona Neuza Tavares a dublar Gloria Swanson. O cineasta que nos surpreendeu com "Whiplash: Em Busca da Perfeição" (2014) formou-se entre o ocaso do VHS e a gênese dos códigos digitais. Era moleque quando Paul Thomas Anderson alvoreceu para o estrelato com "Boogie Nights" (1997), um filme com o qual "Babilônia" conversa em muitas medidas, estruturalmente e até conceitualmente. São dois filmes sobre a perda da inocência numa indústria que evolui do charme para a praticidade. Quem talvez melhor fale sobre isso, o "prático", seja um cineasta proscrito, com fama de maldito, Kenneth Anger. Hoje com 95 anos, ele desafiou (in)certezas com "Scorpio Rising", em 1963. Não por acaso, ele escreveu um livro chamado "Hollywood Babylon", cuja páginas iluminam o que se vê com Chazelle. Diz Anger: "Sempre considerei o cinema algo do Mal. O dia em que o cinema foi inventado foi um dia de trevas para a humanidade. Digo isso assim pois a minha definição de Maldade não é como a de todos os outros. O Mal está envolvido no glamour e no encanto da existência material, glamour em seu velho sentido gaélico, significando 'encantamento com o olhar das coisas', e não com a alma das coisas. O Mal do cinema é a liberdade".
Nessa lógica, "Babilônia" é um filme livre, totalmente. Os atos dramatúrgicos em seu roteiro que não se submetem a nenhuma fórmula, flanando do apogeu à derrota sem chance alguma de redenção, como é típico (leia-se "autoral") em Chazelle. Nele, os heróis perdem. Nele, o amor dói, arde, tropeça. Ficam saudades. É o que temos diante de uma ideia idílica da Era Muda, que termina com a chegada dos "talkies", os filmes falados, a partir de "O Cantor de Jazz" (1927). A fim de mostrar como foi o extermínio moral das três primeiras décadas de uma arte silenciosa, dependente de um suporte físico (as cartelas de texto), Chazelle parte da euforia em seu estado mais dionisíaco e nos dá uma festa (suruba é o melhor termo). Festa que mistura, em nossos referenciais históricos, o (cada vez mais vivo) "Rio Babilônia" (1982), do mineiro Neville D'Almeida (discípulo assumido de Kenneth Anger) com "A Grande Beleza" (2013), de Paolo Sorrentino. São sequências de gozo, de porre, de dança que libertam nossa mirada de toda a sanha diet e asséptica dos discursos contemporâneo. Margot é Nellie LaRoy, uma aspirante a diva, cheia de sotaque, que entra numa festa de arromba para arranjar um lugar ao sol e desperta a atenção de um faz-tudo mexicano, Manuel "Manny" Torres, vivido por Diego Calva, impecável no papel de uma figura periférica encantado com a chance de inclusão. Calva cai de amores pela moça instantaneamente, num apaixonamento que vem da conexão entre ambos: a ambição amortecida pelo encanto... os tais "olhos de descoberta" de que falava Proust, no início desta crítica. Incansável pra trabalhar, Manny vai ganhar a confiança de magnatas e de astros, em especial a de Jack Conrad, herói dos filmes silenciosos encarnado por Brad Pitt. Ele é o espelho rasgado do hoje esquecido John Gilbert (1897-1936), parceiro de Greta Garbo em "Anna Karenina" (1927), "Mulher de Brio" (1928) e tantas joias.
Na luta para se firmar não apenas num emprego, mas num posto de poder, Manny cruza com figuras que Chazelle elenca numa etnografia sentimental de um mundo em desmanche. Tem a cantora e performer Lady Fay Zhu (Li Jun Li), a colunista social Elinor St. John (Jane Smart), o jazzista Sidney (Jovan Adepo, em memorável atuação, numa luta antirracista), a cineasta Ruth Adler (Olivia Hamilton) e o depressivo produtor George Munn (Lukas Haas, ótimo). Cada um deles é um símbolo de uma semiologia atenta a resquícios espatifados de um projeto cultural. Um projeto em que o cinema era uma montanha-russa com ambições de arte. Num dos mais belos diálogos (não só) do filme (mas de todo o audiovisual contemporâneo), o personagem de Pitt faz uma reflexão sobre a natureza popular do cinema, explicando a uma atriz da Broadway o que existe de poético nas matinés, dos ditos "filmes de mercado", na "sessão da tarde", nas chanchadas enfim, em tudo aquilo que, em crivos de cânone, é impuro. Mas foi Anger quem falou: "A arte se torna ritual na impureza". Nessa tal impureza, numa anunciada "imperfeição", o imperdível "Babilônia" pode até parecer grande demais pro "agora", mas cabe na gente. Ganhadora do Globo de Ouro de Melhor Trilha Sonora, a música do filme, composta por Justin Hurwitz, encaixa-se bem na gente, mas nos transcende. Tudo ali transcende. É cinema!