Rodrigo Fonseca Com uma bilheteria de US$ 77,4 milhões, "A Lenda de Candyman" vai entrar na grade do Telecine Premium, neste sábado, às 22h, dando uma oxigenada no menu de horror da TV a cabo. É um tráfego de sucesso da telona pra televisão, onde vai incrementar sua análise antirracista. Estruturado sobre a premissa de que demônio algum é mais assustador do que o racismo, "A Lenda de Candyman" é arrebatador - e necessário - em múltiplas camadas, de sua dimensão política à sua precisa conexão com a cartilha mais espetaculosa do horror (o chamado jump scare). O longa se destaca em especial pela "escrita fílmica", pelo movimento de câmera. Não há um segundo desta dita "sequência espiritual" do cult "O Mistério de Candyman", dirigido por Bernard Rose em 1992, em que não haja uma distorção da imagem, um zoom, um movimento de achatamento ou de ampliação de quadro pelas lentes. É nevrálgico o modo como a diretora nova-iorquina Nia DaCosta, de 33 anos, conduz uma narrativa alinhada com o projeto estético de seu produtor (e aqui também roteirista) Jordan Peele, o cineasta por trás de "Corra!" (2017) e de "Nós" (2019). E isso sem deixar de imprimir uma voz própria. Há muito do clima tenso de seu neo western "Little Woods" (traduzido porcamente aqui como "Passando dos Limites"), de 2018, na maneira como a diretora filma uma Chicago de classe média intelectual, ligada ao universo das artes plásticas. Gentrificação, um dos fantasmas de seu longa-metragem anterior, volta aqui, na maneira como a cineasta resgata filigranas do conto "The Forbidden", publicado em 1986 pelo inglês Clive Barker e, sobretudo, de seu derivado audiovisual dos anos 1990, que Rose filmou. Desse filmaço dele vieram alusões à personagem de Virginia Madsen - Helen Lyle, pesquisadora de lendas urbanas que é atropelada pela manifestação de forças sobrenaturais - e ao ator Tony Todd, que cedeu seu rosto ao vingador do Além que dá título ao projeto. Em fina sintonia com a genealogia da exclusão de Peele, Nia se apropria da ideia do enxame como metáfora da fúria branca contra as populações negras. Abelhas fazem parte essencial do universo do Candyman ("Homem-Doce", na tradição literal), uma vez que a gênese do mito envolve mel de abelhas esfregado no corpo de um homem do século XIX, Daniel Robitaille, hostilizado por racistas. E elas voltam a zumbir agora, quando o pintor Anthony McCoy (Yahya Abdul-Mateen II, em alta voltagem dramática) se debruça sobre os escombros das Cabrini Towers, conjunto habitacional de 1942 que entrou em demolição de 1995 a 2011. É de lá que ele pretende tirar novas tintas e paisagens para uma linha realista em sua pintura, que choca sua mulher, a galerista Brianna (Teyonah Parris , a Lisístrata de Spike Lee, em "Chi-Raq"). E é lá que um ferrão infecta sua mão com a seiva de um passado inaudito, repleto de sombras ancestrais da intolerância. Passado que Nia recria com recursos de animação com gravuras, recortes e silhuetas bem similar às da diretora e artista plástica alemã Lotte Reiniger (1899-1981).
Nas epilépticas sequências live action, o diretor de fotografia John Guleserian aposta numa carregadíssima paleta de cores, abrindo sazonais chiaroscuros e criando contrastes entre ambientes alvíssimos e roupas retintas. A direção de arte de Jami Primmer e Ines Rose vai pelo mesmo caminho, o da saturação. Tudo é cheio e vivo, como numa colmeia. Mas em lugar de açúcar, a sociedade que ali se entoca produz amargura e derrama sangue, em especial a porção que usa farda, numa crítica ferina de Nia aos atentados recentes da polícia contra vidas negras. Atentados nos EUA e fora dele, a se recordar do nefasto massacre no Jacarezinho, no RJ, em maio de 2021. Por isso, esse novo - e precioso - "Candyman" é bem mais universal... bem mais próximo de nós... do que parece, politizando o filão horror com inteligência e urgência, de modo a construir um filme mais enervante. Na versão brasileira Yahya Abdul-Mateen II foi dublado por Rodrigo Oliveira.
p.s.: Nesta terça, às 19h, o Estação Net Botafogo empresta sua telona ao Cineclube Atlântico Negro, com curadoria de Clementino Junior, para exibir "Esse Amor Que Nos Consome", de Allan Ribeiro, em homenagem ao bailarino e coreógrafo Rubens Barbot.
p.s.2: Que heranças a sociedade brasileira carrega da ditadura militar? Por que os livros didáticos nos ensinam tão pouco sobre esse violento período da história recente do país? Como as gerações que nasceram após 1985 enxergam os anos de chumbo? O documentário cênico "O que sobrou", que estreia dia 13 de abril no Teatro Glaucio Gill, em Copacabana, foi construído a partir de episódios reais para refletir e provocar debates sobre esses questionamentos. Com texto de Pedro Henrique Lopes e direção de Diego Morais, a peça parte de episódios retirados de livros, documentários e documentos históricos para estabelecer uma relação com cenas e personagens da vida contemporânea ."O texto foi todo construído a partir de depoimentos e histórias reais. Todos os sentimentos e reflexões que os personagens externam na peça foram expostos por pessoas que viveram aquele período e passaram por perseguições e torturas", explica o autor Pedro Henrique Lopes. "Todas as pessoas da equipe criativa do espetáculo nasceram depois de 1985, quando terminou a ditadura. Não temos a pretensão de reconstituir os fatos, os atores aparecem como interlocutores de relatos e documentos. Buscamos entender como esses eventos políticos reverberam nas gerações atuais, na tentativa de incentivar um debate social, político e histórico", acrescenta o diretor Diego Morais.