De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

Circuito francês em tempo de 'Nostalgia'


Por Rodrigo Fonseca
Pierfrancesco Favino vive um italiano convertido ao Islã que regressa a Nápoles para cuidar de sua mãe e acertar contas com o passado no longa-metragem de Mario Martone  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA Mesmo tomado por "Avatar: O Caminho da Água" e já cobiçado pelos potenciais candidatos ao Oscar, o circuito exibidor comercial francês dedicou salas de cerca de 15 complexos luxuosos de Paris para uma joia italiana: "Nostalgia". É um drama com elementos de thriller de máfia, doído, tocante, tenso. Há tempos, desde "A Grande Beleza" (2013), de Paolo Sorrentino, uma produção da pátria de Federico Fellini não mexia tanto com os corações de cinéfilos na terra natal dos Lumière. A Itália bateu o martelo em prol dessa pedra preciosa de Mario Martone pra ser seu candidato a uma vaga para a estatueta de Melhor Filme Internacional da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Ele acabou não entrando na shortlist da instituição hollywoodiana, que destaca entre potenciais concorrentes "Close", de Lukas Dhont (Bélgica) e "Decisão de Partir", de Park Chan-Wook (Coreia do Sul). Mesmo assim, seu êxito em cartaz na Europa é inegável, consagrando seu diretor, o napolitano Mario Martone, hoje com 63 anos. Foi a Croisette quem primeiro enxergou a força desse belíssimo exercício de gênero. Aliás, ele sempre foi bem recebido no balneário francês, embora tenha um caso de amor mais longevo com o Lido. Coroado há 30 anos com o Prêmio Especial do Júri de Veneza, por "Morte di un Matematico Napoletano" (1992), Martone concorreu em Cannes, em 1995, com "L'Amore Molesto", e lá voltou, via Un Certain Regard, em 1998, com "Teatro di Guerra". Mas nada do que fez nos anos 1990 ou nas duas últimas décadas se compara ao que ele entrega em "Nostalgia", que concorreu à Palma de Ouro, em maio passado. É um filme que teve, em Cannes, um efeito de "descoberta", embora o mais correto, diante do currículo do realizador, seria falar em "redescoberta", em "reinvenção", seja dele mesmo, seja a dos códigos cinematográficos da Itália. Ele vem de um país que nos deu gigantes. De lá vieram Rossellini, De Sica, Fellini, Visconti, Antonioni, Pietro Germi, Pier Paolo Pasolini, Elio Petri, Lina Wertmüller, Valerio Zurlini, Liliana Cavani, Vittorio De Seta. Pátria próspera na seara dos filmes de gênero, seja no terror (com o giallo de Dario Argento), no faroeste (com as macarronadas de Sergio Leone, Tonino Valerii e Sergio Corbucci) e nos épicos de gladiador (o Peplum). Pátria que minguou por um bom tempo, de 1984 a 2008, vendo suas fontes de fomento à produção cinematográfica escassearem. Até campeões de bilheteria como Carlo Pedersoli e Mario Girotti (conhecidos por aqui como Bud Spencer e Terence Hill) deixaram de fazer os longas da franquia "Trinity", sob a guilhotina de Berlusconi, restando visibilidade a poucos cineastas. Giuseppe Tornatore (com "Cinema Paradiso") e Roberto Benigni (com "A Vida É Bela") souberam bem flertar com as receitas da Academia de Artes e Ciências de Hollywood. Já Nanni Moretti se edificou entre comédias políticas ("O Crocodilo") e melodramas ("O Quatro do Filho" e "Tre Piani"). Ele volta este ano com "Il Sol Dell'Avvenire" e sempre se mantém produzindo bastante. Mas poucos têm essa sorte entre seus conterrâneos.

O cineasta napolitano faz sucesso nas telas da França  Foto: Estadão
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Resistentes do movimento moderno também se mantiveram firmes, como o finado Bernardo Bertolucci, que foi fazer uma incursão pelo Oriente e filmar em outras línguas; e o até hoje imparável Marco Bellocchio ("Vincere"). Mas esses dois são crias dos anos 1960. Martone, não. Ele é um moderno tardio, estandarte da década de 1990, que não se fez na liquidez da pós-modernidade. Mas ele teve a sagacidade de entender parte das chagas desse nosso tempo, como é o caso da gentrificação; do emasculamento; do sucateamento da honra; da destruição dos signos de fé, por apostasia ou por banalização. E esse sagaz olhar rendeu a Cannes um presente em forma de 1h57 de filme, universalíssimo. Passa-se em Nápoles, mas poderia ser em Bonsucesso. Ou na Penha. Pierfrancesco Favino - que filmou "O Traidor" de Bellocchio no Rio de Janeiro, ao lado de Maria Fernanda Cândido - é o aríete com o qual Martone avança rumo à consagração e a um merecido Prêmio do Júri, com seus ângulos de câmera vívidos e inquietos, explorando a profundidade de campo da Nápoles para onde seu protagonista regressa. Ele tem 95% de "Nostalgia" pra si. Os 5% que sobram se dividem entre o padre Rega (Francesco di Leva) e o bandido Oreste (Tommaso Ragno, um sósia do brilhante Roney Villela). Este foi o maior amigo que Felice, construtor e dono de empreiteira no Egito, vivido por Pierfrancesco, teve em seus anos de formação.

 Foto: Estadão

No início do longa, Felice regressa à sua cidade natal par cuidar da mãe doente. É um terço de arrancada doce, onde a câmera do fotógrafo Paolo Carneva gira em espasmos, caçando um quadro que fuja da obviedade. Caça, caça... e consegue. Sempre. Passada essa introdução com ares melodramáticos, de mamãe e filho, uma pergunta feita por Felice muda as rédeas da narrativa: "Onde está Oreste?". No passado, os dois eram unha e carne, até um crime mudar tudo. Ao tentar entender o que foi feito daquele amor de ontem, amor de bromance, de pura amizade, Felice começa a se reencaixar numa paisagem que abandou há 40 anos. Mas nem sempre a paisagem nos quer de volta. Nem sempre aquele a quem confiamos nosso coração deu valor à imolação que fizemos, fortuitamente. O saldo é a ressaca. Mas nem toda ressaca é só de álcool, ou só de sal. Eis o que Martone nos mostra, num longa devastador. Foi um dos achados da Itália em 2022 e abre 2023 com as glórias que merece. Pelo menos na França.

Pierfrancesco Favino vive um italiano convertido ao Islã que regressa a Nápoles para cuidar de sua mãe e acertar contas com o passado no longa-metragem de Mario Martone  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA Mesmo tomado por "Avatar: O Caminho da Água" e já cobiçado pelos potenciais candidatos ao Oscar, o circuito exibidor comercial francês dedicou salas de cerca de 15 complexos luxuosos de Paris para uma joia italiana: "Nostalgia". É um drama com elementos de thriller de máfia, doído, tocante, tenso. Há tempos, desde "A Grande Beleza" (2013), de Paolo Sorrentino, uma produção da pátria de Federico Fellini não mexia tanto com os corações de cinéfilos na terra natal dos Lumière. A Itália bateu o martelo em prol dessa pedra preciosa de Mario Martone pra ser seu candidato a uma vaga para a estatueta de Melhor Filme Internacional da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Ele acabou não entrando na shortlist da instituição hollywoodiana, que destaca entre potenciais concorrentes "Close", de Lukas Dhont (Bélgica) e "Decisão de Partir", de Park Chan-Wook (Coreia do Sul). Mesmo assim, seu êxito em cartaz na Europa é inegável, consagrando seu diretor, o napolitano Mario Martone, hoje com 63 anos. Foi a Croisette quem primeiro enxergou a força desse belíssimo exercício de gênero. Aliás, ele sempre foi bem recebido no balneário francês, embora tenha um caso de amor mais longevo com o Lido. Coroado há 30 anos com o Prêmio Especial do Júri de Veneza, por "Morte di un Matematico Napoletano" (1992), Martone concorreu em Cannes, em 1995, com "L'Amore Molesto", e lá voltou, via Un Certain Regard, em 1998, com "Teatro di Guerra". Mas nada do que fez nos anos 1990 ou nas duas últimas décadas se compara ao que ele entrega em "Nostalgia", que concorreu à Palma de Ouro, em maio passado. É um filme que teve, em Cannes, um efeito de "descoberta", embora o mais correto, diante do currículo do realizador, seria falar em "redescoberta", em "reinvenção", seja dele mesmo, seja a dos códigos cinematográficos da Itália. Ele vem de um país que nos deu gigantes. De lá vieram Rossellini, De Sica, Fellini, Visconti, Antonioni, Pietro Germi, Pier Paolo Pasolini, Elio Petri, Lina Wertmüller, Valerio Zurlini, Liliana Cavani, Vittorio De Seta. Pátria próspera na seara dos filmes de gênero, seja no terror (com o giallo de Dario Argento), no faroeste (com as macarronadas de Sergio Leone, Tonino Valerii e Sergio Corbucci) e nos épicos de gladiador (o Peplum). Pátria que minguou por um bom tempo, de 1984 a 2008, vendo suas fontes de fomento à produção cinematográfica escassearem. Até campeões de bilheteria como Carlo Pedersoli e Mario Girotti (conhecidos por aqui como Bud Spencer e Terence Hill) deixaram de fazer os longas da franquia "Trinity", sob a guilhotina de Berlusconi, restando visibilidade a poucos cineastas. Giuseppe Tornatore (com "Cinema Paradiso") e Roberto Benigni (com "A Vida É Bela") souberam bem flertar com as receitas da Academia de Artes e Ciências de Hollywood. Já Nanni Moretti se edificou entre comédias políticas ("O Crocodilo") e melodramas ("O Quatro do Filho" e "Tre Piani"). Ele volta este ano com "Il Sol Dell'Avvenire" e sempre se mantém produzindo bastante. Mas poucos têm essa sorte entre seus conterrâneos.

O cineasta napolitano faz sucesso nas telas da França  Foto: Estadão

Resistentes do movimento moderno também se mantiveram firmes, como o finado Bernardo Bertolucci, que foi fazer uma incursão pelo Oriente e filmar em outras línguas; e o até hoje imparável Marco Bellocchio ("Vincere"). Mas esses dois são crias dos anos 1960. Martone, não. Ele é um moderno tardio, estandarte da década de 1990, que não se fez na liquidez da pós-modernidade. Mas ele teve a sagacidade de entender parte das chagas desse nosso tempo, como é o caso da gentrificação; do emasculamento; do sucateamento da honra; da destruição dos signos de fé, por apostasia ou por banalização. E esse sagaz olhar rendeu a Cannes um presente em forma de 1h57 de filme, universalíssimo. Passa-se em Nápoles, mas poderia ser em Bonsucesso. Ou na Penha. Pierfrancesco Favino - que filmou "O Traidor" de Bellocchio no Rio de Janeiro, ao lado de Maria Fernanda Cândido - é o aríete com o qual Martone avança rumo à consagração e a um merecido Prêmio do Júri, com seus ângulos de câmera vívidos e inquietos, explorando a profundidade de campo da Nápoles para onde seu protagonista regressa. Ele tem 95% de "Nostalgia" pra si. Os 5% que sobram se dividem entre o padre Rega (Francesco di Leva) e o bandido Oreste (Tommaso Ragno, um sósia do brilhante Roney Villela). Este foi o maior amigo que Felice, construtor e dono de empreiteira no Egito, vivido por Pierfrancesco, teve em seus anos de formação.

 Foto: Estadão

No início do longa, Felice regressa à sua cidade natal par cuidar da mãe doente. É um terço de arrancada doce, onde a câmera do fotógrafo Paolo Carneva gira em espasmos, caçando um quadro que fuja da obviedade. Caça, caça... e consegue. Sempre. Passada essa introdução com ares melodramáticos, de mamãe e filho, uma pergunta feita por Felice muda as rédeas da narrativa: "Onde está Oreste?". No passado, os dois eram unha e carne, até um crime mudar tudo. Ao tentar entender o que foi feito daquele amor de ontem, amor de bromance, de pura amizade, Felice começa a se reencaixar numa paisagem que abandou há 40 anos. Mas nem sempre a paisagem nos quer de volta. Nem sempre aquele a quem confiamos nosso coração deu valor à imolação que fizemos, fortuitamente. O saldo é a ressaca. Mas nem toda ressaca é só de álcool, ou só de sal. Eis o que Martone nos mostra, num longa devastador. Foi um dos achados da Itália em 2022 e abre 2023 com as glórias que merece. Pelo menos na França.

Pierfrancesco Favino vive um italiano convertido ao Islã que regressa a Nápoles para cuidar de sua mãe e acertar contas com o passado no longa-metragem de Mario Martone  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA Mesmo tomado por "Avatar: O Caminho da Água" e já cobiçado pelos potenciais candidatos ao Oscar, o circuito exibidor comercial francês dedicou salas de cerca de 15 complexos luxuosos de Paris para uma joia italiana: "Nostalgia". É um drama com elementos de thriller de máfia, doído, tocante, tenso. Há tempos, desde "A Grande Beleza" (2013), de Paolo Sorrentino, uma produção da pátria de Federico Fellini não mexia tanto com os corações de cinéfilos na terra natal dos Lumière. A Itália bateu o martelo em prol dessa pedra preciosa de Mario Martone pra ser seu candidato a uma vaga para a estatueta de Melhor Filme Internacional da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Ele acabou não entrando na shortlist da instituição hollywoodiana, que destaca entre potenciais concorrentes "Close", de Lukas Dhont (Bélgica) e "Decisão de Partir", de Park Chan-Wook (Coreia do Sul). Mesmo assim, seu êxito em cartaz na Europa é inegável, consagrando seu diretor, o napolitano Mario Martone, hoje com 63 anos. Foi a Croisette quem primeiro enxergou a força desse belíssimo exercício de gênero. Aliás, ele sempre foi bem recebido no balneário francês, embora tenha um caso de amor mais longevo com o Lido. Coroado há 30 anos com o Prêmio Especial do Júri de Veneza, por "Morte di un Matematico Napoletano" (1992), Martone concorreu em Cannes, em 1995, com "L'Amore Molesto", e lá voltou, via Un Certain Regard, em 1998, com "Teatro di Guerra". Mas nada do que fez nos anos 1990 ou nas duas últimas décadas se compara ao que ele entrega em "Nostalgia", que concorreu à Palma de Ouro, em maio passado. É um filme que teve, em Cannes, um efeito de "descoberta", embora o mais correto, diante do currículo do realizador, seria falar em "redescoberta", em "reinvenção", seja dele mesmo, seja a dos códigos cinematográficos da Itália. Ele vem de um país que nos deu gigantes. De lá vieram Rossellini, De Sica, Fellini, Visconti, Antonioni, Pietro Germi, Pier Paolo Pasolini, Elio Petri, Lina Wertmüller, Valerio Zurlini, Liliana Cavani, Vittorio De Seta. Pátria próspera na seara dos filmes de gênero, seja no terror (com o giallo de Dario Argento), no faroeste (com as macarronadas de Sergio Leone, Tonino Valerii e Sergio Corbucci) e nos épicos de gladiador (o Peplum). Pátria que minguou por um bom tempo, de 1984 a 2008, vendo suas fontes de fomento à produção cinematográfica escassearem. Até campeões de bilheteria como Carlo Pedersoli e Mario Girotti (conhecidos por aqui como Bud Spencer e Terence Hill) deixaram de fazer os longas da franquia "Trinity", sob a guilhotina de Berlusconi, restando visibilidade a poucos cineastas. Giuseppe Tornatore (com "Cinema Paradiso") e Roberto Benigni (com "A Vida É Bela") souberam bem flertar com as receitas da Academia de Artes e Ciências de Hollywood. Já Nanni Moretti se edificou entre comédias políticas ("O Crocodilo") e melodramas ("O Quatro do Filho" e "Tre Piani"). Ele volta este ano com "Il Sol Dell'Avvenire" e sempre se mantém produzindo bastante. Mas poucos têm essa sorte entre seus conterrâneos.

O cineasta napolitano faz sucesso nas telas da França  Foto: Estadão

Resistentes do movimento moderno também se mantiveram firmes, como o finado Bernardo Bertolucci, que foi fazer uma incursão pelo Oriente e filmar em outras línguas; e o até hoje imparável Marco Bellocchio ("Vincere"). Mas esses dois são crias dos anos 1960. Martone, não. Ele é um moderno tardio, estandarte da década de 1990, que não se fez na liquidez da pós-modernidade. Mas ele teve a sagacidade de entender parte das chagas desse nosso tempo, como é o caso da gentrificação; do emasculamento; do sucateamento da honra; da destruição dos signos de fé, por apostasia ou por banalização. E esse sagaz olhar rendeu a Cannes um presente em forma de 1h57 de filme, universalíssimo. Passa-se em Nápoles, mas poderia ser em Bonsucesso. Ou na Penha. Pierfrancesco Favino - que filmou "O Traidor" de Bellocchio no Rio de Janeiro, ao lado de Maria Fernanda Cândido - é o aríete com o qual Martone avança rumo à consagração e a um merecido Prêmio do Júri, com seus ângulos de câmera vívidos e inquietos, explorando a profundidade de campo da Nápoles para onde seu protagonista regressa. Ele tem 95% de "Nostalgia" pra si. Os 5% que sobram se dividem entre o padre Rega (Francesco di Leva) e o bandido Oreste (Tommaso Ragno, um sósia do brilhante Roney Villela). Este foi o maior amigo que Felice, construtor e dono de empreiteira no Egito, vivido por Pierfrancesco, teve em seus anos de formação.

 Foto: Estadão

No início do longa, Felice regressa à sua cidade natal par cuidar da mãe doente. É um terço de arrancada doce, onde a câmera do fotógrafo Paolo Carneva gira em espasmos, caçando um quadro que fuja da obviedade. Caça, caça... e consegue. Sempre. Passada essa introdução com ares melodramáticos, de mamãe e filho, uma pergunta feita por Felice muda as rédeas da narrativa: "Onde está Oreste?". No passado, os dois eram unha e carne, até um crime mudar tudo. Ao tentar entender o que foi feito daquele amor de ontem, amor de bromance, de pura amizade, Felice começa a se reencaixar numa paisagem que abandou há 40 anos. Mas nem sempre a paisagem nos quer de volta. Nem sempre aquele a quem confiamos nosso coração deu valor à imolação que fizemos, fortuitamente. O saldo é a ressaca. Mas nem toda ressaca é só de álcool, ou só de sal. Eis o que Martone nos mostra, num longa devastador. Foi um dos achados da Itália em 2022 e abre 2023 com as glórias que merece. Pelo menos na França.

Pierfrancesco Favino vive um italiano convertido ao Islã que regressa a Nápoles para cuidar de sua mãe e acertar contas com o passado no longa-metragem de Mario Martone  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA Mesmo tomado por "Avatar: O Caminho da Água" e já cobiçado pelos potenciais candidatos ao Oscar, o circuito exibidor comercial francês dedicou salas de cerca de 15 complexos luxuosos de Paris para uma joia italiana: "Nostalgia". É um drama com elementos de thriller de máfia, doído, tocante, tenso. Há tempos, desde "A Grande Beleza" (2013), de Paolo Sorrentino, uma produção da pátria de Federico Fellini não mexia tanto com os corações de cinéfilos na terra natal dos Lumière. A Itália bateu o martelo em prol dessa pedra preciosa de Mario Martone pra ser seu candidato a uma vaga para a estatueta de Melhor Filme Internacional da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Ele acabou não entrando na shortlist da instituição hollywoodiana, que destaca entre potenciais concorrentes "Close", de Lukas Dhont (Bélgica) e "Decisão de Partir", de Park Chan-Wook (Coreia do Sul). Mesmo assim, seu êxito em cartaz na Europa é inegável, consagrando seu diretor, o napolitano Mario Martone, hoje com 63 anos. Foi a Croisette quem primeiro enxergou a força desse belíssimo exercício de gênero. Aliás, ele sempre foi bem recebido no balneário francês, embora tenha um caso de amor mais longevo com o Lido. Coroado há 30 anos com o Prêmio Especial do Júri de Veneza, por "Morte di un Matematico Napoletano" (1992), Martone concorreu em Cannes, em 1995, com "L'Amore Molesto", e lá voltou, via Un Certain Regard, em 1998, com "Teatro di Guerra". Mas nada do que fez nos anos 1990 ou nas duas últimas décadas se compara ao que ele entrega em "Nostalgia", que concorreu à Palma de Ouro, em maio passado. É um filme que teve, em Cannes, um efeito de "descoberta", embora o mais correto, diante do currículo do realizador, seria falar em "redescoberta", em "reinvenção", seja dele mesmo, seja a dos códigos cinematográficos da Itália. Ele vem de um país que nos deu gigantes. De lá vieram Rossellini, De Sica, Fellini, Visconti, Antonioni, Pietro Germi, Pier Paolo Pasolini, Elio Petri, Lina Wertmüller, Valerio Zurlini, Liliana Cavani, Vittorio De Seta. Pátria próspera na seara dos filmes de gênero, seja no terror (com o giallo de Dario Argento), no faroeste (com as macarronadas de Sergio Leone, Tonino Valerii e Sergio Corbucci) e nos épicos de gladiador (o Peplum). Pátria que minguou por um bom tempo, de 1984 a 2008, vendo suas fontes de fomento à produção cinematográfica escassearem. Até campeões de bilheteria como Carlo Pedersoli e Mario Girotti (conhecidos por aqui como Bud Spencer e Terence Hill) deixaram de fazer os longas da franquia "Trinity", sob a guilhotina de Berlusconi, restando visibilidade a poucos cineastas. Giuseppe Tornatore (com "Cinema Paradiso") e Roberto Benigni (com "A Vida É Bela") souberam bem flertar com as receitas da Academia de Artes e Ciências de Hollywood. Já Nanni Moretti se edificou entre comédias políticas ("O Crocodilo") e melodramas ("O Quatro do Filho" e "Tre Piani"). Ele volta este ano com "Il Sol Dell'Avvenire" e sempre se mantém produzindo bastante. Mas poucos têm essa sorte entre seus conterrâneos.

O cineasta napolitano faz sucesso nas telas da França  Foto: Estadão

Resistentes do movimento moderno também se mantiveram firmes, como o finado Bernardo Bertolucci, que foi fazer uma incursão pelo Oriente e filmar em outras línguas; e o até hoje imparável Marco Bellocchio ("Vincere"). Mas esses dois são crias dos anos 1960. Martone, não. Ele é um moderno tardio, estandarte da década de 1990, que não se fez na liquidez da pós-modernidade. Mas ele teve a sagacidade de entender parte das chagas desse nosso tempo, como é o caso da gentrificação; do emasculamento; do sucateamento da honra; da destruição dos signos de fé, por apostasia ou por banalização. E esse sagaz olhar rendeu a Cannes um presente em forma de 1h57 de filme, universalíssimo. Passa-se em Nápoles, mas poderia ser em Bonsucesso. Ou na Penha. Pierfrancesco Favino - que filmou "O Traidor" de Bellocchio no Rio de Janeiro, ao lado de Maria Fernanda Cândido - é o aríete com o qual Martone avança rumo à consagração e a um merecido Prêmio do Júri, com seus ângulos de câmera vívidos e inquietos, explorando a profundidade de campo da Nápoles para onde seu protagonista regressa. Ele tem 95% de "Nostalgia" pra si. Os 5% que sobram se dividem entre o padre Rega (Francesco di Leva) e o bandido Oreste (Tommaso Ragno, um sósia do brilhante Roney Villela). Este foi o maior amigo que Felice, construtor e dono de empreiteira no Egito, vivido por Pierfrancesco, teve em seus anos de formação.

 Foto: Estadão

No início do longa, Felice regressa à sua cidade natal par cuidar da mãe doente. É um terço de arrancada doce, onde a câmera do fotógrafo Paolo Carneva gira em espasmos, caçando um quadro que fuja da obviedade. Caça, caça... e consegue. Sempre. Passada essa introdução com ares melodramáticos, de mamãe e filho, uma pergunta feita por Felice muda as rédeas da narrativa: "Onde está Oreste?". No passado, os dois eram unha e carne, até um crime mudar tudo. Ao tentar entender o que foi feito daquele amor de ontem, amor de bromance, de pura amizade, Felice começa a se reencaixar numa paisagem que abandou há 40 anos. Mas nem sempre a paisagem nos quer de volta. Nem sempre aquele a quem confiamos nosso coração deu valor à imolação que fizemos, fortuitamente. O saldo é a ressaca. Mas nem toda ressaca é só de álcool, ou só de sal. Eis o que Martone nos mostra, num longa devastador. Foi um dos achados da Itália em 2022 e abre 2023 com as glórias que merece. Pelo menos na França.

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