RODRIGO FONSECA Onze anos depois de sua consagração, "Drive", que transformou Ryan Gosling num astro, está na grade do Globoplay. Em 2011, esse thriller sobre quatro rodas deu a Nicolas Winding Refn o prêmio de melhor direção no Festival de Cannes. À época de sua incursão cannoise, ninguém deu muita bola para a participação de Refn entre os concorrentes, com algo que parecia ser um filme de corrida estilizado, e só. Um filme sobre um dublê especializado em pilotagem que, à noite, dirige pra assaltantes em roubos arrojados. Duas semanas antes, o produtor brasileiro Rodrigo Teixeira, da RT Features, cantara aqui pro P de Pop a pedra filosofal: "Se liga nesse longa-metragem do Refn, pois só se fala dele nos bastidores da indústria, dizendo-se ser uma surpresa". O xará falou, tá falado: o Estadão ficou ligado e foi pra projeção cheio de curiosidade. Já nas primeiras sequências a evocação à década de 1980, com especial alusão a "Atraídos Pelo Perigo" ("No Man's Land", 1987), de Peter Werner, já serviu como uma preciosa "fábula de apresentação", termo técnico da escrita de roteiro para a introdução de personagens. Na sequência, o Palais des Festivals deleitou-se ao ver Gosling num papel sem nome - chama-se apenas O Motorista - num devir samurai, taciturno e focado, disposto a tudo para conseguir paz para a mulher por quem está apaixonado (Carey Mulligan). Esta tem um filho com um marginal fracassado (Oscar Isaac) que, num vacilo, atrai a antipatia de um exótico gângster, Bernie Rose, papel que tirou a poeira há anos depositada sobre os ombros de Albert Brooks. O comediante por trás de "Relax" (1985) e "Um Visto Para o Céu" (1991) fez ali uma interpretação magistral, coroada com uma indicação ao Globo de Ouro, num papel sem riso, pautado pela vilania. Num determinado momento, o Motorista, em meio ao conserto de um carro, cheio de graxa nos dedos, tromba com Bernie pela primeira vez, que lhe estende a mão para um cumprimento. Gosling, impávido, apenas olha e diz: "Minhas mãos estão sujas". Brooks devolve o olhar e crava: "As minhas também", referindo-se ao histórico de crimes em seu passado. Dali pra frente, um choque de forças vai se estabelecer diante do olho da plateia. Seu primeiro público, o de Cannes, saiu chocado com a maneira como Refn conseguiu extrair poesia de uma matéria tão desgastada quanto as histórias de acerto de contas. Refn já havia demonstrado potência em seu "Pusher" (1996) e no poderoso "Valhalla Rising" ("Guerreiro Silencioso" por aqui), de 2009, também na grade da Amazon Prime, com Mads Mikkelsen em estado de graça. Mas estes, assim como "Bleeder" (1999) e o agigantado "Bronson" (2008), eram mais estudos sobre a violência do que exercícios de gênero. "Drive", não. Era um misto dos dois e algo além. Acabou que o realizador saiu de Cannes laureado por um júri presidido por Robert De Niro. Baseada em romance de James Sallis, essa tensa produção de US$ 15 milhões faturou US$ 77 milhões e ainda concorreu ao Oscar de edição de som, configurando-se como um cult instantâneo, que hoje comemora dez anos sob os auspícios da www.mubi.com, a plataforma de curadoria humanizada. Refn fez ainda mais duas joias: "Só Deus Perdoa" (2013) e "Demônio de Neon" (2016), ambos lançados por Cannes. Tem ainda a série "Muito Velho Para Morrer Jovem" (2019), também na Amazon Prime.