RODRIGO FONSECA Sinal dos tempos: a MUBI, plataforma digital de curadoria humanizada vai incluir em sua grade de cults os dois filmes iniciais da franquia "Rambo". Estarão lá "First Blood", produção de US$ 15 milhões que faturou US$ 125 milhões em 1982; e "First Blood Part II", longa orçado em US$ 25 milhões que arrecadou US$ 300 milhões em 1985. O primeiro título da saga estrelada por Sylvester Stallone passa a estar disponível no dia 3 e o segundo, no dia 10. Lembre-se de que o www.mubi.com está povoado por Luis Buñuel, Julia Ducournau (com o ganhador da Palma de Ouro de 2021, "Titane"), Lars von Trier, Spike Lee, Agnès Varda. Das novíssimas gerações estão por lá bambas como Gustavo Vinagre (cineasta em franca evolução, avesso a tabus), Kit Zahuar e Charlotte Wells (e seu badalado - sabe-se lá por qual motivo - "Aftersun"). Em meio a toda essa diversidade, um personagem que passou anos sendo tripudiado pela ala mais azeda da crítica tem a chance de ser encarado sob um novo prisma. Há mais três títulos dessa cinessérie. O III, de 1988, custou US$ 63 milhões e faturou US$ 189 milhões. O IV, exibido numa homenagem a Stallone no Festival de Veneza de 2009, foi rodado com o próprio ator na direção, sob um orçamento de US$ 50 milhões, e arrecadou US$ 113 milhões. Já uma recente, de 2019, lançado com o subtítulo "Até o Fim" ("Last Blood"), é uma pérola que se encontra no garimpo da Netflix. Teve um faturamento estimado em US$ 91 milhões em 2019.
Imagens documentais de arquivo da guerra do Vietnã rasgam a pele ficcional de "Rambo: Até o fim", de um modo inusitado para os padrões memorialísticos da franquia, como num balizamento de fatos históricos. Fatos que moldaram a sangue o barro do qual John Rambo é constituído. São espasmos, vestígios de um pretérito imperfeito que ele doma com comprimidos de um frasco laranja. Pretérito que fica cada vez mais presente graças a uma falha - da Natureza - ocorrida em uma operação informal de resgate realizada por ele no preâmbulo do quinto filme de uma saga aberta em 1982. Em meio a uma chuva, o ex-combatente, hoje radicado no rancho de sua família, tenta salvar pessoas de uma inundação, em meio a uma tempestade, mas falha. Não é a idade que trava sua eficiência, mas sim o clima e o relevo. A paisagem é bem diferente das selvas da Ásia onde ele inscreveu sua coragem na pedra da imolação. Falhar agora parece ser um verbo inerente à sua rotina, afinal, já há sete primaveras em seu corpo... ou melhor, sete outonos, pois nada mais parece florescer na alma de Rambo, fora uma sobrinha amada, a estudante Gabrielle (Yvette Monreal). Com ela há um vínculo que mantém pulsante o resto de coração naquele corpanzil animado pelo carisma grisalho de Sylvester Stallone. "Last blood", o novo "Rambo", preparou sua estreia a partir da passagem pelo ator no Festival de Cannes de 2019, a fim de alcançar circuitos globais em sua estreia. E esse alcance contou com a mais requintada operação de mídia da carreira do astro em anos. Numa era dominada por super-heróis, num ano onde um único filme de ação à moda antiga ("Invasão ao Serviço Secreto", com Gerard Butler) dominava as salas de projeção, às vésperas da volta de Rambo, Stallone ofereceu às plateias o ocaso do heroísmo OMAC (One Man Army Combat), o Exército de um Homem Só.
Seu Rambo, cansado de guerra feito "Tereza Batista", lembra do Vietnã não mais na primeira pessoa, como se viu no longa de Ted Kotcheff, revivendo as torturas lá vividas: a memória da guerra agora se dá como documento. Passaram-se dez anos desde "Rambo IV" (2008). Pouco se fala sobre os embates entre as matas vietnamitas e seu cheiro de napalm. Agora estamos com combates nos cartéis da América Hispânica, que fica bem ao lado de seu rancho. O CEP do inimigo agora é mexicano, mas não por uma alteridade racista, mas sim por impunidades das mais diversas. "A polícia de lá não faz nada", diz o herói, numa cena de perplexidade, quando sua Gabrielle é levada dele e transformada em refém de traficantes de escravas sexuais. Como responsável pelo bem da jovem seu papel paternal de tio que cuida, Rambo precisa ir atrás dela e encarar todos os males do mundo torto que se edificou em uma época sem ideologias. É dever dele copiar um outro "tio" lendário da ficção, Ethan Edwards, vivido por John Wayne em "The Searchers" (1956). Como Edwards, um herói vencido da Guerra de Secessão dos EUA, Rambo também ostenta medalhas de derrota - e não se trata da jovem que a chuva levou, no início do filme. Ali era só mais uma garoa. Agora, no México, vem o vendaval. Os ventos que sopravam contra o caubói soldado de Wayne carregavam o bafo do racismo, numa reflexão do cineasta John Ford contra o racismo institucionalizado contra os índios: era uma tribo que roubava a sobrinha de Ethan. Agora, a Natalie Wood desta "crônica de uma morte anunciada" (a morte do heroísmo pop do cinema de ação clássico) não é cercada de conflitos raciais. Não há uma percepção de valores excludentes contra o povo do México. Gabrielle é de lá, assim como a senhora que a educou, Maria (Adriana Barraza). O perigo não vem da língua espanhola imposta pela colonização: o risco vem do tráfico, do submundo organizado. É ali que Rambo vai se meter. E é uma floresta tão densa quanto as do Vietnã, mas sem combustíveis de Cold War, sem East vs. West. Há só ruindade. "Você não sabe o quanto de Mal pode existir no coração dos homens", avisa Rambo à sua querida menina. Essa percepção dele, estruturada pela direção sólida de Adrian Grunberg, como um juízo moral de quem feriu-se demais, aumenta o amargor que perpassa toda a narrativa - de adrenalina crescente. Com a mesma desenvoltura informal que imprimou em "Plano de fuga" (2012), com Mel Gibson, Grunberg tira a cinessérie "Rambo" da zona de conforto do épico e dá ao quinto tomo das peripécias do herói um tom de filme B. Da maquiagem à direção de arte, com direito a um coração eviscerado a tapa, nada dispõe do verniz plástico dos tempos de Kotcheff e George Pan Cosmatos (o realizador do II, "A missão").
Em "Até o fim", temos um "Rastro de ódio" talhado na cortiça, áspero, com farpas. A fotografia de Brendan Galvin (de "Atrás das linhas inimigas") dispensa o charme do chiaroscuro e aposta no ocre, deixando o sol raiar só nas poucas cenas de placidez. Com seu esqueleto banhado pelo adamantium da brutalidade, Rambo sabe o valor singular de apreciar um amanhecer. Ele é um caubói... como Ethan Edwards. Como ele, Rambo aprendeu, um dia, a homilia de Gary Cooper em "Matar ou morrer": um homem tem que fazer o que um homem TEM que fazer. Mas, antes, o verbo "ter" rezava pela desinência de uma pátria amada. Mas essa sua pátria hoje vive acossada pelo crime, pela corrupção, pelo sucateamento da Justiça como um valor inerente ao processo civilizatório. Talião é criminoso, mas do que os bandidos que furam sua pele e sua carne: o dente por dente é um delito grave. Num mundo como esse... da aridez da ternura... do desdém com o velho modelo do lobo que se tornou solitário pela desatenção das matilhas... não há lugar para old men. Rambo é uma relíquia de um museu condenado (ao gueto nerd... ao gueto pop). Restar-lhe-ia errar. Mas há coisas que ficaram guardadas em seu porão. E eles não têm idade. E não respeitam os jugos do moralismo. Pontiagudas como sua faca afiada, essas coisas, ainda selvagens, talvez possam ser chamadas de "barbárie", assim com o mesmo B dos filmes que esnobam a geometria da pedra polida. "Rambo: Até o fim" é pedra lascada. Mas diante da civilização que temos hoje, desleal com a tradição, que barbarismo é o seu, senão a resiliência... a poesia triste e trágica da resistência.
Curiosidades da franquia:
- Uniforme que Rambo improvisa na floresta, no primeiro filme da franquia, foi confeccionado às pressas, quase que de improviso, com materiais encontrados no bosque.
- Durante as filmagens, Stallone quebrou, sem querer, o nariz do ator Alf Humphreys, que teve de seguir no set, mesmo ferido.
- No segundo filme da série, Stallone verbaliza uma expressão que sintetizaria a maioria de seus heróis: "eu sou dispensável". O veterano do Vietnã explica a uma combatente: "Ser dispensável é... bom.. se eu te chamarem para uma festa e você vai... e ninguém nota... isso é ser dispensável", explica, numa referência à situação dos combatentes de guerra dos EUA.
- O primeiro corte de "Rambo: Programado para matar" tinha três horas de duração. Foi ideia de Stallone mudar o final do romance no qual o longa se baseia, uma vez que o escritor David Morrell optava por levar seu protagonista ao suicídio.
- Único título da franquia a concorrer a um Oscar (o de edição de som), "Rambo II - A Missão" foi dedicado ao dublê Cliff Wenger Jr., morto nas filmagens, no México.
- No quarto filme da série, de 2008, Stallone levou uma noite inteira para registrar a cena em que o herói afia sua faca, seu instrumento da sorte, que aumenta de tamanho a cada longa.
- "Rambo: Até o fim" foi rodado majoritariamente nas Ilhas Canárias, na Espanha, com cenas na Bulgária, de outubro a dezembro de 2018, a partir de um roteiro de Matt Cirulnick e do próprio Stallone, produzido pelo lendário Avi Lerner (de pérolas pop como "Allan Quatermain e a Cidade do Ouro Perdido").