Rodrigo Fonseca Frente ao Estado de alarme em nossa política, com tantos rachas, é natural que uma de nossas primeiras baixas simbólicas seja a medida do heroísmo, na impossibilidade de identificarmos um protetor, um defensor, uma segurança. Frente a essa geleia geral (e moral), a principal contribuição do thriller de ação "Em Nome da Lei", de Sérgio Rezende - que a TV Globo exibe nesta madrugada, às 4h30 - é o fato de ele colocar o conceito clássico (e o conceito moderno) de herói em discussão, propondo um arquétipo heroico possível para o Brasil, na figura tridimensional do juiz Vítor. A complexidade desse personagem só é superada pela complexidade da atuação de seu intérprete, Mateus Solano, cujo gestual fora do óbvio, com tiques alheios a padrões conhecidos, atomiza austeridades, emprestando-lhe uma jovialidade rebelde, típica dos durões de miocárdio mole vivido por Burt Lancaster. Sabe-se que, a partir do Cinema Novo, o heroísmo em nossas telas virou um prazer bissexto, mais associado a uma aura marxista (quase frankfurtiana) de luta de classes, fiel à tese de que herói e marginal são a mesma palavra. DO CN pra frente, a lógica não variou muito disso, com exceção do Capitão Nascimento de Wagner Moura em "Tropa de Elite" I (2007) e II (2010), apesar de toda a sua controvérsia e todo um debate sobre fascismo em sua órbita. Mas, ali, o cabresto do realismo era ainda senhorial. No novo longa de Rezende, não. Escalado para trabalhar numa cidade de fronteira com o Paraguai, Vítor é um herói sem sociologia: factual, judicial, prático, ativo e sem moléstias existenciais.
Na lógica cinemanovista de outrora, uma frase de Gramsci, profeta da dialética, soaria ideal para resumir paralelismos entre o real e o ficcional: "Um herói se mede pela fome do povo: barrigas vazias roncam pela necessidade de quem lhes sacie o apetite". Mas a lógica do roteiro sinuosamente saboroso de Rezende, Rafael Dragaud e Rodrigo Lages escorre por outra mais-valia. A mais-valia do tráfico, na imagem de um ícone populista que ganha o amor de seus conterrâneos em troca de favores, esmolas e benesses: o chefão "El Hombre" Gómez, encarnado por Chico Diaz, que aniversariou na terça-feira. O Capital para ele não é uma carta de intenções para o futuro da infraestrutura operária: é só o fruto do contrabando regado a sangue. A tessitura do script, somada a uma parceria de quatro décadas entre Diaz (no auge do talento) e Rezende, bastariam para alimentar Gómez com os atributos de qualquer bom Zé Pequeno. Mas ele não é um sociopata, não é a Milícia da Zona Oeste do Rio, não é representante do Esquadrão da Morte da PM: Gómez é só um empresário, pai gente fina, marido amoroso, amante caliente, patrão zeloso. É duro detestá-lo, o que só amplia os apuros de Vítor, pondo Solano ainda mais à prova. Mas há nele a maldade expressa pelo usucapião de práticas ilícitas e por uma retidão inabalável ao julgar suas vítimas (e seus acólitos). Gómez precisa se fazer temer. E, na mesma medida, só que em outro extremo da Justiça, Vítor precisa se fazer respeitar. É necessidade, mas também vaidade. E aí ambos se humanizam... e se equivalem pelo antagonismo. A fala da procuradora Alice (Paolla Oliveira) sobre a insistência de seu superior em não ouvir ninguém no ato de decidir sobre que operações referendar e a crítica do policial federal Elton (Eduardo Galvão, que nos deixou em 2020, vítima da covid-19) sobre sua postura intempestiva frisam seu perfil egocêntrico. Vítor é um herói imperfeito, ideal para tempos que flagram o apogeu do vigilantismo mascarado em Hollywood, via Batman vs. Superman.
Sem cair na tentação de fazer uma alegoria sobre o Poder Judiciário, "Em Nome da Lei" sabe seu tamanho e sua vocação: quer ser espetáculo, delineado à moda clássica, num formato de gênero (o policial), temperado pelo Sazon autoral de seu realizador. Diretor de uma espécie de Scarface da Baixada Fluminense, "O Homem da Capa Preta" (1986), Rezende fala com recorrência de homens épicos que se encontram diante de um turbilhão histórico, como foram Antônio Conselheiro em "Guerra de Canudos" (1997), o Barão de Mauá em "O Imperador e o Rei" (1999) e o bandido Professor do brilhante "Salve Geral!" (2009). Com a psiquê à flor da pele, Vítor não chega a ser épico, mas traz em si um peso mítico à la Hércules de ter uma série de trabalhos para resolver por imposição de um Zeus chamado Corrupção. Gómez é seu Leão da Neméia, com a fúria de Chico Diaz nas presas escancaradas. O fardo heróico em suas costas pesa. Mas nos contagia, pela adrenalina, numa escrita fílmica dada na montagem de Maria Rezende. Tem um delegado que é capacho de Gómez na trama, Rubens, e ele foi confiado ao Wilson Grey do cinema brasileiro contemporâneo, o ótimo Roney Villela, sempre perfeito nas pontas que lhe reservam com sua máscara trágica e seu poder de traduzir a canalhice institucionalizada. Que a projeção desta madruga seja um réquiem para Eduardo Galvão, que está impecável em cena.