De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

Mar Del Plata abre com Sam Mendes e projeta Ricardo Darín em telona


Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Paredes de Buenos Aires, província onde fica a cidade de ar Del Plata, estampam o longa de Santiago Mitre que pode levar Ricardo Darín ao Oscar  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA Um mês depois de ter aberto o Festival do Rio, numa histórica sessão no Cine Odeon, "Império da Luz" ("Empire of Light"), o mais recente longa-metragem do inglês Sam(uel Alexander) Mendes abre outro evento essencial ao cinema da América Latina, agora na Argentina: Mar Del Plata. Criado em 1954, congelado pela ditadura em 1970 e reiniciado em 1996, a mais prestigiada celebração audiovisual de nossos hermanos inicia nesta quinta sua 37ª edição. A cidade é parte da província de Buenos Aires, as fica a 410 km do centro da capital de sua pátria - que hoje comemora o sucesso de "Argentina, 1985" na streaminguesfera. Lançado no Brasil na Amazon Prime, o thriller jurídico em que Ricardo Darín leva torturadores de farda ao um tribunal será exibido em telona para a população mardelplatense neste fim de semana. E vai ter homenagem para Darín por aqui, aumentando a torcida para que ele venha a ser indicado a uma estatueta de Melhor Ator pela produção de Santiago Mitre. Produção laureada com o Prêmio da Crítica em Veneza e com o Prêmio de Juri Popular em San Sebastián. Tá na programação também um fenômeno portenho: "30 Noches Com Mi Ex", uma comédia estrelada e dirigida por Adrián Suar, que fez sorrir o circuito exibidor de sua pátria com uma arrecadação invejável, beirando 700 mil pagantes logo após sua estreia. Pilar Gamboa estrela essa trama sobre reconciliação, ao lado de Suar.

 Foto: Estadão
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Na competição oficial do evento - que tem no júri a atriz Dolores Fonzi, os diretores Alexandre Koberidze e Joe Swanberg, a programadora Inge Stache, e jornalista Alberto Lechuga -, o Brasil está no páreo com "Saudade Faz Morada" Aqui Dentro", de Haroldo Borges. Concorrem com ele títulos dos EUA ("How To Blow Up a Pipeline", de Daniel Goldhaber, e "There There", de Andrew Bujalski); de Portugal ("O Trio Em Mi Bemol", de Rita Azevedo Gomes); e da Suíça ("Réduit", de Leon Schwitter), entre outros países. "Mato Seco em Chamas", rodado nas quebradas do Distrito Federal por Joana Pimenta e Adirley Queirós, também está na seleção de Mar Del Plata, assim como "Filme Particular", de Janaina Nagata.

 Foto: Estadão

Há encontros marcados com cineastas autoralíssimos como Patricia Mazuy ("Boliche Saturno") e John McTiernan ("Duro de Matar") e com a atriz Cecilia Roth. No Panorama Internacional, rola uma série de estreias de grifes autorais, como "Walk Up", do sul-coreano Hong Sangsoo, e "Un Beau Matin", da francesa Mia Hansen-Løve. Mas só se fala de Sam Mendes por lá. E com razão. Numa entrevista que concedeu ao Globo, em 2009, numa época de escassez de alento em sua carreira anfíbia, capaz de respirar no palco e na tela grande, o cineasta britânico, cujos avós vêm da população portuguesa de Trinidad, usou a recriação histórica de seu precioso "Foi Apenas Um Sonho" ("Revolutionary Road", 2008) para dizer: "Toda versão que o cinema faz do passado é sempre uma contingência ficcional alegórica, que se baseia apenas em achismos sobre o que foi o Ontem, pois qualquer leitura dele não substitui a falta empírica de convivência com a matéria pretérita". Ou seja: filmes de época são sempre supostamente reais, sempre submissos a uma variável do X da hipótese. Fiel a esse preceito o homem que deu à franquia 007 sua obra-prima, "Skyfall", há dez anos, investe em "Império da Luz" como um sopro de intimismo. É uma volta para um período pouco contextualizado pelo cinema britânico: o período do início da década de 1980 em que o regime de cinto apertado da economia de Thatcher irrigou a lavoura do ódio. Seu "Empire of Light" vai até 1981, numa cidadezinha litorânea da Inglaterra. Por lá, a sala de projeção Empire é a maior diversão e, também, um analgésico para os males da falta de pertencimento afetivo. Temos um potente ataque ao racismo feito por Mendes ao expor a fora como skinheads daqueles anos atacavam as populações negras. Michael Ward brilha com sua precisão de algebrista ao compor o aspirante a universitário Stephen, que vai trabalhar no time de funcionários do Empire e segue a intolerância acossá-lo. Mas, naquele quase multiplex de duas salas, pertencente ao Sr. Ellis (Colin Firth, com desenvoltura de mosqueteiro), o rapaz vai provar do amor também, enchendo de viço os dias vazios de Hilary, papel que pode (e deve) levar Olivia Colman a mais um Oscar. Ela traz ao longa ainda uma discussão sobre crise nervosa, inerente a uma faceta psiquiátrica obliterada pela desconexão com o real. Mas o que mais salta aos olhos é a maneira como Mendes - calcado numa fotografia grandiloquente de Roger Deakins ¬- aproveita a arena central de sua dramaturgia - um complexo exibidor - para esboçar um "Cinema Paradiso" particular muito peculiar.

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Olivia Colman no longa de Mendes: "Império da Luz"  Foto: Estadão

Homenageando clássicos e cults dos anos 1980, citando de "Irmãos Cara-de-pau" a "Touro Indomável, ele revive uma década a qual se dá pouco valor, fazendo uma ode a Hal Ashby (1929-1988), o Carlos Drummond de Andrade do Cinema Novo americano, a tal de Nova Hollywood ou Easy Rider Generation. Sua obra, que explode no imaginário cinéfilo com "Ensina-me a Viver" (1971) e "Amargo Regresso" (1978), dá argamassa para muitas ideias que movem seus contemporâneos, Scorsese e Spielberg, acerca do retrato do querer. "Ashby foi o cronista do sentimento, que amou como a gente não foi capaz de amar", disse Spielberg ao P de Pop, em 2012. Dele, Mendes puxa um filme em especial, que não pode ser citado aqui para não estragar surpresas. Uma surpresa que firma a personagem de Colman como uma "Rosa Púrpura do Cairo" às avessas. Nela não há o apreço pela imagem filmada e, sim, pela poesia, de Auden & cia. Mas o cinematógrafo vai sorrir pra ela, como fez para a plateia de um inflado Odeon. Ah... de Ashby rola até Cat Stevens, no gatilho para uma gramática de quereres. Uma das atrações mais esperadas de Mar Del Plata, em 2022, é "Coma", de Bertrand Bonello. Usando bonecas Barbie e bonecos Ken, o realizador de "Zombi Child" (2019) faz o filme mais divertido de sua carreira, mesclando uma parte experimental, com vídeos sobre a pandemia, e uma cômica porção narrativa, em que esses brinquedos falam com vozes de ídolos do cinema francês, simulando DRs de casal. Louis Garrel é um dos atores que emprestou o gogó à produção, falando coisas sem sentido sobre o querer. É de rachar de rir. O festival argentino termina no dia 19, com a entrega do troféu Ástor e uma série de outras láureas. Há 19 anos, essa horaria foi confiada a Domingos Oliveira (1935-2019), que ganhou ainda o prêmio de Melhor Ator com "Separações".

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"Separações" ganhou o Ástor em 2003 Foto: Estadão

p.s.: A atriz Wanderlucy Bezerra cresceu no interior de Pernambuco, com muito carinho, mas desde cedo conheceu as adversidades da vida: "pobre", "nordestina", "dentuça" e "feia" foram alguns dos muitos adjetivos recebidos na infância. Teve momentos de tristeza, mas nunca deixou de sonhar com dias melhores e em construir uma carreira de atriz. E é nessa mistura agridoce de uma vida de conquistas e adversidades que ela escreveu "A Filha da Virgem", monólogo autobiográfico em que atua sob direção de Sandra Calaça e Leo Carnevale e supervisão de Luiz Carlos Vasconcelos. A peça faz apresentações gratuitas em Queimados (no Teatro Metodista, 08/11, às 17h) e no Centro do Rio (Teatro Alcione Araújo - Biblioteca Parque Estadual, dias 06 e 07/12, às 15h). O espetáculo tem patrocínio do Governo do Estado do Rio de Janeiro, Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro, através do Edital Retomada Cultural RJ 2.

Paredes de Buenos Aires, província onde fica a cidade de ar Del Plata, estampam o longa de Santiago Mitre que pode levar Ricardo Darín ao Oscar  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA Um mês depois de ter aberto o Festival do Rio, numa histórica sessão no Cine Odeon, "Império da Luz" ("Empire of Light"), o mais recente longa-metragem do inglês Sam(uel Alexander) Mendes abre outro evento essencial ao cinema da América Latina, agora na Argentina: Mar Del Plata. Criado em 1954, congelado pela ditadura em 1970 e reiniciado em 1996, a mais prestigiada celebração audiovisual de nossos hermanos inicia nesta quinta sua 37ª edição. A cidade é parte da província de Buenos Aires, as fica a 410 km do centro da capital de sua pátria - que hoje comemora o sucesso de "Argentina, 1985" na streaminguesfera. Lançado no Brasil na Amazon Prime, o thriller jurídico em que Ricardo Darín leva torturadores de farda ao um tribunal será exibido em telona para a população mardelplatense neste fim de semana. E vai ter homenagem para Darín por aqui, aumentando a torcida para que ele venha a ser indicado a uma estatueta de Melhor Ator pela produção de Santiago Mitre. Produção laureada com o Prêmio da Crítica em Veneza e com o Prêmio de Juri Popular em San Sebastián. Tá na programação também um fenômeno portenho: "30 Noches Com Mi Ex", uma comédia estrelada e dirigida por Adrián Suar, que fez sorrir o circuito exibidor de sua pátria com uma arrecadação invejável, beirando 700 mil pagantes logo após sua estreia. Pilar Gamboa estrela essa trama sobre reconciliação, ao lado de Suar.

 Foto: Estadão

Na competição oficial do evento - que tem no júri a atriz Dolores Fonzi, os diretores Alexandre Koberidze e Joe Swanberg, a programadora Inge Stache, e jornalista Alberto Lechuga -, o Brasil está no páreo com "Saudade Faz Morada" Aqui Dentro", de Haroldo Borges. Concorrem com ele títulos dos EUA ("How To Blow Up a Pipeline", de Daniel Goldhaber, e "There There", de Andrew Bujalski); de Portugal ("O Trio Em Mi Bemol", de Rita Azevedo Gomes); e da Suíça ("Réduit", de Leon Schwitter), entre outros países. "Mato Seco em Chamas", rodado nas quebradas do Distrito Federal por Joana Pimenta e Adirley Queirós, também está na seleção de Mar Del Plata, assim como "Filme Particular", de Janaina Nagata.

 Foto: Estadão

Há encontros marcados com cineastas autoralíssimos como Patricia Mazuy ("Boliche Saturno") e John McTiernan ("Duro de Matar") e com a atriz Cecilia Roth. No Panorama Internacional, rola uma série de estreias de grifes autorais, como "Walk Up", do sul-coreano Hong Sangsoo, e "Un Beau Matin", da francesa Mia Hansen-Løve. Mas só se fala de Sam Mendes por lá. E com razão. Numa entrevista que concedeu ao Globo, em 2009, numa época de escassez de alento em sua carreira anfíbia, capaz de respirar no palco e na tela grande, o cineasta britânico, cujos avós vêm da população portuguesa de Trinidad, usou a recriação histórica de seu precioso "Foi Apenas Um Sonho" ("Revolutionary Road", 2008) para dizer: "Toda versão que o cinema faz do passado é sempre uma contingência ficcional alegórica, que se baseia apenas em achismos sobre o que foi o Ontem, pois qualquer leitura dele não substitui a falta empírica de convivência com a matéria pretérita". Ou seja: filmes de época são sempre supostamente reais, sempre submissos a uma variável do X da hipótese. Fiel a esse preceito o homem que deu à franquia 007 sua obra-prima, "Skyfall", há dez anos, investe em "Império da Luz" como um sopro de intimismo. É uma volta para um período pouco contextualizado pelo cinema britânico: o período do início da década de 1980 em que o regime de cinto apertado da economia de Thatcher irrigou a lavoura do ódio. Seu "Empire of Light" vai até 1981, numa cidadezinha litorânea da Inglaterra. Por lá, a sala de projeção Empire é a maior diversão e, também, um analgésico para os males da falta de pertencimento afetivo. Temos um potente ataque ao racismo feito por Mendes ao expor a fora como skinheads daqueles anos atacavam as populações negras. Michael Ward brilha com sua precisão de algebrista ao compor o aspirante a universitário Stephen, que vai trabalhar no time de funcionários do Empire e segue a intolerância acossá-lo. Mas, naquele quase multiplex de duas salas, pertencente ao Sr. Ellis (Colin Firth, com desenvoltura de mosqueteiro), o rapaz vai provar do amor também, enchendo de viço os dias vazios de Hilary, papel que pode (e deve) levar Olivia Colman a mais um Oscar. Ela traz ao longa ainda uma discussão sobre crise nervosa, inerente a uma faceta psiquiátrica obliterada pela desconexão com o real. Mas o que mais salta aos olhos é a maneira como Mendes - calcado numa fotografia grandiloquente de Roger Deakins ¬- aproveita a arena central de sua dramaturgia - um complexo exibidor - para esboçar um "Cinema Paradiso" particular muito peculiar.

Olivia Colman no longa de Mendes: "Império da Luz"  Foto: Estadão

Homenageando clássicos e cults dos anos 1980, citando de "Irmãos Cara-de-pau" a "Touro Indomável, ele revive uma década a qual se dá pouco valor, fazendo uma ode a Hal Ashby (1929-1988), o Carlos Drummond de Andrade do Cinema Novo americano, a tal de Nova Hollywood ou Easy Rider Generation. Sua obra, que explode no imaginário cinéfilo com "Ensina-me a Viver" (1971) e "Amargo Regresso" (1978), dá argamassa para muitas ideias que movem seus contemporâneos, Scorsese e Spielberg, acerca do retrato do querer. "Ashby foi o cronista do sentimento, que amou como a gente não foi capaz de amar", disse Spielberg ao P de Pop, em 2012. Dele, Mendes puxa um filme em especial, que não pode ser citado aqui para não estragar surpresas. Uma surpresa que firma a personagem de Colman como uma "Rosa Púrpura do Cairo" às avessas. Nela não há o apreço pela imagem filmada e, sim, pela poesia, de Auden & cia. Mas o cinematógrafo vai sorrir pra ela, como fez para a plateia de um inflado Odeon. Ah... de Ashby rola até Cat Stevens, no gatilho para uma gramática de quereres. Uma das atrações mais esperadas de Mar Del Plata, em 2022, é "Coma", de Bertrand Bonello. Usando bonecas Barbie e bonecos Ken, o realizador de "Zombi Child" (2019) faz o filme mais divertido de sua carreira, mesclando uma parte experimental, com vídeos sobre a pandemia, e uma cômica porção narrativa, em que esses brinquedos falam com vozes de ídolos do cinema francês, simulando DRs de casal. Louis Garrel é um dos atores que emprestou o gogó à produção, falando coisas sem sentido sobre o querer. É de rachar de rir. O festival argentino termina no dia 19, com a entrega do troféu Ástor e uma série de outras láureas. Há 19 anos, essa horaria foi confiada a Domingos Oliveira (1935-2019), que ganhou ainda o prêmio de Melhor Ator com "Separações".

"Separações" ganhou o Ástor em 2003 Foto: Estadão

p.s.: A atriz Wanderlucy Bezerra cresceu no interior de Pernambuco, com muito carinho, mas desde cedo conheceu as adversidades da vida: "pobre", "nordestina", "dentuça" e "feia" foram alguns dos muitos adjetivos recebidos na infância. Teve momentos de tristeza, mas nunca deixou de sonhar com dias melhores e em construir uma carreira de atriz. E é nessa mistura agridoce de uma vida de conquistas e adversidades que ela escreveu "A Filha da Virgem", monólogo autobiográfico em que atua sob direção de Sandra Calaça e Leo Carnevale e supervisão de Luiz Carlos Vasconcelos. A peça faz apresentações gratuitas em Queimados (no Teatro Metodista, 08/11, às 17h) e no Centro do Rio (Teatro Alcione Araújo - Biblioteca Parque Estadual, dias 06 e 07/12, às 15h). O espetáculo tem patrocínio do Governo do Estado do Rio de Janeiro, Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro, através do Edital Retomada Cultural RJ 2.

Paredes de Buenos Aires, província onde fica a cidade de ar Del Plata, estampam o longa de Santiago Mitre que pode levar Ricardo Darín ao Oscar  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA Um mês depois de ter aberto o Festival do Rio, numa histórica sessão no Cine Odeon, "Império da Luz" ("Empire of Light"), o mais recente longa-metragem do inglês Sam(uel Alexander) Mendes abre outro evento essencial ao cinema da América Latina, agora na Argentina: Mar Del Plata. Criado em 1954, congelado pela ditadura em 1970 e reiniciado em 1996, a mais prestigiada celebração audiovisual de nossos hermanos inicia nesta quinta sua 37ª edição. A cidade é parte da província de Buenos Aires, as fica a 410 km do centro da capital de sua pátria - que hoje comemora o sucesso de "Argentina, 1985" na streaminguesfera. Lançado no Brasil na Amazon Prime, o thriller jurídico em que Ricardo Darín leva torturadores de farda ao um tribunal será exibido em telona para a população mardelplatense neste fim de semana. E vai ter homenagem para Darín por aqui, aumentando a torcida para que ele venha a ser indicado a uma estatueta de Melhor Ator pela produção de Santiago Mitre. Produção laureada com o Prêmio da Crítica em Veneza e com o Prêmio de Juri Popular em San Sebastián. Tá na programação também um fenômeno portenho: "30 Noches Com Mi Ex", uma comédia estrelada e dirigida por Adrián Suar, que fez sorrir o circuito exibidor de sua pátria com uma arrecadação invejável, beirando 700 mil pagantes logo após sua estreia. Pilar Gamboa estrela essa trama sobre reconciliação, ao lado de Suar.

 Foto: Estadão

Na competição oficial do evento - que tem no júri a atriz Dolores Fonzi, os diretores Alexandre Koberidze e Joe Swanberg, a programadora Inge Stache, e jornalista Alberto Lechuga -, o Brasil está no páreo com "Saudade Faz Morada" Aqui Dentro", de Haroldo Borges. Concorrem com ele títulos dos EUA ("How To Blow Up a Pipeline", de Daniel Goldhaber, e "There There", de Andrew Bujalski); de Portugal ("O Trio Em Mi Bemol", de Rita Azevedo Gomes); e da Suíça ("Réduit", de Leon Schwitter), entre outros países. "Mato Seco em Chamas", rodado nas quebradas do Distrito Federal por Joana Pimenta e Adirley Queirós, também está na seleção de Mar Del Plata, assim como "Filme Particular", de Janaina Nagata.

 Foto: Estadão

Há encontros marcados com cineastas autoralíssimos como Patricia Mazuy ("Boliche Saturno") e John McTiernan ("Duro de Matar") e com a atriz Cecilia Roth. No Panorama Internacional, rola uma série de estreias de grifes autorais, como "Walk Up", do sul-coreano Hong Sangsoo, e "Un Beau Matin", da francesa Mia Hansen-Løve. Mas só se fala de Sam Mendes por lá. E com razão. Numa entrevista que concedeu ao Globo, em 2009, numa época de escassez de alento em sua carreira anfíbia, capaz de respirar no palco e na tela grande, o cineasta britânico, cujos avós vêm da população portuguesa de Trinidad, usou a recriação histórica de seu precioso "Foi Apenas Um Sonho" ("Revolutionary Road", 2008) para dizer: "Toda versão que o cinema faz do passado é sempre uma contingência ficcional alegórica, que se baseia apenas em achismos sobre o que foi o Ontem, pois qualquer leitura dele não substitui a falta empírica de convivência com a matéria pretérita". Ou seja: filmes de época são sempre supostamente reais, sempre submissos a uma variável do X da hipótese. Fiel a esse preceito o homem que deu à franquia 007 sua obra-prima, "Skyfall", há dez anos, investe em "Império da Luz" como um sopro de intimismo. É uma volta para um período pouco contextualizado pelo cinema britânico: o período do início da década de 1980 em que o regime de cinto apertado da economia de Thatcher irrigou a lavoura do ódio. Seu "Empire of Light" vai até 1981, numa cidadezinha litorânea da Inglaterra. Por lá, a sala de projeção Empire é a maior diversão e, também, um analgésico para os males da falta de pertencimento afetivo. Temos um potente ataque ao racismo feito por Mendes ao expor a fora como skinheads daqueles anos atacavam as populações negras. Michael Ward brilha com sua precisão de algebrista ao compor o aspirante a universitário Stephen, que vai trabalhar no time de funcionários do Empire e segue a intolerância acossá-lo. Mas, naquele quase multiplex de duas salas, pertencente ao Sr. Ellis (Colin Firth, com desenvoltura de mosqueteiro), o rapaz vai provar do amor também, enchendo de viço os dias vazios de Hilary, papel que pode (e deve) levar Olivia Colman a mais um Oscar. Ela traz ao longa ainda uma discussão sobre crise nervosa, inerente a uma faceta psiquiátrica obliterada pela desconexão com o real. Mas o que mais salta aos olhos é a maneira como Mendes - calcado numa fotografia grandiloquente de Roger Deakins ¬- aproveita a arena central de sua dramaturgia - um complexo exibidor - para esboçar um "Cinema Paradiso" particular muito peculiar.

Olivia Colman no longa de Mendes: "Império da Luz"  Foto: Estadão

Homenageando clássicos e cults dos anos 1980, citando de "Irmãos Cara-de-pau" a "Touro Indomável, ele revive uma década a qual se dá pouco valor, fazendo uma ode a Hal Ashby (1929-1988), o Carlos Drummond de Andrade do Cinema Novo americano, a tal de Nova Hollywood ou Easy Rider Generation. Sua obra, que explode no imaginário cinéfilo com "Ensina-me a Viver" (1971) e "Amargo Regresso" (1978), dá argamassa para muitas ideias que movem seus contemporâneos, Scorsese e Spielberg, acerca do retrato do querer. "Ashby foi o cronista do sentimento, que amou como a gente não foi capaz de amar", disse Spielberg ao P de Pop, em 2012. Dele, Mendes puxa um filme em especial, que não pode ser citado aqui para não estragar surpresas. Uma surpresa que firma a personagem de Colman como uma "Rosa Púrpura do Cairo" às avessas. Nela não há o apreço pela imagem filmada e, sim, pela poesia, de Auden & cia. Mas o cinematógrafo vai sorrir pra ela, como fez para a plateia de um inflado Odeon. Ah... de Ashby rola até Cat Stevens, no gatilho para uma gramática de quereres. Uma das atrações mais esperadas de Mar Del Plata, em 2022, é "Coma", de Bertrand Bonello. Usando bonecas Barbie e bonecos Ken, o realizador de "Zombi Child" (2019) faz o filme mais divertido de sua carreira, mesclando uma parte experimental, com vídeos sobre a pandemia, e uma cômica porção narrativa, em que esses brinquedos falam com vozes de ídolos do cinema francês, simulando DRs de casal. Louis Garrel é um dos atores que emprestou o gogó à produção, falando coisas sem sentido sobre o querer. É de rachar de rir. O festival argentino termina no dia 19, com a entrega do troféu Ástor e uma série de outras láureas. Há 19 anos, essa horaria foi confiada a Domingos Oliveira (1935-2019), que ganhou ainda o prêmio de Melhor Ator com "Separações".

"Separações" ganhou o Ástor em 2003 Foto: Estadão

p.s.: A atriz Wanderlucy Bezerra cresceu no interior de Pernambuco, com muito carinho, mas desde cedo conheceu as adversidades da vida: "pobre", "nordestina", "dentuça" e "feia" foram alguns dos muitos adjetivos recebidos na infância. Teve momentos de tristeza, mas nunca deixou de sonhar com dias melhores e em construir uma carreira de atriz. E é nessa mistura agridoce de uma vida de conquistas e adversidades que ela escreveu "A Filha da Virgem", monólogo autobiográfico em que atua sob direção de Sandra Calaça e Leo Carnevale e supervisão de Luiz Carlos Vasconcelos. A peça faz apresentações gratuitas em Queimados (no Teatro Metodista, 08/11, às 17h) e no Centro do Rio (Teatro Alcione Araújo - Biblioteca Parque Estadual, dias 06 e 07/12, às 15h). O espetáculo tem patrocínio do Governo do Estado do Rio de Janeiro, Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro, através do Edital Retomada Cultural RJ 2.

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