De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

Novo 'Matrix' chega à HBO MAX


Por Rodrigo Fonseca

RODRIGO FONSECA Sexta-feira é dia de "Matrix Resurrections" na HBO MAX, inaugurando uma fase nova, agora na streaminguesfera, pra franquia. O quarto longa-metragem, lançado no dia 22 de dezembro, faturou cerca de US$ 150 milhões na venda de ingressos, embatucando cabeças. De todas as frases lúdicas e de todas as falas irônicas que garantem a "Matrix Resurrections" o respaldo para ser um filme memorável, o diálogo "Eu ainda sei kung fu", dito por Neo, no quarto (e devastador) tomo da franquia inaugurada em 1999, é o mais simbólico da operação de revisionismo estético proposto pela cineasta Lana Wachowski. Salpicado por especiarias ligadas à trans cultura de identidade de gênero, a partir da experiência pessoal de sua realizadora, o filme é uma exuberante triagem das maneiras de se "espetacularizar" o pop. Inclua aí até uma ideia popularesca que se construiu da Psicanálise - como lugar de respostas prontas e não de enfrentamento - encarnada na figura dionisíaca de Neil Patrick Harris e seu gato Déjà Vu. Mas a triagem que mais se destaca é a forma como Lana recupera toda a metodologia de se representar a violência no cinema pipoca dos anos 1990 pra cá. E o faz, em parte, pelo fato de o primeiro "Matrix" ter deflagrado, com seu "efeito bala" (espécie de câmera lenta aplicada a uma coreografia de bloqueio), a estética mais essencial da ação na década seguinte. Naquele momento da História, a CNN deu ao Jornalismo uma dimensão de espetáculo, mostrando que uma série de eventos do dito "mundo real" tinham um grau de inusitado capaz de desafiar as diretrizes da ficção. Não por acaso, surgiu ali a era do reality show - prenunciada por "Show de Truman", de Peter Weir - e nasceu o boom do documentário, que transformou certos diretores (Eduardo Coutinho, Frederick Wiseman, Patricio Guzmán) em igrejas. Sob o véu de um "realismo legitimador", uma crença de que a proximidade com estratégias documentais tornaria qualquer narrativa mais pertinente, a saga de Neo chegou as telas como um fenômeno, com a proposta de transformar em fantasia a teoria da "jogabilidade". Para isso, aquele primeiro filme da (hoje) teatralogia apoiava-se em uma estrutura de ação mais espetaculosa do que reportagens das guerras com infravermelho feitas pela TV naquele momento de sensacionalismos gourmet. Misturando artes marciais com o Imperativo Categórico Kantiano e orientalismo com linguagem da MTV, a produção de US$ 63 milhões revolucionou dinâmicas e arquétipos. Mas revolucionou, sobretudo, o tal kung fu de que Neo fala neste novo filme: por trás de cada soco ou chute do personagem de Keanu Reeves havia um gesto... um gesto demasiadamente humano... um gesto de afirmação da condição humana sob a opressão de um sistema simbólico de submissão. O segundo filme, "Matrix Reloaded", preservou essa perspectiva, galvanizada com a entrada do herói Seraph (Collin Chow). Já o terceiro filme, o confuso "Revolutions", mais próximo de Habermas do que de Kant, optou por uma linhagem de submissão, substituindo o embate pela imolação, sem pensar os socos e pontapés como gestos. Mas o tempo passou, Lana transicionou e o cinema evoluiu em suas reflexões, sendo avassalado pelas estruturas narrativas muito dialogadas, de perspectiva palavrosa. Uma nova matrix engoliu a imagem exigindo uma nova... "Matrix". E, não por acaso, Keanu Reeves deveria estar na linha de frente. E parte por ele ser o emblema da transformação mais significativa da ação nas telas, na década passada: a cinessérie "John Wick". A cruzada do matador de aluguel que se revolta com a morte de seu cão mudou a forma de se filmar brigas e tiroteios tratando esses acontecimentos sob uma ótica cinemática, em que o movimento é soberano, desafiando as leis vetoriais da Física, como só se viu em animações, como se fosse um desenho do Papa-Léguas. Reeves foi o rosto emblema dessa transformação. Aliás, em dois outros momentos da História, o Cinema contou com ele para renovar o uso da adrenalina na tela grande: em "Caçadores de Emoção" (1991) e "Velocidade Máxima" (1994). Agora, mais uma vez, o avatar do heroísmo nos salva da mesmice reforçando a essencialidade de uma figura dissonante (leia-se "herói") numa sociedade que se move como gado. No novo filme, anos se passaram e o acordo de paz entre as Máquinas e a Humanidade foi quebrado a partir de uma "atualização" de sistema, que acordou personagens antes deitados na letargia da obediência a um tratado de cavalheirismo. Quando a Matrix realinha seus códigos, Neo desperta na ilusão de ser um designer em prol da Warner Bros., em uma deliciosa metalinguagem. Mas a necessidade do amor físico que tem por Trinity (Carrie-Anne Moss, sublime em cena) dá um bug no binarismo da ilusão. Ao despertar, ele parte para uma nova luta, retomando destrezas passadas ("Eu ainda sei kung fu") mas reciclando-as como gestos coreográficos, como um balé, como arte viva, como cinema dos grandes. Keanu é muito, mas muito, mas muito mesmo maior do que a gente pensa que ele é. É persona e faz parte do que o entretenimento nos deu de mais útil: ele é um ícone da reinvenção, seja do heroísmo, seja da condição masculina.

p.s.: A 51ª edição do Festival de Roterdã, na Holanda, começa nesta quarta, apenas online, por conta da pandemia, com a projeção via web de "Please Baby Please", da americana Amanda Kramer. É uma espécie de "Cry Baby" das neuroses sexuais destes tempos em que o corpo foi sublimado em nome de debates e bandeiras, com base numa estilizada recriação dos anos 1950. Andrea Riseborough e Harry Melling são um casal sem sexo. Apesar das investidas dela, ele só sente tesão com os homens encourados da gangue de motoqueiro que circunda suas ruas. Aos poucos, eles vão se misturar ao mundo desses criminosos e ela vai se aproximar de uma colecionadora de vibradores vivida por Demi Moore. Vem do Brasil uma das atrações mais esperadas deste Roterdã: "Paixões Recorrentes", de Ana Carolina: Xará da cantora mineira, a diretora da trilogia "Mar de Rosas" (1978), "Das Tripas Coração" (1982) e "Sonho de Valsa" (1987) assombrou a Europa, entre os anos 1970 e 80 com sua percepção da hipocrisia nas relações sociais. Lá fora, seu prestígio era tal que ela integrou o júri oficial da Berlinale em 1978, ao lado de Sergio Leone e Theo Angeopoulos, quando Ruy Guerra e Nelson Xavier ganharam o Urso de Prata com "A Queda". Sem lançar filmes desde 2014, ela regressa via Roterdã, cercada por um time de peso de atrizes e atores. Seu elenco: Thérèse Cremieux, Luciano Cáceres, Pedro Barreiro, Silvana Ivaldi, Danilo Grangheia, Luiz Iran Gomes, Octávio Moraes. Sua trama: um grupo de pessoas, de diferentes nacionalidades, discutem o estado do mundo em uma pequena praia no sul do Brasil, no dia que marca o início da Segunda Guerra Mundial. Num barzinho em uma praia sul-americana, um comunista brasileiro se enfrenta contra um capitalista português; um fascista argentino discute com uma atriz francesa trotskista. Neste remoto recanto de areia, todos eles defendem suas ideologias que foram superadas pela realidade.

RODRIGO FONSECA Sexta-feira é dia de "Matrix Resurrections" na HBO MAX, inaugurando uma fase nova, agora na streaminguesfera, pra franquia. O quarto longa-metragem, lançado no dia 22 de dezembro, faturou cerca de US$ 150 milhões na venda de ingressos, embatucando cabeças. De todas as frases lúdicas e de todas as falas irônicas que garantem a "Matrix Resurrections" o respaldo para ser um filme memorável, o diálogo "Eu ainda sei kung fu", dito por Neo, no quarto (e devastador) tomo da franquia inaugurada em 1999, é o mais simbólico da operação de revisionismo estético proposto pela cineasta Lana Wachowski. Salpicado por especiarias ligadas à trans cultura de identidade de gênero, a partir da experiência pessoal de sua realizadora, o filme é uma exuberante triagem das maneiras de se "espetacularizar" o pop. Inclua aí até uma ideia popularesca que se construiu da Psicanálise - como lugar de respostas prontas e não de enfrentamento - encarnada na figura dionisíaca de Neil Patrick Harris e seu gato Déjà Vu. Mas a triagem que mais se destaca é a forma como Lana recupera toda a metodologia de se representar a violência no cinema pipoca dos anos 1990 pra cá. E o faz, em parte, pelo fato de o primeiro "Matrix" ter deflagrado, com seu "efeito bala" (espécie de câmera lenta aplicada a uma coreografia de bloqueio), a estética mais essencial da ação na década seguinte. Naquele momento da História, a CNN deu ao Jornalismo uma dimensão de espetáculo, mostrando que uma série de eventos do dito "mundo real" tinham um grau de inusitado capaz de desafiar as diretrizes da ficção. Não por acaso, surgiu ali a era do reality show - prenunciada por "Show de Truman", de Peter Weir - e nasceu o boom do documentário, que transformou certos diretores (Eduardo Coutinho, Frederick Wiseman, Patricio Guzmán) em igrejas. Sob o véu de um "realismo legitimador", uma crença de que a proximidade com estratégias documentais tornaria qualquer narrativa mais pertinente, a saga de Neo chegou as telas como um fenômeno, com a proposta de transformar em fantasia a teoria da "jogabilidade". Para isso, aquele primeiro filme da (hoje) teatralogia apoiava-se em uma estrutura de ação mais espetaculosa do que reportagens das guerras com infravermelho feitas pela TV naquele momento de sensacionalismos gourmet. Misturando artes marciais com o Imperativo Categórico Kantiano e orientalismo com linguagem da MTV, a produção de US$ 63 milhões revolucionou dinâmicas e arquétipos. Mas revolucionou, sobretudo, o tal kung fu de que Neo fala neste novo filme: por trás de cada soco ou chute do personagem de Keanu Reeves havia um gesto... um gesto demasiadamente humano... um gesto de afirmação da condição humana sob a opressão de um sistema simbólico de submissão. O segundo filme, "Matrix Reloaded", preservou essa perspectiva, galvanizada com a entrada do herói Seraph (Collin Chow). Já o terceiro filme, o confuso "Revolutions", mais próximo de Habermas do que de Kant, optou por uma linhagem de submissão, substituindo o embate pela imolação, sem pensar os socos e pontapés como gestos. Mas o tempo passou, Lana transicionou e o cinema evoluiu em suas reflexões, sendo avassalado pelas estruturas narrativas muito dialogadas, de perspectiva palavrosa. Uma nova matrix engoliu a imagem exigindo uma nova... "Matrix". E, não por acaso, Keanu Reeves deveria estar na linha de frente. E parte por ele ser o emblema da transformação mais significativa da ação nas telas, na década passada: a cinessérie "John Wick". A cruzada do matador de aluguel que se revolta com a morte de seu cão mudou a forma de se filmar brigas e tiroteios tratando esses acontecimentos sob uma ótica cinemática, em que o movimento é soberano, desafiando as leis vetoriais da Física, como só se viu em animações, como se fosse um desenho do Papa-Léguas. Reeves foi o rosto emblema dessa transformação. Aliás, em dois outros momentos da História, o Cinema contou com ele para renovar o uso da adrenalina na tela grande: em "Caçadores de Emoção" (1991) e "Velocidade Máxima" (1994). Agora, mais uma vez, o avatar do heroísmo nos salva da mesmice reforçando a essencialidade de uma figura dissonante (leia-se "herói") numa sociedade que se move como gado. No novo filme, anos se passaram e o acordo de paz entre as Máquinas e a Humanidade foi quebrado a partir de uma "atualização" de sistema, que acordou personagens antes deitados na letargia da obediência a um tratado de cavalheirismo. Quando a Matrix realinha seus códigos, Neo desperta na ilusão de ser um designer em prol da Warner Bros., em uma deliciosa metalinguagem. Mas a necessidade do amor físico que tem por Trinity (Carrie-Anne Moss, sublime em cena) dá um bug no binarismo da ilusão. Ao despertar, ele parte para uma nova luta, retomando destrezas passadas ("Eu ainda sei kung fu") mas reciclando-as como gestos coreográficos, como um balé, como arte viva, como cinema dos grandes. Keanu é muito, mas muito, mas muito mesmo maior do que a gente pensa que ele é. É persona e faz parte do que o entretenimento nos deu de mais útil: ele é um ícone da reinvenção, seja do heroísmo, seja da condição masculina.

p.s.: A 51ª edição do Festival de Roterdã, na Holanda, começa nesta quarta, apenas online, por conta da pandemia, com a projeção via web de "Please Baby Please", da americana Amanda Kramer. É uma espécie de "Cry Baby" das neuroses sexuais destes tempos em que o corpo foi sublimado em nome de debates e bandeiras, com base numa estilizada recriação dos anos 1950. Andrea Riseborough e Harry Melling são um casal sem sexo. Apesar das investidas dela, ele só sente tesão com os homens encourados da gangue de motoqueiro que circunda suas ruas. Aos poucos, eles vão se misturar ao mundo desses criminosos e ela vai se aproximar de uma colecionadora de vibradores vivida por Demi Moore. Vem do Brasil uma das atrações mais esperadas deste Roterdã: "Paixões Recorrentes", de Ana Carolina: Xará da cantora mineira, a diretora da trilogia "Mar de Rosas" (1978), "Das Tripas Coração" (1982) e "Sonho de Valsa" (1987) assombrou a Europa, entre os anos 1970 e 80 com sua percepção da hipocrisia nas relações sociais. Lá fora, seu prestígio era tal que ela integrou o júri oficial da Berlinale em 1978, ao lado de Sergio Leone e Theo Angeopoulos, quando Ruy Guerra e Nelson Xavier ganharam o Urso de Prata com "A Queda". Sem lançar filmes desde 2014, ela regressa via Roterdã, cercada por um time de peso de atrizes e atores. Seu elenco: Thérèse Cremieux, Luciano Cáceres, Pedro Barreiro, Silvana Ivaldi, Danilo Grangheia, Luiz Iran Gomes, Octávio Moraes. Sua trama: um grupo de pessoas, de diferentes nacionalidades, discutem o estado do mundo em uma pequena praia no sul do Brasil, no dia que marca o início da Segunda Guerra Mundial. Num barzinho em uma praia sul-americana, um comunista brasileiro se enfrenta contra um capitalista português; um fascista argentino discute com uma atriz francesa trotskista. Neste remoto recanto de areia, todos eles defendem suas ideologias que foram superadas pela realidade.

RODRIGO FONSECA Sexta-feira é dia de "Matrix Resurrections" na HBO MAX, inaugurando uma fase nova, agora na streaminguesfera, pra franquia. O quarto longa-metragem, lançado no dia 22 de dezembro, faturou cerca de US$ 150 milhões na venda de ingressos, embatucando cabeças. De todas as frases lúdicas e de todas as falas irônicas que garantem a "Matrix Resurrections" o respaldo para ser um filme memorável, o diálogo "Eu ainda sei kung fu", dito por Neo, no quarto (e devastador) tomo da franquia inaugurada em 1999, é o mais simbólico da operação de revisionismo estético proposto pela cineasta Lana Wachowski. Salpicado por especiarias ligadas à trans cultura de identidade de gênero, a partir da experiência pessoal de sua realizadora, o filme é uma exuberante triagem das maneiras de se "espetacularizar" o pop. Inclua aí até uma ideia popularesca que se construiu da Psicanálise - como lugar de respostas prontas e não de enfrentamento - encarnada na figura dionisíaca de Neil Patrick Harris e seu gato Déjà Vu. Mas a triagem que mais se destaca é a forma como Lana recupera toda a metodologia de se representar a violência no cinema pipoca dos anos 1990 pra cá. E o faz, em parte, pelo fato de o primeiro "Matrix" ter deflagrado, com seu "efeito bala" (espécie de câmera lenta aplicada a uma coreografia de bloqueio), a estética mais essencial da ação na década seguinte. Naquele momento da História, a CNN deu ao Jornalismo uma dimensão de espetáculo, mostrando que uma série de eventos do dito "mundo real" tinham um grau de inusitado capaz de desafiar as diretrizes da ficção. Não por acaso, surgiu ali a era do reality show - prenunciada por "Show de Truman", de Peter Weir - e nasceu o boom do documentário, que transformou certos diretores (Eduardo Coutinho, Frederick Wiseman, Patricio Guzmán) em igrejas. Sob o véu de um "realismo legitimador", uma crença de que a proximidade com estratégias documentais tornaria qualquer narrativa mais pertinente, a saga de Neo chegou as telas como um fenômeno, com a proposta de transformar em fantasia a teoria da "jogabilidade". Para isso, aquele primeiro filme da (hoje) teatralogia apoiava-se em uma estrutura de ação mais espetaculosa do que reportagens das guerras com infravermelho feitas pela TV naquele momento de sensacionalismos gourmet. Misturando artes marciais com o Imperativo Categórico Kantiano e orientalismo com linguagem da MTV, a produção de US$ 63 milhões revolucionou dinâmicas e arquétipos. Mas revolucionou, sobretudo, o tal kung fu de que Neo fala neste novo filme: por trás de cada soco ou chute do personagem de Keanu Reeves havia um gesto... um gesto demasiadamente humano... um gesto de afirmação da condição humana sob a opressão de um sistema simbólico de submissão. O segundo filme, "Matrix Reloaded", preservou essa perspectiva, galvanizada com a entrada do herói Seraph (Collin Chow). Já o terceiro filme, o confuso "Revolutions", mais próximo de Habermas do que de Kant, optou por uma linhagem de submissão, substituindo o embate pela imolação, sem pensar os socos e pontapés como gestos. Mas o tempo passou, Lana transicionou e o cinema evoluiu em suas reflexões, sendo avassalado pelas estruturas narrativas muito dialogadas, de perspectiva palavrosa. Uma nova matrix engoliu a imagem exigindo uma nova... "Matrix". E, não por acaso, Keanu Reeves deveria estar na linha de frente. E parte por ele ser o emblema da transformação mais significativa da ação nas telas, na década passada: a cinessérie "John Wick". A cruzada do matador de aluguel que se revolta com a morte de seu cão mudou a forma de se filmar brigas e tiroteios tratando esses acontecimentos sob uma ótica cinemática, em que o movimento é soberano, desafiando as leis vetoriais da Física, como só se viu em animações, como se fosse um desenho do Papa-Léguas. Reeves foi o rosto emblema dessa transformação. Aliás, em dois outros momentos da História, o Cinema contou com ele para renovar o uso da adrenalina na tela grande: em "Caçadores de Emoção" (1991) e "Velocidade Máxima" (1994). Agora, mais uma vez, o avatar do heroísmo nos salva da mesmice reforçando a essencialidade de uma figura dissonante (leia-se "herói") numa sociedade que se move como gado. No novo filme, anos se passaram e o acordo de paz entre as Máquinas e a Humanidade foi quebrado a partir de uma "atualização" de sistema, que acordou personagens antes deitados na letargia da obediência a um tratado de cavalheirismo. Quando a Matrix realinha seus códigos, Neo desperta na ilusão de ser um designer em prol da Warner Bros., em uma deliciosa metalinguagem. Mas a necessidade do amor físico que tem por Trinity (Carrie-Anne Moss, sublime em cena) dá um bug no binarismo da ilusão. Ao despertar, ele parte para uma nova luta, retomando destrezas passadas ("Eu ainda sei kung fu") mas reciclando-as como gestos coreográficos, como um balé, como arte viva, como cinema dos grandes. Keanu é muito, mas muito, mas muito mesmo maior do que a gente pensa que ele é. É persona e faz parte do que o entretenimento nos deu de mais útil: ele é um ícone da reinvenção, seja do heroísmo, seja da condição masculina.

p.s.: A 51ª edição do Festival de Roterdã, na Holanda, começa nesta quarta, apenas online, por conta da pandemia, com a projeção via web de "Please Baby Please", da americana Amanda Kramer. É uma espécie de "Cry Baby" das neuroses sexuais destes tempos em que o corpo foi sublimado em nome de debates e bandeiras, com base numa estilizada recriação dos anos 1950. Andrea Riseborough e Harry Melling são um casal sem sexo. Apesar das investidas dela, ele só sente tesão com os homens encourados da gangue de motoqueiro que circunda suas ruas. Aos poucos, eles vão se misturar ao mundo desses criminosos e ela vai se aproximar de uma colecionadora de vibradores vivida por Demi Moore. Vem do Brasil uma das atrações mais esperadas deste Roterdã: "Paixões Recorrentes", de Ana Carolina: Xará da cantora mineira, a diretora da trilogia "Mar de Rosas" (1978), "Das Tripas Coração" (1982) e "Sonho de Valsa" (1987) assombrou a Europa, entre os anos 1970 e 80 com sua percepção da hipocrisia nas relações sociais. Lá fora, seu prestígio era tal que ela integrou o júri oficial da Berlinale em 1978, ao lado de Sergio Leone e Theo Angeopoulos, quando Ruy Guerra e Nelson Xavier ganharam o Urso de Prata com "A Queda". Sem lançar filmes desde 2014, ela regressa via Roterdã, cercada por um time de peso de atrizes e atores. Seu elenco: Thérèse Cremieux, Luciano Cáceres, Pedro Barreiro, Silvana Ivaldi, Danilo Grangheia, Luiz Iran Gomes, Octávio Moraes. Sua trama: um grupo de pessoas, de diferentes nacionalidades, discutem o estado do mundo em uma pequena praia no sul do Brasil, no dia que marca o início da Segunda Guerra Mundial. Num barzinho em uma praia sul-americana, um comunista brasileiro se enfrenta contra um capitalista português; um fascista argentino discute com uma atriz francesa trotskista. Neste remoto recanto de areia, todos eles defendem suas ideologias que foram superadas pela realidade.

RODRIGO FONSECA Sexta-feira é dia de "Matrix Resurrections" na HBO MAX, inaugurando uma fase nova, agora na streaminguesfera, pra franquia. O quarto longa-metragem, lançado no dia 22 de dezembro, faturou cerca de US$ 150 milhões na venda de ingressos, embatucando cabeças. De todas as frases lúdicas e de todas as falas irônicas que garantem a "Matrix Resurrections" o respaldo para ser um filme memorável, o diálogo "Eu ainda sei kung fu", dito por Neo, no quarto (e devastador) tomo da franquia inaugurada em 1999, é o mais simbólico da operação de revisionismo estético proposto pela cineasta Lana Wachowski. Salpicado por especiarias ligadas à trans cultura de identidade de gênero, a partir da experiência pessoal de sua realizadora, o filme é uma exuberante triagem das maneiras de se "espetacularizar" o pop. Inclua aí até uma ideia popularesca que se construiu da Psicanálise - como lugar de respostas prontas e não de enfrentamento - encarnada na figura dionisíaca de Neil Patrick Harris e seu gato Déjà Vu. Mas a triagem que mais se destaca é a forma como Lana recupera toda a metodologia de se representar a violência no cinema pipoca dos anos 1990 pra cá. E o faz, em parte, pelo fato de o primeiro "Matrix" ter deflagrado, com seu "efeito bala" (espécie de câmera lenta aplicada a uma coreografia de bloqueio), a estética mais essencial da ação na década seguinte. Naquele momento da História, a CNN deu ao Jornalismo uma dimensão de espetáculo, mostrando que uma série de eventos do dito "mundo real" tinham um grau de inusitado capaz de desafiar as diretrizes da ficção. Não por acaso, surgiu ali a era do reality show - prenunciada por "Show de Truman", de Peter Weir - e nasceu o boom do documentário, que transformou certos diretores (Eduardo Coutinho, Frederick Wiseman, Patricio Guzmán) em igrejas. Sob o véu de um "realismo legitimador", uma crença de que a proximidade com estratégias documentais tornaria qualquer narrativa mais pertinente, a saga de Neo chegou as telas como um fenômeno, com a proposta de transformar em fantasia a teoria da "jogabilidade". Para isso, aquele primeiro filme da (hoje) teatralogia apoiava-se em uma estrutura de ação mais espetaculosa do que reportagens das guerras com infravermelho feitas pela TV naquele momento de sensacionalismos gourmet. Misturando artes marciais com o Imperativo Categórico Kantiano e orientalismo com linguagem da MTV, a produção de US$ 63 milhões revolucionou dinâmicas e arquétipos. Mas revolucionou, sobretudo, o tal kung fu de que Neo fala neste novo filme: por trás de cada soco ou chute do personagem de Keanu Reeves havia um gesto... um gesto demasiadamente humano... um gesto de afirmação da condição humana sob a opressão de um sistema simbólico de submissão. O segundo filme, "Matrix Reloaded", preservou essa perspectiva, galvanizada com a entrada do herói Seraph (Collin Chow). Já o terceiro filme, o confuso "Revolutions", mais próximo de Habermas do que de Kant, optou por uma linhagem de submissão, substituindo o embate pela imolação, sem pensar os socos e pontapés como gestos. Mas o tempo passou, Lana transicionou e o cinema evoluiu em suas reflexões, sendo avassalado pelas estruturas narrativas muito dialogadas, de perspectiva palavrosa. Uma nova matrix engoliu a imagem exigindo uma nova... "Matrix". E, não por acaso, Keanu Reeves deveria estar na linha de frente. E parte por ele ser o emblema da transformação mais significativa da ação nas telas, na década passada: a cinessérie "John Wick". A cruzada do matador de aluguel que se revolta com a morte de seu cão mudou a forma de se filmar brigas e tiroteios tratando esses acontecimentos sob uma ótica cinemática, em que o movimento é soberano, desafiando as leis vetoriais da Física, como só se viu em animações, como se fosse um desenho do Papa-Léguas. Reeves foi o rosto emblema dessa transformação. Aliás, em dois outros momentos da História, o Cinema contou com ele para renovar o uso da adrenalina na tela grande: em "Caçadores de Emoção" (1991) e "Velocidade Máxima" (1994). Agora, mais uma vez, o avatar do heroísmo nos salva da mesmice reforçando a essencialidade de uma figura dissonante (leia-se "herói") numa sociedade que se move como gado. No novo filme, anos se passaram e o acordo de paz entre as Máquinas e a Humanidade foi quebrado a partir de uma "atualização" de sistema, que acordou personagens antes deitados na letargia da obediência a um tratado de cavalheirismo. Quando a Matrix realinha seus códigos, Neo desperta na ilusão de ser um designer em prol da Warner Bros., em uma deliciosa metalinguagem. Mas a necessidade do amor físico que tem por Trinity (Carrie-Anne Moss, sublime em cena) dá um bug no binarismo da ilusão. Ao despertar, ele parte para uma nova luta, retomando destrezas passadas ("Eu ainda sei kung fu") mas reciclando-as como gestos coreográficos, como um balé, como arte viva, como cinema dos grandes. Keanu é muito, mas muito, mas muito mesmo maior do que a gente pensa que ele é. É persona e faz parte do que o entretenimento nos deu de mais útil: ele é um ícone da reinvenção, seja do heroísmo, seja da condição masculina.

p.s.: A 51ª edição do Festival de Roterdã, na Holanda, começa nesta quarta, apenas online, por conta da pandemia, com a projeção via web de "Please Baby Please", da americana Amanda Kramer. É uma espécie de "Cry Baby" das neuroses sexuais destes tempos em que o corpo foi sublimado em nome de debates e bandeiras, com base numa estilizada recriação dos anos 1950. Andrea Riseborough e Harry Melling são um casal sem sexo. Apesar das investidas dela, ele só sente tesão com os homens encourados da gangue de motoqueiro que circunda suas ruas. Aos poucos, eles vão se misturar ao mundo desses criminosos e ela vai se aproximar de uma colecionadora de vibradores vivida por Demi Moore. Vem do Brasil uma das atrações mais esperadas deste Roterdã: "Paixões Recorrentes", de Ana Carolina: Xará da cantora mineira, a diretora da trilogia "Mar de Rosas" (1978), "Das Tripas Coração" (1982) e "Sonho de Valsa" (1987) assombrou a Europa, entre os anos 1970 e 80 com sua percepção da hipocrisia nas relações sociais. Lá fora, seu prestígio era tal que ela integrou o júri oficial da Berlinale em 1978, ao lado de Sergio Leone e Theo Angeopoulos, quando Ruy Guerra e Nelson Xavier ganharam o Urso de Prata com "A Queda". Sem lançar filmes desde 2014, ela regressa via Roterdã, cercada por um time de peso de atrizes e atores. Seu elenco: Thérèse Cremieux, Luciano Cáceres, Pedro Barreiro, Silvana Ivaldi, Danilo Grangheia, Luiz Iran Gomes, Octávio Moraes. Sua trama: um grupo de pessoas, de diferentes nacionalidades, discutem o estado do mundo em uma pequena praia no sul do Brasil, no dia que marca o início da Segunda Guerra Mundial. Num barzinho em uma praia sul-americana, um comunista brasileiro se enfrenta contra um capitalista português; um fascista argentino discute com uma atriz francesa trotskista. Neste remoto recanto de areia, todos eles defendem suas ideologias que foram superadas pela realidade.

RODRIGO FONSECA Sexta-feira é dia de "Matrix Resurrections" na HBO MAX, inaugurando uma fase nova, agora na streaminguesfera, pra franquia. O quarto longa-metragem, lançado no dia 22 de dezembro, faturou cerca de US$ 150 milhões na venda de ingressos, embatucando cabeças. De todas as frases lúdicas e de todas as falas irônicas que garantem a "Matrix Resurrections" o respaldo para ser um filme memorável, o diálogo "Eu ainda sei kung fu", dito por Neo, no quarto (e devastador) tomo da franquia inaugurada em 1999, é o mais simbólico da operação de revisionismo estético proposto pela cineasta Lana Wachowski. Salpicado por especiarias ligadas à trans cultura de identidade de gênero, a partir da experiência pessoal de sua realizadora, o filme é uma exuberante triagem das maneiras de se "espetacularizar" o pop. Inclua aí até uma ideia popularesca que se construiu da Psicanálise - como lugar de respostas prontas e não de enfrentamento - encarnada na figura dionisíaca de Neil Patrick Harris e seu gato Déjà Vu. Mas a triagem que mais se destaca é a forma como Lana recupera toda a metodologia de se representar a violência no cinema pipoca dos anos 1990 pra cá. E o faz, em parte, pelo fato de o primeiro "Matrix" ter deflagrado, com seu "efeito bala" (espécie de câmera lenta aplicada a uma coreografia de bloqueio), a estética mais essencial da ação na década seguinte. Naquele momento da História, a CNN deu ao Jornalismo uma dimensão de espetáculo, mostrando que uma série de eventos do dito "mundo real" tinham um grau de inusitado capaz de desafiar as diretrizes da ficção. Não por acaso, surgiu ali a era do reality show - prenunciada por "Show de Truman", de Peter Weir - e nasceu o boom do documentário, que transformou certos diretores (Eduardo Coutinho, Frederick Wiseman, Patricio Guzmán) em igrejas. Sob o véu de um "realismo legitimador", uma crença de que a proximidade com estratégias documentais tornaria qualquer narrativa mais pertinente, a saga de Neo chegou as telas como um fenômeno, com a proposta de transformar em fantasia a teoria da "jogabilidade". Para isso, aquele primeiro filme da (hoje) teatralogia apoiava-se em uma estrutura de ação mais espetaculosa do que reportagens das guerras com infravermelho feitas pela TV naquele momento de sensacionalismos gourmet. Misturando artes marciais com o Imperativo Categórico Kantiano e orientalismo com linguagem da MTV, a produção de US$ 63 milhões revolucionou dinâmicas e arquétipos. Mas revolucionou, sobretudo, o tal kung fu de que Neo fala neste novo filme: por trás de cada soco ou chute do personagem de Keanu Reeves havia um gesto... um gesto demasiadamente humano... um gesto de afirmação da condição humana sob a opressão de um sistema simbólico de submissão. O segundo filme, "Matrix Reloaded", preservou essa perspectiva, galvanizada com a entrada do herói Seraph (Collin Chow). Já o terceiro filme, o confuso "Revolutions", mais próximo de Habermas do que de Kant, optou por uma linhagem de submissão, substituindo o embate pela imolação, sem pensar os socos e pontapés como gestos. Mas o tempo passou, Lana transicionou e o cinema evoluiu em suas reflexões, sendo avassalado pelas estruturas narrativas muito dialogadas, de perspectiva palavrosa. Uma nova matrix engoliu a imagem exigindo uma nova... "Matrix". E, não por acaso, Keanu Reeves deveria estar na linha de frente. E parte por ele ser o emblema da transformação mais significativa da ação nas telas, na década passada: a cinessérie "John Wick". A cruzada do matador de aluguel que se revolta com a morte de seu cão mudou a forma de se filmar brigas e tiroteios tratando esses acontecimentos sob uma ótica cinemática, em que o movimento é soberano, desafiando as leis vetoriais da Física, como só se viu em animações, como se fosse um desenho do Papa-Léguas. Reeves foi o rosto emblema dessa transformação. Aliás, em dois outros momentos da História, o Cinema contou com ele para renovar o uso da adrenalina na tela grande: em "Caçadores de Emoção" (1991) e "Velocidade Máxima" (1994). Agora, mais uma vez, o avatar do heroísmo nos salva da mesmice reforçando a essencialidade de uma figura dissonante (leia-se "herói") numa sociedade que se move como gado. No novo filme, anos se passaram e o acordo de paz entre as Máquinas e a Humanidade foi quebrado a partir de uma "atualização" de sistema, que acordou personagens antes deitados na letargia da obediência a um tratado de cavalheirismo. Quando a Matrix realinha seus códigos, Neo desperta na ilusão de ser um designer em prol da Warner Bros., em uma deliciosa metalinguagem. Mas a necessidade do amor físico que tem por Trinity (Carrie-Anne Moss, sublime em cena) dá um bug no binarismo da ilusão. Ao despertar, ele parte para uma nova luta, retomando destrezas passadas ("Eu ainda sei kung fu") mas reciclando-as como gestos coreográficos, como um balé, como arte viva, como cinema dos grandes. Keanu é muito, mas muito, mas muito mesmo maior do que a gente pensa que ele é. É persona e faz parte do que o entretenimento nos deu de mais útil: ele é um ícone da reinvenção, seja do heroísmo, seja da condição masculina.

p.s.: A 51ª edição do Festival de Roterdã, na Holanda, começa nesta quarta, apenas online, por conta da pandemia, com a projeção via web de "Please Baby Please", da americana Amanda Kramer. É uma espécie de "Cry Baby" das neuroses sexuais destes tempos em que o corpo foi sublimado em nome de debates e bandeiras, com base numa estilizada recriação dos anos 1950. Andrea Riseborough e Harry Melling são um casal sem sexo. Apesar das investidas dela, ele só sente tesão com os homens encourados da gangue de motoqueiro que circunda suas ruas. Aos poucos, eles vão se misturar ao mundo desses criminosos e ela vai se aproximar de uma colecionadora de vibradores vivida por Demi Moore. Vem do Brasil uma das atrações mais esperadas deste Roterdã: "Paixões Recorrentes", de Ana Carolina: Xará da cantora mineira, a diretora da trilogia "Mar de Rosas" (1978), "Das Tripas Coração" (1982) e "Sonho de Valsa" (1987) assombrou a Europa, entre os anos 1970 e 80 com sua percepção da hipocrisia nas relações sociais. Lá fora, seu prestígio era tal que ela integrou o júri oficial da Berlinale em 1978, ao lado de Sergio Leone e Theo Angeopoulos, quando Ruy Guerra e Nelson Xavier ganharam o Urso de Prata com "A Queda". Sem lançar filmes desde 2014, ela regressa via Roterdã, cercada por um time de peso de atrizes e atores. Seu elenco: Thérèse Cremieux, Luciano Cáceres, Pedro Barreiro, Silvana Ivaldi, Danilo Grangheia, Luiz Iran Gomes, Octávio Moraes. Sua trama: um grupo de pessoas, de diferentes nacionalidades, discutem o estado do mundo em uma pequena praia no sul do Brasil, no dia que marca o início da Segunda Guerra Mundial. Num barzinho em uma praia sul-americana, um comunista brasileiro se enfrenta contra um capitalista português; um fascista argentino discute com uma atriz francesa trotskista. Neste remoto recanto de areia, todos eles defendem suas ideologias que foram superadas pela realidade.

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