De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

Novo Scorsese beira a epifania


Por Rodrigo Fonseca
Ernest (DiCaprio) cai de amores por Mollie (Lily Gladstone) numa América sem lugar pra bons sentimentos filmada por Martin Scorsese num projeto da AppleTV que vai pras salas de cinema no fim do ano e deve disputar o Oscar - Foto: @Apple TV

Rodrigo Fonseca Poema audiovisual amargo sobre a finitude, "O Irlandês", lançado em 2019 na Netflix, trazia sinais de um dissabor (talvez para com a América de Trump, na qual foi idealizado e lançado) que já não se nota no magnífico "Assassinos da Lua das Flores" ("Killers of the Flower Moon"), o novo (e ousadíssimo) exercício autoral do diretor americano. A sessão em Cannes terminou com uma ovação, sendo que salvas de aplausos ocasionais salpicaram a projeção - uma delas quando Brendan Fraser aparece. Scorsese anunciou o projeto durante a edição passada do festival francês e concordou que ele estreasse na Croisette desde que fora de concurso. Sua Palma de Ouro veio em 1976, por "Taxi Driver", e, dez anos depois, "After Hours" ("Depois de Horas" aqui) rendeu-lhe a láurea de Melhor Direção. Talvez isso baste para o ganhador do Oscar de Melhor Realização, em 2007, por "Os Infiltrados". Tudo sugere que ele vá concorrer de novo por essa enciclopédia do faroeste (o clássico, de Ford e Hawks, e o moderno, com Sergio Leone) em forma de filme, que mais parece uma versão particular dele para "Era Uma Vez No Oeste" (1968). Um "Era Uma Vez No Oeste" que escancara o racismo estrutural dos EUA contra as populações indígenas e faz de uma atriz egressa de uma dessas civilizações, Lily Gladstone, sua Claudia Cardinale. A atuação dela é um esplendor. Sem contar que ele tira toda a poeira que Hollywood depositou sobre Robert De Niro dando a ele um de seus mais fortes papéis: o Rei William Hale, todo-poderoso senhor de terras e senhor de serviços gerais de uma região onde o povo Osage enriqueceu com petróleo. Sua narrativa se afina com a história de glórias desse cineasta tão admirado. Variações da vertente mais sociológica da contracultura, os filmes de Scorsese muitas vezes se banham nas águas da penitência católica, em uma conexão com o passado cristão de ítalo-americano do cineasta nova-iorquino, que pairou sobre a lírica folk, no primeiro decênio de sucesso de sua carreira, ao buscar na poética de Kris Kristofferson uma tradução de si mesmo. Há uma música, falada - e não cantada - no início de "Taxi Driver", que diz: "He's a prophet, he's a pusher/ He's a pilgrim and a preacher, and a problem when he's stoned/ He's a walkin' contradiction, partly truth and partly fiction". Se fosse necessária uma definição quase metafórica para o seu western no século XX, essa estrofe da canção "The Pilgrim, Chapter 33" seria a escolha precisa. Desde "Kundun" (1997), Scorsese não se arriscava a fazer algo tão político quanto fez em "O Irlandês", tendo um "herói" tão épico quanto o buda ditoso que mata em nome do sindicalismo e dos mandamentos da máfia, em sua Omertà. Mas ele conseguiu ir além disso em "Assassinos da Lua das Flores". Nele, um calvário se desenha na passarela de cores saturadas da fotografia de Rodrigo Prieto com a cartografia da exclusão dos Osage.

O senhor feudal fora de época Hale (De Niro, em sublime atuação) e o agente do FBI encarnado por Jesse Plemons  
continua após a publicidade

Na trama decalcada do livro homônimo de David Grann, a narrativa proustiana de 3h26 de Scorsese busca um tempo perdido quando os Osage ficam ricos com a descoberta de combustível fóssil em suas terras e passam a ser manipulados por um senhor feudal fora de época, Hale (De Niro, colossal). Precisando de alguém de confiança para garantir que nenhum Osage passe do ponto, matando-os se preciso for, Hale dá emprego de motorista (e de faz-tudo) para seu sobrinho, Ernest, vivido por um Leonardo DiCaprio maduro, com ares de Burt Lancaster. No flerte com os indígenas que deve vigiar, Ernest se casa com uma delas, Mollie, papel de uma Lily Gladstone milimetricamente atenta a cada detalhe das angústias de sua personagem. Mollie ficou rica, mas padece de diabetes. Padece também da dor diante das mortes de seus conterrâneos. O amor de Ernest é um alívio, mas será, mais adiante, um caos, como Scorsese - um leitor aguerrido de Henry James - faz costumeiramente em suas tramas de tom afetivo. A confusões de Ernest acabam num tribunal, entre dois juristas: Fraser vive um, John Lithgow vive o outro. Mas ainda tem nesse quiproquó a chegada de uma força de segurança recém-criada chamada FBI, representada pelo agente Tom White (Jesse Plemons). Montado por Thelma Schoonmaker com uma velocidade precisa, que favorece a reflexão sem deixar a adrenalina baixar, "Assassinos da Lua das Flores" cria um nó com "A Última Tentação de Cristo" (1988), a menos citada das joias de Scorsese. São filmes sobre escolhas e sobre aquilo que optamos crucificar. Neste ano em que aceitou alimentar nossa fé em Cannes, Scorsese põe o legado histórico de uma população devassada pela intolerância em foco, com as chagas a sangrarem na tela até a sequência final que, técnica e dramaturgicamente, beira uma epifania. Cannes segue até o dia 27. Neste domingo, a competição oficial recebe "Firebrand", de Karim Aïnouz, uma produção inglesa com Alicia Vikander e Jude Law.

Ernest (DiCaprio) cai de amores por Mollie (Lily Gladstone) numa América sem lugar pra bons sentimentos filmada por Martin Scorsese num projeto da AppleTV que vai pras salas de cinema no fim do ano e deve disputar o Oscar - Foto: @Apple TV

Rodrigo Fonseca Poema audiovisual amargo sobre a finitude, "O Irlandês", lançado em 2019 na Netflix, trazia sinais de um dissabor (talvez para com a América de Trump, na qual foi idealizado e lançado) que já não se nota no magnífico "Assassinos da Lua das Flores" ("Killers of the Flower Moon"), o novo (e ousadíssimo) exercício autoral do diretor americano. A sessão em Cannes terminou com uma ovação, sendo que salvas de aplausos ocasionais salpicaram a projeção - uma delas quando Brendan Fraser aparece. Scorsese anunciou o projeto durante a edição passada do festival francês e concordou que ele estreasse na Croisette desde que fora de concurso. Sua Palma de Ouro veio em 1976, por "Taxi Driver", e, dez anos depois, "After Hours" ("Depois de Horas" aqui) rendeu-lhe a láurea de Melhor Direção. Talvez isso baste para o ganhador do Oscar de Melhor Realização, em 2007, por "Os Infiltrados". Tudo sugere que ele vá concorrer de novo por essa enciclopédia do faroeste (o clássico, de Ford e Hawks, e o moderno, com Sergio Leone) em forma de filme, que mais parece uma versão particular dele para "Era Uma Vez No Oeste" (1968). Um "Era Uma Vez No Oeste" que escancara o racismo estrutural dos EUA contra as populações indígenas e faz de uma atriz egressa de uma dessas civilizações, Lily Gladstone, sua Claudia Cardinale. A atuação dela é um esplendor. Sem contar que ele tira toda a poeira que Hollywood depositou sobre Robert De Niro dando a ele um de seus mais fortes papéis: o Rei William Hale, todo-poderoso senhor de terras e senhor de serviços gerais de uma região onde o povo Osage enriqueceu com petróleo. Sua narrativa se afina com a história de glórias desse cineasta tão admirado. Variações da vertente mais sociológica da contracultura, os filmes de Scorsese muitas vezes se banham nas águas da penitência católica, em uma conexão com o passado cristão de ítalo-americano do cineasta nova-iorquino, que pairou sobre a lírica folk, no primeiro decênio de sucesso de sua carreira, ao buscar na poética de Kris Kristofferson uma tradução de si mesmo. Há uma música, falada - e não cantada - no início de "Taxi Driver", que diz: "He's a prophet, he's a pusher/ He's a pilgrim and a preacher, and a problem when he's stoned/ He's a walkin' contradiction, partly truth and partly fiction". Se fosse necessária uma definição quase metafórica para o seu western no século XX, essa estrofe da canção "The Pilgrim, Chapter 33" seria a escolha precisa. Desde "Kundun" (1997), Scorsese não se arriscava a fazer algo tão político quanto fez em "O Irlandês", tendo um "herói" tão épico quanto o buda ditoso que mata em nome do sindicalismo e dos mandamentos da máfia, em sua Omertà. Mas ele conseguiu ir além disso em "Assassinos da Lua das Flores". Nele, um calvário se desenha na passarela de cores saturadas da fotografia de Rodrigo Prieto com a cartografia da exclusão dos Osage.

O senhor feudal fora de época Hale (De Niro, em sublime atuação) e o agente do FBI encarnado por Jesse Plemons  

Na trama decalcada do livro homônimo de David Grann, a narrativa proustiana de 3h26 de Scorsese busca um tempo perdido quando os Osage ficam ricos com a descoberta de combustível fóssil em suas terras e passam a ser manipulados por um senhor feudal fora de época, Hale (De Niro, colossal). Precisando de alguém de confiança para garantir que nenhum Osage passe do ponto, matando-os se preciso for, Hale dá emprego de motorista (e de faz-tudo) para seu sobrinho, Ernest, vivido por um Leonardo DiCaprio maduro, com ares de Burt Lancaster. No flerte com os indígenas que deve vigiar, Ernest se casa com uma delas, Mollie, papel de uma Lily Gladstone milimetricamente atenta a cada detalhe das angústias de sua personagem. Mollie ficou rica, mas padece de diabetes. Padece também da dor diante das mortes de seus conterrâneos. O amor de Ernest é um alívio, mas será, mais adiante, um caos, como Scorsese - um leitor aguerrido de Henry James - faz costumeiramente em suas tramas de tom afetivo. A confusões de Ernest acabam num tribunal, entre dois juristas: Fraser vive um, John Lithgow vive o outro. Mas ainda tem nesse quiproquó a chegada de uma força de segurança recém-criada chamada FBI, representada pelo agente Tom White (Jesse Plemons). Montado por Thelma Schoonmaker com uma velocidade precisa, que favorece a reflexão sem deixar a adrenalina baixar, "Assassinos da Lua das Flores" cria um nó com "A Última Tentação de Cristo" (1988), a menos citada das joias de Scorsese. São filmes sobre escolhas e sobre aquilo que optamos crucificar. Neste ano em que aceitou alimentar nossa fé em Cannes, Scorsese põe o legado histórico de uma população devassada pela intolerância em foco, com as chagas a sangrarem na tela até a sequência final que, técnica e dramaturgicamente, beira uma epifania. Cannes segue até o dia 27. Neste domingo, a competição oficial recebe "Firebrand", de Karim Aïnouz, uma produção inglesa com Alicia Vikander e Jude Law.

Ernest (DiCaprio) cai de amores por Mollie (Lily Gladstone) numa América sem lugar pra bons sentimentos filmada por Martin Scorsese num projeto da AppleTV que vai pras salas de cinema no fim do ano e deve disputar o Oscar - Foto: @Apple TV

Rodrigo Fonseca Poema audiovisual amargo sobre a finitude, "O Irlandês", lançado em 2019 na Netflix, trazia sinais de um dissabor (talvez para com a América de Trump, na qual foi idealizado e lançado) que já não se nota no magnífico "Assassinos da Lua das Flores" ("Killers of the Flower Moon"), o novo (e ousadíssimo) exercício autoral do diretor americano. A sessão em Cannes terminou com uma ovação, sendo que salvas de aplausos ocasionais salpicaram a projeção - uma delas quando Brendan Fraser aparece. Scorsese anunciou o projeto durante a edição passada do festival francês e concordou que ele estreasse na Croisette desde que fora de concurso. Sua Palma de Ouro veio em 1976, por "Taxi Driver", e, dez anos depois, "After Hours" ("Depois de Horas" aqui) rendeu-lhe a láurea de Melhor Direção. Talvez isso baste para o ganhador do Oscar de Melhor Realização, em 2007, por "Os Infiltrados". Tudo sugere que ele vá concorrer de novo por essa enciclopédia do faroeste (o clássico, de Ford e Hawks, e o moderno, com Sergio Leone) em forma de filme, que mais parece uma versão particular dele para "Era Uma Vez No Oeste" (1968). Um "Era Uma Vez No Oeste" que escancara o racismo estrutural dos EUA contra as populações indígenas e faz de uma atriz egressa de uma dessas civilizações, Lily Gladstone, sua Claudia Cardinale. A atuação dela é um esplendor. Sem contar que ele tira toda a poeira que Hollywood depositou sobre Robert De Niro dando a ele um de seus mais fortes papéis: o Rei William Hale, todo-poderoso senhor de terras e senhor de serviços gerais de uma região onde o povo Osage enriqueceu com petróleo. Sua narrativa se afina com a história de glórias desse cineasta tão admirado. Variações da vertente mais sociológica da contracultura, os filmes de Scorsese muitas vezes se banham nas águas da penitência católica, em uma conexão com o passado cristão de ítalo-americano do cineasta nova-iorquino, que pairou sobre a lírica folk, no primeiro decênio de sucesso de sua carreira, ao buscar na poética de Kris Kristofferson uma tradução de si mesmo. Há uma música, falada - e não cantada - no início de "Taxi Driver", que diz: "He's a prophet, he's a pusher/ He's a pilgrim and a preacher, and a problem when he's stoned/ He's a walkin' contradiction, partly truth and partly fiction". Se fosse necessária uma definição quase metafórica para o seu western no século XX, essa estrofe da canção "The Pilgrim, Chapter 33" seria a escolha precisa. Desde "Kundun" (1997), Scorsese não se arriscava a fazer algo tão político quanto fez em "O Irlandês", tendo um "herói" tão épico quanto o buda ditoso que mata em nome do sindicalismo e dos mandamentos da máfia, em sua Omertà. Mas ele conseguiu ir além disso em "Assassinos da Lua das Flores". Nele, um calvário se desenha na passarela de cores saturadas da fotografia de Rodrigo Prieto com a cartografia da exclusão dos Osage.

O senhor feudal fora de época Hale (De Niro, em sublime atuação) e o agente do FBI encarnado por Jesse Plemons  

Na trama decalcada do livro homônimo de David Grann, a narrativa proustiana de 3h26 de Scorsese busca um tempo perdido quando os Osage ficam ricos com a descoberta de combustível fóssil em suas terras e passam a ser manipulados por um senhor feudal fora de época, Hale (De Niro, colossal). Precisando de alguém de confiança para garantir que nenhum Osage passe do ponto, matando-os se preciso for, Hale dá emprego de motorista (e de faz-tudo) para seu sobrinho, Ernest, vivido por um Leonardo DiCaprio maduro, com ares de Burt Lancaster. No flerte com os indígenas que deve vigiar, Ernest se casa com uma delas, Mollie, papel de uma Lily Gladstone milimetricamente atenta a cada detalhe das angústias de sua personagem. Mollie ficou rica, mas padece de diabetes. Padece também da dor diante das mortes de seus conterrâneos. O amor de Ernest é um alívio, mas será, mais adiante, um caos, como Scorsese - um leitor aguerrido de Henry James - faz costumeiramente em suas tramas de tom afetivo. A confusões de Ernest acabam num tribunal, entre dois juristas: Fraser vive um, John Lithgow vive o outro. Mas ainda tem nesse quiproquó a chegada de uma força de segurança recém-criada chamada FBI, representada pelo agente Tom White (Jesse Plemons). Montado por Thelma Schoonmaker com uma velocidade precisa, que favorece a reflexão sem deixar a adrenalina baixar, "Assassinos da Lua das Flores" cria um nó com "A Última Tentação de Cristo" (1988), a menos citada das joias de Scorsese. São filmes sobre escolhas e sobre aquilo que optamos crucificar. Neste ano em que aceitou alimentar nossa fé em Cannes, Scorsese põe o legado histórico de uma população devassada pela intolerância em foco, com as chagas a sangrarem na tela até a sequência final que, técnica e dramaturgicamente, beira uma epifania. Cannes segue até o dia 27. Neste domingo, a competição oficial recebe "Firebrand", de Karim Aïnouz, uma produção inglesa com Alicia Vikander e Jude Law.

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.