Rodrigo Fonseca Calamidades se sucedem a granel na narrativa de "Coisa", peça em cartaz aos sábados, domingos e segundas no palco do Gláucio Gil, em Copacabana: um terremoto, um vulcão e, por fim, um furacão. Não há tremores físicos. Não se vê lava. Não passa vento forte. Acidente natural algum se materializa no charmoso teatro vizinho à estação Cardeal Arcoverde do Metrô Rio. Só tem saliva. O cuspe de Lisa Eiras é a argila que esculpe as palavras escritas por Julia Spadaccini - em meio a um processo criativo da atriz supracitada - a partir de uma esgrima de reflexões realizada nos tempos em que o Brasil escorria pela cloaca de nossa democracia, no frigir da pandemia. Sob uma direção algébrica de Michel Blois (eficaz na testagem das operações de subtração e divisão do verbo "viver"), Lisa se divide em quatro em cena, com a ajuda de um conjunto de cordas com que monta uma figura geométrica - ora isósceles, ora escalena. São quatro personagens que seu rosto de Amélie Poulain acopla bem, entre esgares, olhões de mangá e paisagens. O que ela fala, extraído da argila babada de angústia oferecida a ela por Spadaccini, faz a gente lembrar de "A Bela e Fera ou A Ferida Grande Demais" (escrito em 1977 e publicado em 1979), cunhado por Clarice Lispector (1920-1977). Há um trecho do conto de Lispector especialmente sintonizado com o que Lisa professa: "Estava sonhadora, distraída, de lábios entreabertos com se houvesse à beira deles uma palavra. Por um motivo que ela não saberia explicar - ele era verdadeiramente ela mesma. E assim, quando o motorista ligou o rádio, ouviu que o bacalhau produzia nove mil óvulos por ano. Não soube deduzir nada com essa frase, ela que estava precisando de um destino.", escreveu Clarice. Fala-se em "paredão do desejo" no texto de Spadaccini. Esmagadas por ele, tal qual a vida nos esmaga, as heterônimas de Lisa estão também precisando de um destino, qual a personagem de La Lispector. Uma delas, a mais intensa, encontra um abacate. Compensação válida. Dele, lambuzando-se do verdume de um guacamole improvisado a unhas e dentes, Lisa extrai uma seiva existencialista que nos inebria com a potência cênica de uma atriz que se imola (e nos encanta) na pesquisa do que a cena é (ainda... e sempre) capaz de dar milênios depois de Sófocles. A tal guria do abacate ganha a vida vendendo jeans, faz frilas que sempre atrasam o pagamento e dá comida a gatos, na inércia de quem passa os dias de camiseta e calcinha em casa, a testemunhar seu patrimônio naufragar na areia movediça do impasse profissional. Ela é a segunda a quem somos apresentados e vem sob uma luz avermelhada da iluminação ninja de Maneco Quinderé. Antes dela vir, sob uma luz amarelada, aparece uma mãe de dois filhos - um asmático e um míope - que troca a água de sua tartaruga antes de purgar as inquietações de sua vida de casada. As outras duas se aproximam de nós como os Super Gêmeos Zan e Jayna, do desenho "Superamigos": gritam "Ativar!" e assumem forma de texto e forma de recitação. Uma delas é dramaturga e a outra, uma atriz. Todas estão na casa dos 40 anos. Em um determinado ponto, no ápice de cada uma dessas narrativas, elas têm um encontro inesperado, nuas, onde nudez e verdade (pessoal) são o deslindamento dos véus do sufoco que oprimem mulheres nas mais variadas realidades do país, do mundo. Cada uma delas passa pelas tais calamidades de que falamos lá no início deste soluço. Processos vivos como o do trinômio Eiras + Spadaccini +Blois não geram críticas, geram soluços, pois afetam a alma, mais do que o racionalismo consciente. É autopsia em corpo vivo. Eiras usa a expressão "objeto não identificado" para se referir ao tal estágio de nudez, ao fato de suas mulheres estarem peladas (leia-se isentas de etiquetas, de rótulos) ao deitarem numa relva com flores vermelhas e formigas afoitas como se fossem Eva deitando no Éden enjoada da Maçã e curiosa por abraçar a Cobra do Paraíso. São metáforas que flutuam diante de nós, detonadas pelo TNT de um monólogo inflamável que fica em cartaz até 31 de julho.
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