De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

Que nosso cinema ache e aplauda 'Perdida'


Por Rodrigo Fonseca
Tem ecos de Julia Roberts, de Rachel McAdams e Lucélia Santos em Giovanna Grigio, estrela do delicado "Perdida", uma espécie de "Pretty Woman" do Brasil, em siálogo com Jane Austen - @ Foto: Divulgação: Filmland International e Star Original Production

RODRIGO FONSECA Refratário a fórmulas que pudessem paragonar suas escolhas com as dinâmicas de Hollywood, o cinema brasileiro travou pouca intimidade com filões de gênero. Ficou com a comédia e com o melodrama, mas torceu o nariz para as veredas da fantasia, alimentadas ao longo de sua trajetória basicamente por José Mojica Marins (e seus atuais herdeiros, como Rodrigo Aragão) e por experimentos infantojuvenis de aventura (caso dos filmes dos Trapalhões). Nos tempos em que a Boca do Lixo era uma mina aurífera de ideias, westerns e thrillers saltavam das moviolas. Mas ela fechou e, na sequência, o espectro realista (de ensejo documental) da Retomada rompeu com esse fluxo. Essa ruptura se perpetuou no cinema dos anos 2010 e 2020, com a exceção dos longas de horror do terreno do extra-ordinário ("Trabalhar Cansa", por exemplo). Diante dessa trava, que só faz se enferrujar desde os anos 1960, um filme como "Perdida" - um espetáculo visual exuberante de uma delicadeza contagiante - merece plena atenção, análise, respeito e prestígio só por abrir um veio fabular raras vezes explorado em nossas telas (talvez só em "Era Uma Vez...", de Arturo Uranga, e "Lua de Cristal", com Tizuka Yamasaki). Esse veio é a fábula romântica em forma de conto de fadas. Produtora do êxito de bilheteria "Divórcio" (2017), do brilhante "Motorrad" (atração do Festival de Toronto de 2017) e do johnwickiano "Yakuza Princess" (2021), Luiza Shelling Tubaldini mantém sua linha de ousadias industriais e desenvolveu o projeto de um "filme de princesa" (num viés feminista, avesso ao sexismo) com base na literatura best-seller de Carina Rissi (autora de fenômenos de papel como "Mentira Perfeita"). De prosa com Carina, Tubaldini (que assina a direção ao lado de Katherine Chediak Putnam e Dean W. Law) produziu um longa-metragem vistoso e bem recheado de conflitos sociais e comportamentais. Um longa que se impõe como concorrente de peso para a temporada de férias. Há uma série de acertos em sua mistura de ingredientes e referências ("Uma Linda Mulher", "Kate & Leopold", "Bridgerton"), com destaque para a escalação nada óbvia do eterno Casseta Hélio de la Peña para um papel sério (e áspero) e para a fotografia de aparência neoclássica de Jacob Sarmento Solitrenick (do seminal "Garotas do ABC"). Seu parente mais recente no cinemão atual é "Cinderela" (2015), de Kenneth Branagh.

 
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Qualquer reflexão a ser feita sobre um filme que, a partir da obra de C. Rissi, releva o olhar feminino da literatura de Jane Austen (1775-1817), requer um olhar sobre sua protagonista, que vai traduzir todos os valores históricos de empoderamento. Nesse aspecto, a escolha de Giovanna Grigio - estrela nata, que parece uma mistura de Rachel McAdams com Lucélia Santos, com um ferramental cênico fartíssimo - foi certeira. Cada gesto dela desenha as certezas e as indefinições de sua personagem, a editora de livros Sofia, com complexidades que só atrizes capazes de escavar camadas inusitadas em arquétipos banalizados conseguem fazer. Foi o que transformou Julia Roberts no que ela virou, a partir do já citado "Pretty Woman". Nessa lógica, há um Richard Gere bem brasileiro na composição de Bruno Montaleone, que faz seu par romântico com austeridade e economia de gestos. Juntos, os dois estabelecem uma simbiose que nos leva a questionar o quanto (nos) faz falta um investimento de nossa dramaturgia numa ideia de benquerer que extrapole as contrações, contrições e restrições impostas por vários aparelhos ideológicos de estado (AIT) do presente, ainda que seja um estado de exceção ou de revolução. Em "Perdida", Sofia (Giovanna Grigio) é uma intelectual da Letras, devotada ao ramo editorial, que parou de acreditar nas desinências diárias do verbo "amar". Chega a flopar os planos de casamento de sua melhor amiga por desacreditar no casamento e em ideais românticos de outrora. Sua única conciliação com as manhas do gostar se dá pela imersão no universo literário de Jane Austen ("Persuasão"), uma das autoras que potencializaram a percepção de que o romance inglês dos séculos XVII e XVIII encaixou-se historicamente na produção cultural como uma "tecnologia". Uma "tecnologia" de papel que permitia uma relação solitária e silenciosa de imersão de leitores num media do qual mundos imaginários e hipóteses de realidade brotam de letras impressas em papel. Não por acaso, Ian Watt (1917-1999), autor do oracular "The Rise of the Novel" (1957), dizia: "Se estivermos genuinamente interessados num livro, podemos até mesmo nos sentirmos gratos quando outros chamam nossa atenção para coisas que deixamos passar ou que não entendemos. Na leitura, todas as grandes questões da vida humana aparecem no palco estreito de Jane Austen. É verdade que é apenas o palco das circunstâncias domésticas mesquinhas, mas, afinal de contas, esse é o único palco em que a maioria de nós provavelmente as encontrará em sua inteireza".

Atenta a essa teorização, a esquadra de roteiristas de "Perdida", formada por Luiza Shelling Tubaldini, Karoline Bueno, C. Rissi, Katherine Chediak Putnam e Dean W. Law, cria um paralelo (arrebatador) entre os enredos de Austen e as peripécias afetivas de Sofia. Em sua rotina de azedume em relação ao Cupido, ela enfrenta abusos sexistas em seu trabalho, o que só desgasta sua paciência em relação a potenciais pretendentes supostamente fofos. Mas ao pegar uma corrida com uma chofer misteriosa (Luciana Paes, um ímã de gargalhadas), sem saber que se trata de sua fada, ou melhor, sua Safada Madrinha, Sofia atravessa um portal mágico e cai num mundo onde tudo é decalcado dos romances de Jane A. Inclua aí uma noção telúrica de príncipe encantado que se faz representar (muito bem) pelo criador de cavalos Ian Clarke (papel de Montaleone). Ele acolhe Sofia assim que ela ultrapassa a dimensão do real e cai num século XVIII falante de Português, onde intrigas românticas movimentam a trama, sempre abrindo espaço para que o roteiro engate debates das lutas identitárias e das pelejas de gênero do Presente, tendo Hélio de la Peña como o médico Dr. Almeida.

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Dr. Almeida (Helio de la Peña) aconselha o criador de cavalos Ian (Bruno Montaleone)  

Uma lady cheia de preconceitos, encarnada por (uma sempre vicejante) Lucinha Lins, com seu marido submisso (#sqn) vivido por Thiago Justino, desenha os percalços sociológicos do mundo onde Sofia vai parar. Mas a doce figura de Clarke faz aquela realidade valer a pena. É uma realidade que oferece às plateias brasileiras (sobretudo às mais jovens, fãs de C. Rissi) a chance de descobrir a grandeza sem fim de Austen e, de certa forma, das boas adaptações audiovisuais de seus romances, em especial o "Orgulho & Preconceito" (2005), de Joe Wright, e o "Razão e Sensibilidade" que rendeu o Urso de Ouro a Ang Lee, em 1996. Num tempo em que os AITs querem matar o amor, "Perdida" é um filme em que nosso cinema se (re)encontra como "artindústria" que é. Eis um golaço da Filmland Internacional (produtora de Tubaldini) e da linha Star Original Productions, que se uniram pra gerar uma dramaturgia sem medo de conversar com as plateias pelo miocárdio.

Tem ecos de Julia Roberts, de Rachel McAdams e Lucélia Santos em Giovanna Grigio, estrela do delicado "Perdida", uma espécie de "Pretty Woman" do Brasil, em siálogo com Jane Austen - @ Foto: Divulgação: Filmland International e Star Original Production

RODRIGO FONSECA Refratário a fórmulas que pudessem paragonar suas escolhas com as dinâmicas de Hollywood, o cinema brasileiro travou pouca intimidade com filões de gênero. Ficou com a comédia e com o melodrama, mas torceu o nariz para as veredas da fantasia, alimentadas ao longo de sua trajetória basicamente por José Mojica Marins (e seus atuais herdeiros, como Rodrigo Aragão) e por experimentos infantojuvenis de aventura (caso dos filmes dos Trapalhões). Nos tempos em que a Boca do Lixo era uma mina aurífera de ideias, westerns e thrillers saltavam das moviolas. Mas ela fechou e, na sequência, o espectro realista (de ensejo documental) da Retomada rompeu com esse fluxo. Essa ruptura se perpetuou no cinema dos anos 2010 e 2020, com a exceção dos longas de horror do terreno do extra-ordinário ("Trabalhar Cansa", por exemplo). Diante dessa trava, que só faz se enferrujar desde os anos 1960, um filme como "Perdida" - um espetáculo visual exuberante de uma delicadeza contagiante - merece plena atenção, análise, respeito e prestígio só por abrir um veio fabular raras vezes explorado em nossas telas (talvez só em "Era Uma Vez...", de Arturo Uranga, e "Lua de Cristal", com Tizuka Yamasaki). Esse veio é a fábula romântica em forma de conto de fadas. Produtora do êxito de bilheteria "Divórcio" (2017), do brilhante "Motorrad" (atração do Festival de Toronto de 2017) e do johnwickiano "Yakuza Princess" (2021), Luiza Shelling Tubaldini mantém sua linha de ousadias industriais e desenvolveu o projeto de um "filme de princesa" (num viés feminista, avesso ao sexismo) com base na literatura best-seller de Carina Rissi (autora de fenômenos de papel como "Mentira Perfeita"). De prosa com Carina, Tubaldini (que assina a direção ao lado de Katherine Chediak Putnam e Dean W. Law) produziu um longa-metragem vistoso e bem recheado de conflitos sociais e comportamentais. Um longa que se impõe como concorrente de peso para a temporada de férias. Há uma série de acertos em sua mistura de ingredientes e referências ("Uma Linda Mulher", "Kate & Leopold", "Bridgerton"), com destaque para a escalação nada óbvia do eterno Casseta Hélio de la Peña para um papel sério (e áspero) e para a fotografia de aparência neoclássica de Jacob Sarmento Solitrenick (do seminal "Garotas do ABC"). Seu parente mais recente no cinemão atual é "Cinderela" (2015), de Kenneth Branagh.

 

Qualquer reflexão a ser feita sobre um filme que, a partir da obra de C. Rissi, releva o olhar feminino da literatura de Jane Austen (1775-1817), requer um olhar sobre sua protagonista, que vai traduzir todos os valores históricos de empoderamento. Nesse aspecto, a escolha de Giovanna Grigio - estrela nata, que parece uma mistura de Rachel McAdams com Lucélia Santos, com um ferramental cênico fartíssimo - foi certeira. Cada gesto dela desenha as certezas e as indefinições de sua personagem, a editora de livros Sofia, com complexidades que só atrizes capazes de escavar camadas inusitadas em arquétipos banalizados conseguem fazer. Foi o que transformou Julia Roberts no que ela virou, a partir do já citado "Pretty Woman". Nessa lógica, há um Richard Gere bem brasileiro na composição de Bruno Montaleone, que faz seu par romântico com austeridade e economia de gestos. Juntos, os dois estabelecem uma simbiose que nos leva a questionar o quanto (nos) faz falta um investimento de nossa dramaturgia numa ideia de benquerer que extrapole as contrações, contrições e restrições impostas por vários aparelhos ideológicos de estado (AIT) do presente, ainda que seja um estado de exceção ou de revolução. Em "Perdida", Sofia (Giovanna Grigio) é uma intelectual da Letras, devotada ao ramo editorial, que parou de acreditar nas desinências diárias do verbo "amar". Chega a flopar os planos de casamento de sua melhor amiga por desacreditar no casamento e em ideais românticos de outrora. Sua única conciliação com as manhas do gostar se dá pela imersão no universo literário de Jane Austen ("Persuasão"), uma das autoras que potencializaram a percepção de que o romance inglês dos séculos XVII e XVIII encaixou-se historicamente na produção cultural como uma "tecnologia". Uma "tecnologia" de papel que permitia uma relação solitária e silenciosa de imersão de leitores num media do qual mundos imaginários e hipóteses de realidade brotam de letras impressas em papel. Não por acaso, Ian Watt (1917-1999), autor do oracular "The Rise of the Novel" (1957), dizia: "Se estivermos genuinamente interessados num livro, podemos até mesmo nos sentirmos gratos quando outros chamam nossa atenção para coisas que deixamos passar ou que não entendemos. Na leitura, todas as grandes questões da vida humana aparecem no palco estreito de Jane Austen. É verdade que é apenas o palco das circunstâncias domésticas mesquinhas, mas, afinal de contas, esse é o único palco em que a maioria de nós provavelmente as encontrará em sua inteireza".

Atenta a essa teorização, a esquadra de roteiristas de "Perdida", formada por Luiza Shelling Tubaldini, Karoline Bueno, C. Rissi, Katherine Chediak Putnam e Dean W. Law, cria um paralelo (arrebatador) entre os enredos de Austen e as peripécias afetivas de Sofia. Em sua rotina de azedume em relação ao Cupido, ela enfrenta abusos sexistas em seu trabalho, o que só desgasta sua paciência em relação a potenciais pretendentes supostamente fofos. Mas ao pegar uma corrida com uma chofer misteriosa (Luciana Paes, um ímã de gargalhadas), sem saber que se trata de sua fada, ou melhor, sua Safada Madrinha, Sofia atravessa um portal mágico e cai num mundo onde tudo é decalcado dos romances de Jane A. Inclua aí uma noção telúrica de príncipe encantado que se faz representar (muito bem) pelo criador de cavalos Ian Clarke (papel de Montaleone). Ele acolhe Sofia assim que ela ultrapassa a dimensão do real e cai num século XVIII falante de Português, onde intrigas românticas movimentam a trama, sempre abrindo espaço para que o roteiro engate debates das lutas identitárias e das pelejas de gênero do Presente, tendo Hélio de la Peña como o médico Dr. Almeida.

Dr. Almeida (Helio de la Peña) aconselha o criador de cavalos Ian (Bruno Montaleone)  

Uma lady cheia de preconceitos, encarnada por (uma sempre vicejante) Lucinha Lins, com seu marido submisso (#sqn) vivido por Thiago Justino, desenha os percalços sociológicos do mundo onde Sofia vai parar. Mas a doce figura de Clarke faz aquela realidade valer a pena. É uma realidade que oferece às plateias brasileiras (sobretudo às mais jovens, fãs de C. Rissi) a chance de descobrir a grandeza sem fim de Austen e, de certa forma, das boas adaptações audiovisuais de seus romances, em especial o "Orgulho & Preconceito" (2005), de Joe Wright, e o "Razão e Sensibilidade" que rendeu o Urso de Ouro a Ang Lee, em 1996. Num tempo em que os AITs querem matar o amor, "Perdida" é um filme em que nosso cinema se (re)encontra como "artindústria" que é. Eis um golaço da Filmland Internacional (produtora de Tubaldini) e da linha Star Original Productions, que se uniram pra gerar uma dramaturgia sem medo de conversar com as plateias pelo miocárdio.

Tem ecos de Julia Roberts, de Rachel McAdams e Lucélia Santos em Giovanna Grigio, estrela do delicado "Perdida", uma espécie de "Pretty Woman" do Brasil, em siálogo com Jane Austen - @ Foto: Divulgação: Filmland International e Star Original Production

RODRIGO FONSECA Refratário a fórmulas que pudessem paragonar suas escolhas com as dinâmicas de Hollywood, o cinema brasileiro travou pouca intimidade com filões de gênero. Ficou com a comédia e com o melodrama, mas torceu o nariz para as veredas da fantasia, alimentadas ao longo de sua trajetória basicamente por José Mojica Marins (e seus atuais herdeiros, como Rodrigo Aragão) e por experimentos infantojuvenis de aventura (caso dos filmes dos Trapalhões). Nos tempos em que a Boca do Lixo era uma mina aurífera de ideias, westerns e thrillers saltavam das moviolas. Mas ela fechou e, na sequência, o espectro realista (de ensejo documental) da Retomada rompeu com esse fluxo. Essa ruptura se perpetuou no cinema dos anos 2010 e 2020, com a exceção dos longas de horror do terreno do extra-ordinário ("Trabalhar Cansa", por exemplo). Diante dessa trava, que só faz se enferrujar desde os anos 1960, um filme como "Perdida" - um espetáculo visual exuberante de uma delicadeza contagiante - merece plena atenção, análise, respeito e prestígio só por abrir um veio fabular raras vezes explorado em nossas telas (talvez só em "Era Uma Vez...", de Arturo Uranga, e "Lua de Cristal", com Tizuka Yamasaki). Esse veio é a fábula romântica em forma de conto de fadas. Produtora do êxito de bilheteria "Divórcio" (2017), do brilhante "Motorrad" (atração do Festival de Toronto de 2017) e do johnwickiano "Yakuza Princess" (2021), Luiza Shelling Tubaldini mantém sua linha de ousadias industriais e desenvolveu o projeto de um "filme de princesa" (num viés feminista, avesso ao sexismo) com base na literatura best-seller de Carina Rissi (autora de fenômenos de papel como "Mentira Perfeita"). De prosa com Carina, Tubaldini (que assina a direção ao lado de Katherine Chediak Putnam e Dean W. Law) produziu um longa-metragem vistoso e bem recheado de conflitos sociais e comportamentais. Um longa que se impõe como concorrente de peso para a temporada de férias. Há uma série de acertos em sua mistura de ingredientes e referências ("Uma Linda Mulher", "Kate & Leopold", "Bridgerton"), com destaque para a escalação nada óbvia do eterno Casseta Hélio de la Peña para um papel sério (e áspero) e para a fotografia de aparência neoclássica de Jacob Sarmento Solitrenick (do seminal "Garotas do ABC"). Seu parente mais recente no cinemão atual é "Cinderela" (2015), de Kenneth Branagh.

 

Qualquer reflexão a ser feita sobre um filme que, a partir da obra de C. Rissi, releva o olhar feminino da literatura de Jane Austen (1775-1817), requer um olhar sobre sua protagonista, que vai traduzir todos os valores históricos de empoderamento. Nesse aspecto, a escolha de Giovanna Grigio - estrela nata, que parece uma mistura de Rachel McAdams com Lucélia Santos, com um ferramental cênico fartíssimo - foi certeira. Cada gesto dela desenha as certezas e as indefinições de sua personagem, a editora de livros Sofia, com complexidades que só atrizes capazes de escavar camadas inusitadas em arquétipos banalizados conseguem fazer. Foi o que transformou Julia Roberts no que ela virou, a partir do já citado "Pretty Woman". Nessa lógica, há um Richard Gere bem brasileiro na composição de Bruno Montaleone, que faz seu par romântico com austeridade e economia de gestos. Juntos, os dois estabelecem uma simbiose que nos leva a questionar o quanto (nos) faz falta um investimento de nossa dramaturgia numa ideia de benquerer que extrapole as contrações, contrições e restrições impostas por vários aparelhos ideológicos de estado (AIT) do presente, ainda que seja um estado de exceção ou de revolução. Em "Perdida", Sofia (Giovanna Grigio) é uma intelectual da Letras, devotada ao ramo editorial, que parou de acreditar nas desinências diárias do verbo "amar". Chega a flopar os planos de casamento de sua melhor amiga por desacreditar no casamento e em ideais românticos de outrora. Sua única conciliação com as manhas do gostar se dá pela imersão no universo literário de Jane Austen ("Persuasão"), uma das autoras que potencializaram a percepção de que o romance inglês dos séculos XVII e XVIII encaixou-se historicamente na produção cultural como uma "tecnologia". Uma "tecnologia" de papel que permitia uma relação solitária e silenciosa de imersão de leitores num media do qual mundos imaginários e hipóteses de realidade brotam de letras impressas em papel. Não por acaso, Ian Watt (1917-1999), autor do oracular "The Rise of the Novel" (1957), dizia: "Se estivermos genuinamente interessados num livro, podemos até mesmo nos sentirmos gratos quando outros chamam nossa atenção para coisas que deixamos passar ou que não entendemos. Na leitura, todas as grandes questões da vida humana aparecem no palco estreito de Jane Austen. É verdade que é apenas o palco das circunstâncias domésticas mesquinhas, mas, afinal de contas, esse é o único palco em que a maioria de nós provavelmente as encontrará em sua inteireza".

Atenta a essa teorização, a esquadra de roteiristas de "Perdida", formada por Luiza Shelling Tubaldini, Karoline Bueno, C. Rissi, Katherine Chediak Putnam e Dean W. Law, cria um paralelo (arrebatador) entre os enredos de Austen e as peripécias afetivas de Sofia. Em sua rotina de azedume em relação ao Cupido, ela enfrenta abusos sexistas em seu trabalho, o que só desgasta sua paciência em relação a potenciais pretendentes supostamente fofos. Mas ao pegar uma corrida com uma chofer misteriosa (Luciana Paes, um ímã de gargalhadas), sem saber que se trata de sua fada, ou melhor, sua Safada Madrinha, Sofia atravessa um portal mágico e cai num mundo onde tudo é decalcado dos romances de Jane A. Inclua aí uma noção telúrica de príncipe encantado que se faz representar (muito bem) pelo criador de cavalos Ian Clarke (papel de Montaleone). Ele acolhe Sofia assim que ela ultrapassa a dimensão do real e cai num século XVIII falante de Português, onde intrigas românticas movimentam a trama, sempre abrindo espaço para que o roteiro engate debates das lutas identitárias e das pelejas de gênero do Presente, tendo Hélio de la Peña como o médico Dr. Almeida.

Dr. Almeida (Helio de la Peña) aconselha o criador de cavalos Ian (Bruno Montaleone)  

Uma lady cheia de preconceitos, encarnada por (uma sempre vicejante) Lucinha Lins, com seu marido submisso (#sqn) vivido por Thiago Justino, desenha os percalços sociológicos do mundo onde Sofia vai parar. Mas a doce figura de Clarke faz aquela realidade valer a pena. É uma realidade que oferece às plateias brasileiras (sobretudo às mais jovens, fãs de C. Rissi) a chance de descobrir a grandeza sem fim de Austen e, de certa forma, das boas adaptações audiovisuais de seus romances, em especial o "Orgulho & Preconceito" (2005), de Joe Wright, e o "Razão e Sensibilidade" que rendeu o Urso de Ouro a Ang Lee, em 1996. Num tempo em que os AITs querem matar o amor, "Perdida" é um filme em que nosso cinema se (re)encontra como "artindústria" que é. Eis um golaço da Filmland Internacional (produtora de Tubaldini) e da linha Star Original Productions, que se uniram pra gerar uma dramaturgia sem medo de conversar com as plateias pelo miocárdio.

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