Rodrigo Fonseca Antropofágico em seu sofisticado apetite por ruídos, expressões gráficas, trânsitos e modos de expressão das gentes que povoam uma cidade de concreto, Rafael Gutiérrez cartografou com precisão geométrica e geográfica as farsas, os falsetes e as incontinências da vida cotidiana em seu livro de poemas de "A Orelha de Holyfield". Cada verso expõe sua fauna de sentimentos como sintagmas de perplexidade. O modo de ser das (e nas) Américas instiga sua poética e, também, seu espírito crítico, talhado nas aulas de Literatura Hispano-americana que ministra no Departamento de Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ. Nesta quinta, às 14h, a instituição vai estender a ele o canal no Youtube do Departamento de Letras Anglo-Germânicas da UFRJ - https://www.youtube.com/watch?v=DBP6IrzO810 - para ouvir suas reflexões acerca do contágio que expressões artísticas contemporâneas - de verve digital e de natureza algorítmica - andam espalhando pelo romance escrito na Pangeia Latina. Editor da Papéis Selvagens, Gutiérrez condensou sua inquietude em tinta ao se arriscar como romancista no feroz "Como Se Tornar Um Escritor Cult De Forma Rápida e Simples" e em "Crimes sublimes". Publicou ainda livro de ensaios "Formas híbridas". Num papo com o Estadão, ele flana pelo continente de prosa com formas de representação de lutas pela identidade.
De que maneira as pautas identitárias contemporâneas já abriram espaço para a descoberta de novas vozes autorais latinas? Que vozes seriam essas? Rafael Gutiérrez: Acho que essas pautas e as lutas por incorporar vozes silenciadas ou invisibilizadas historicamente pelo cânone literário latino-americano não é recente, embora tenha ganhado um maior destaque nas últimas décadas. Pelo menos desde o que se considerou o gênero do testemunho latino-americano, nos anos 1960, existem essas tentativas de incorporação de outras vozes na literatura. São vozes indígenas, afro-latino-americanas, dissidências sexuais e de gênero, marginalizadas. Penso em autoras como a Rigoberta Menchú, em autores como Manuel Zapata Olivella ou Pedro Lemebel. Sem dúvida, esse movimento tem se fortalecido pelas mudanças culturais, políticas e, também, de mercado nas últimas décadas, o que tem revertido em uma maior publicação, difusão e circulação dessas vozes antes marginalizadas dentro do chamado cânone literário. Se desde os anos 1980 temos uma voz tão forte como a da Gloria Anzaldua, hoje poderia destacar a autora trans Camila Sosa-Villada, o dominicano Junot Díaz ou a própria escritora afro-brasileira Conceição Evaristo. Não tem sido um caminho fácil e as lutas continuam. Sabemos que mudanças políticas podem obstaculizar essas tentativas. Algo que ficou muito claro, por exemplo, com o anterior governo no Brasil.
Haveria um "Cânone Latino", qual o "Cânone Ocidental" do Harold Bloom, que valesse ser conhecido? Rafael Gutiérrez: É sempre muito arriscado fazer esse tipo de apostas e seguramente cada crítico ou crítica literária, leitora e leitor, vai ter sua própria imagem de um cânone ideal. Acredito inclusive que a própria ideia de cânone vem perdendo força, sendo questionada e problematizada cada vez mais. Eu continuo acreditando mais nas possibilidades e na potência que produz o encontro entre literatura e leitor(a), talvez nosso papel desde a crítica literária e a academia seja contribuir para propiciar esses encontros.
Como será a travessia transdisciplinar da sua palestra online desta quinta na UFRJ? Rafael Gutiérrez: Na palestra, eu pretendo explorar as relações entre a literatura e as práticas da arte contemporânea, focando em autores como Enrique Vila-Matas, César Aira, Mario Bellatin e Kennet Goldsmith. Técnicas de montagem, apropriação, transcrição, performance aparecem como chaves para compreender os caminhos seguidos por alguns autores contemporâneos que sentem de novo um certo impasse na escrita literária.