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'Salut, Mes Ami.e.s!': a pulsão da juventude


Por Rodrigo Fonseca
Premiado em filme sobre a cantora Miúcha, o casal Liliane Mutti e Daniel Zarvos anda salpicando afeto na maneira que o Brasil tem de documentar o real, celebrando sobretudo a força feminina - Foto: Daniel Zarvos/ Divulgação

RODRIGO FONSECA Ora muito maduros (gente com a chamada "alma de velho"), ora super joviais (com "espírito de criança"), a turma de estudantes adolescentes retratadas pelo casal Liliane Mutti e Daniel Zarvos no longa documental "Salut, Mes Ami.e.s!" é um microcosmos colorido de diversidades afetivas, de resistênicias e de sonho. Em especial, o sonho de um Brasil que não precise buscar fora, Atlântico adentro, valores e potências para um futuro próspero. Exibido recentemente no FESTIn, em Lisboa, o longa-metragem demarca a evolução de uma dupla de realizadores que encantou olhares com o premiado "Miúcha, A Voz da Bossa Nova" (2022). Agora, eles se debruçam sobre um universo escolar cheio de singularidades e o fazem na combinação alquímica do que há de melhor nas proficiências de ambos. Mutti dirige; Zarvoz clica, na direção de fotografia. As pessoas que a câmera deles flagra estão empenhadas em terminar o ensino médio, aprendendo sobre a anatomia dos fenecos nas aulas de Biologia ou decorando quem foram os três maiores construtores de pirâmides do Egito Antigo (Queops, Qefren e Miquerinos). Pasam por um processo de evolução pessoal que é retratado com delicadeza contagiante na tela. Como objeto, "Salut, Mes Ami.e.s!" adota a rotina de uma escola muito peculiar em Niterói: o Ciep 449 Governador Leonel de Moura Brizola. É a única escola bilíngue, franco-brasileira, pública e integral da América Latina. Dentro de um prédio de concreto, construído pelo arquiteto Oscar Niemeyer, uma turma em fim de ano letivo passa cerca de dez horas por dia vivendo a cultura francesa, mas do lado da ponte que os separa do Rio de Janeiro. Jogam rugby e aprendem o idioma de Balzac enquanto vivenciam prazeres e dissabores de serem jovens, com a descoberta da sua sexualidade e outros aprendizados. Há um trabalho de edição refinado que costura o processo de observação feito por Liliane e Zarvos, que compartilham com o Estadão P de Pop suas descobertas antropológicas, sociológicas e sentimentais no papo a seguir.

Registro do Ciep 449 Governador Leonel de Moura Brizola, em Niterói - Foto: Daniel Zarvos/ Divulgação
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Niterói se impõe como vetor, seja cultural ou geopolítico, de que forma sobre "Salut, Mes Ami.e.s!"? Que juventude se desenhou pra vocês ao desbravar aquele mundo? Liliane Mutti - Essa pergunta me faz lembrar do diretor do CIEP 449, Cicero Tauil, que no debate após a exibição do filme, no Cine UFF, reivindicou ser descendente de Araribóia, indígena de origem tupi, conhecido por ser um dos primeiros habitantes do litoral da Baía da Guanabara, onde está Niterói. Gosto de pensar em Niterói como uma cidade de resistências. Não podemos esquecer que foi o Moreira Franco, então governador do Rio de Janeiro, que com auxílio da mídia historicamente golpista, afundou o projeto dos Cieps. A existência do Ciep 449 no bairro de Charitas, em Niterói, onde se desenrola toda a história do "Salut...", é, em si, uma resistência. A existência desse filme, é resistência. Esse filme enfrentou corte de verbas na Ancine e um atraso absurdo no pagamento federal do edital. Foi graças à pressão da Secretaria das Culturas de Niterói que o recurso foi liberado. Antes do fim do Ministério da Cultura, havia idealizado essa história como uma ficção. Mas, com o baixíssimo orçamento final, a ideia original se tornou inviável. Então, decidimos pelo recorte temporal: a equipe do filme foi "morar" na escola e fizemos muitas parcerias locais. Assim, a atmosfera de Niterói ficou cada vez mais presente, o que me agrada muito. Mas, a essência da história está mesmo nos jovens. Nem todos são de Niterói, muitos são de cidades da grande região da Baixada Fluminense. Alguns chegam de balsa. Outros levam mais de quatro horas para ir e voltar da escola e há também aqueles que a mãe leva de carro. Nesse caldo, as classes sociais se misturam, o que cria uma juventude diversa e potente, que se encontra nas relações de amizades e paqueras. O namoro é algo bem valorizado no olhar do filme. Aqueles adolescentes estão na fase da vida com os hormônios a mil e costumam se apaixonar duas, três vezes por dia. Pude notar uma juventude fluída, no sentido aberto e livre do termo, desprendida de preconceitos. Acredito que isso ajude a explicar a ausência de bullying nessa escola, além do diálogo com os professores, que me pareceu algo presente e muitas vezes permeado de humor. Apesar das altas doses de melancolia, característica dessa juventude pós-pandemia, e de 2022 ter sido um ano com um comando político desastroso para o país, no final, fica a sensação de que o sonho vence. Mesmo que, esse sonho, naquele momento recortado pelo filme, seja ir embora do Brasil. Nos últimos cinco anos, vivemos o maior exílio do Brasil depois da ditadura militar. Essa saída não seria diferente em uma escola bilíngue, em que os jovens idealizam a França. Mas, se precisar escolher uma palavra para definir a juventude presente no "Salut...", diria, esperança. Porque seja qual for o caminho que cada um dos personagens do filme tome, seja o Gabriel, a Aurora, as Letícias, o Fellipe, a Fernanda e tantos outros, ao sair da escola, eles e elas carregam a poesia dos anos vividos ali.

Daniel Zarvos - Eles estão ali acertando e errando pra depois começar tudo novo e de novo. Beijando escondido na hora do recreio e chorando na despedida, depois de um ano passado junto, de sair com violão, de serem exagerados e quererem cantar e cantar. Porque o mundo começa com o "sim" e temos que dizer "sim" pra essa juventude. São eles e elas que vão "geopolíticar" por aí com muita alegria e tesão.

Estudantes de uma escola pública bilíngue revelam suas inquietações a uma câmera que observa seu processo de amadurecimento - Foto: Daniel Zarvos
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Perto de "Entre os Muros da Escola", "Pro Dia Nascer Feliz" e muitos clássicos da ficção que se impõem nas telas desde "Ao Mestre... Com Carinho", o filme de vocês é acolchoado por uma cama histórica do que pode ser um subgênero do drama: os filmes de escola. Que referências da ficção e do documentário entraram na construção da narrativa de "Salut, Mes Ami.e.s!" e o que a realidade trouxe de mais inusitado para vocês? Liliane Mutti - Sou da geração "sessão da tarde", na qual os pais saíam de manhã e nos víamos apenas à noite. A minha escola, como a maioria da classe média, tinha apenas um turno... então, eu passava as tardes na frente da televisão, vendo filmes americanos enlatados. Dessa fase, lembro de "Sociedade dos Poetas Mortos" e aquela frase (dita pelo Robin Williams) - "carpe diem" - me fez sair um pouco da frente da TV e pegar a bike para ir por aí. Fui me abrindo para outras culturas e morando em várias cidades, até me tornar uma pessoa nômade. Hoje moro entre Salvador, Rio e Paris. Então, devo muito aos filmes de escola, e não poderia ter vergonha desse subgênero. O "Salut" pode, sim, ser enquadrado no subgênero "filme de escola" e acredito que esse é um nicho ainda por ser mais visitado no Brasil. Tenho um projeto de trilogia, chamada "Juventudes", no qual o segundo filme, ainda em etapa de desenvolvimento, é uma ficção que se passa em outra escola em Niterói. O terceiro se passa na Bahia. Mas, voltando ao "Salut...", esse .doc tem uma referência assumida, que é o filme "High School", de Frederick Wiseman, com quem Daniel Zarvos e eu habitamos na mesma residência artística, no Centre International Les Récollets em Paris, durante o confinamento. Essa feliz coincidência me levou a revisitar esse clássico do filão. O "High School" se debruça sobre a juventude de 1968, aquele ano em que todos queriam ser jovens para sempre. Muita euforia, muito questionamento e muito por inventar. Em 2022, como está essa mesma faixa etária no Brasil? Vi ali um bom mote, e cheguei a experimentar na finalização fazer o "Salut..." todo em preto e branco. Mas, como abrir mão da paleta de cor do ser brasileira/o? Não, não seria o que somos. Então voltei para o colorido vivo e faço uma citação ao "High School" no final, quando depois dos créditos os jovens descem a rampa da escola tocando e cantando "Bella Ciao". Essa era a música que colocava nas alturas para acordar meus filhos, Nikos e Lola, para irem para a escola no inverno francês.

Daniel Zarvos - Esses longas denominados como "filmes de escola", que vimos na época da "Sessão da Tarde", estão no nosso inconsciente e, de alguma forma, estarão sempre presentes na preconcepção do que temos antes de filmar. Mas no caso do filme Salut Mes Ami.e.s !, parto mesmo dessa referência do filme "High School", e a minha abordagem como fotógrafo foi na linha de documentário do dito "cinema direto", claro que misturado e atualizado com algumas falas na primeira pessoa, conforme pediu a diretora Liliane Mutti. Mas partimos do princípio de interferir o menos possível na cena, de modo a montar a narrativa a partir das observações geradas nos dias em que ficamos na escola.

Cartaz do longa de Liliane e Zarvos sobre uma das vozes mais delicadas da MPB - Reprodução - Divulgação Festival In-Edit  
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O .doc sobre Miúcha é um painel biográfico de afetos, mas personalista, de âncora fincada no mar da MPB. O que vai daquela experiência pro "Salut..."? O que aproxima dois olhares tão longe e tão perto sobre o real, numa dinâmica em que a estratégia da escuta parece ser a dinâmica essencial de vocês? Daniel Zarvos - O que define a experiência de quando faço um filme na esfera do real e sobre o real é o princípio da vida. É o cinema vivo, que transmite uma verdade, não como fato, mas como sentimento, imagens que passam e deixam um lastro de emoção. Emoção viva, sentimento que tende a abalar de alguma forma, confrontar e confortar. Um lastro emotivo. Esse é o objetivo desta imersão visual proposta em nossos filmes.

Liliane Mutti - Faço filmes biográficos, pelo feminino. Tenho um recorte muito claro, e isso acaba imprimindo nos filmes. Não tinha como ser diferente. Vejo esse olhar no "Miúcha". Sempre lhe disse que ela tinha uma vida tão rica que merecia vários filmes. Mas esse, "A Voz da Bossa Nova", biográfico - construído a partir das cartas, diários, aquarelas, fitas cassetes gravadas em casa - era o que queríamos contar. Por isso, é muito claro que não é um filme autobiográfico. A Miúcha é super autora, mas o recorte é exterior a ela. Já no "Salut...", eu estava completamente embriagada de Clarice Lispector. Tinha acabado de realizar o curta-metragem de ficção "Ta Clarice", em francês, inspirado no livro póstumo dela, "Um Sopro de Vida", e também escrevi seu abecedário com as suas palavras conceitos, que foi a pesquisa do meu segundo mestrado na França, ainda não publicado. Naquele momento, olhava para aqueles jovens do CIEP 449 e enxergava o seu interior, suas dores, seus medos, seus sonhos. Acredito que isso foi dando uma profundidade e ao mesmo tempo uma leveza ao filme. Chamo o "Salut" de um filme do tempo da delicadeza, pós-Bossa Nova, embalado pelo mar da Baía da Guanabara e que depois de ver deixa a sensação: é a dura a vida da bailarina, mas ela ama dançar.

Como funciona a dinâmica de criação dramatúrgica e direção de vocês? Quem cuida mais de que etapa e como funciona a sinergia na montagem? Liliane Mutti - Eu venho do texto; o Dani, da imagem. Mas não somos pessoas estáticas, e o Daniel é um excelente roteirista, mesmo que não pelos métodos clássicos. Eu já gosto da sala de roteiro, de exercer a função de líder de sala e de showrunner dos projetos, ocupando-me, por exemplo, das entregas com os canais. A gente acaba se completando, porque o Daniel traz um conhecimento técnico sólido, o que permite experimentar bastante. Digo que ele tem uma câmera "glauberiana", nem sempre fixa, e, às vezes, com o foco "doce", como quem busca o foco, o que gosto muito porque dialoga com as incertezas dos personagens do "Salut". Desde a universidade, quando cursei Comunicação com foco no Audiovisual na UFBA, ouvia dos meus mestres e das minhas mestras que era preciso um profundo conhecimento dos códigos da profissão para subvertê-los. Então, cada escolha tem um sentido, cada imagem, por exemplo, em um filme de arquivo como o Miúcha, conta um pedaço da história ou do traço da personalidade da personagem. Confesso que até o Miúcha eu tinha pânico da sala de montagem. Mas trabalhando com duas mulheres, as montadoras Isabel Castro e Daniela Ramalho, e, em seguida, no "Salut..." com outra mulher, a Daniela Gonçalves, posso dizer que estou curada. O pânico vinha da experiência que precisava gastar muito tempo e energia com montadores homens para convencê-los das minhas escolhas. Já o Daniel, que além de filmar também tem o domínio da montagem, é como se eu tivesse com uma montadora, no sentido afetivo e da sororidade pelo feminino. Ele é um cara desconstruído e muito rico de ideias para trabalhar em dupla.

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Daniel Zarvos - Cada filme vai funcionar de uma forma distinta. No caso do "Miúcha", ambos fazemos concessões e, por isso, é um "filme de", uma obra coletiva de um casal sobre um casal. No filme "Miúcha", eu trouxe o meu olhar sobre a estética e o ritmo das imagens. Algumas imagens são de trechos de filmes de cineastas com quem trabalhei e convivi, como Nelson Pereira dos Santos e Jonas Mekas. Trabalhos de duas cineastas são fundamentais no "Miúcha": Shirley Clarke e Marie Menken, contemporâneas de Miucha na vanguarda do feminino. Tem também a Agnès Varda, que a Lili adora e fez "Salut, Les Cubains" (1963), filme que nos embalou durante o "Salut, mes ami.e.s !". Estas imagens complementam a narrativa do filme e representam uma forma de olhar e fazer cinema. O olhar e a estética sobre a imagem são escolhas ideológicas que definem nossa percepção de mundo e cinema. "Cinema" está sendo hoje a palavra que define uma gramática visual no que hoje chamamos, de forma mais ampla, Audiovisual. Sendo assim, no "Miúcha", como eu também assino a direção, coube a mim a escolha e definição visual e rítmica do filme. A Liliane Mutti estruturou os textos do enredo do filme. Nos outros filmes que faço com Liliane Mutti, eu os fotografo. Quando faço isso, parto de uma interação pessoal com a cena e o sujeito. Sim, há algum diálogo, mas, às vezes, não há tempo. Então depois de filmado, entrego o filme e só opino quando pronto. Gosto de ver o filme que ela fez. Então mantemos esses diálogos, juntos e separados, tendo momentos de tensão, buscando rupturas e prazer nesta pulsão de vida que é o cinema.

Premiado em filme sobre a cantora Miúcha, o casal Liliane Mutti e Daniel Zarvos anda salpicando afeto na maneira que o Brasil tem de documentar o real, celebrando sobretudo a força feminina - Foto: Daniel Zarvos/ Divulgação

RODRIGO FONSECA Ora muito maduros (gente com a chamada "alma de velho"), ora super joviais (com "espírito de criança"), a turma de estudantes adolescentes retratadas pelo casal Liliane Mutti e Daniel Zarvos no longa documental "Salut, Mes Ami.e.s!" é um microcosmos colorido de diversidades afetivas, de resistênicias e de sonho. Em especial, o sonho de um Brasil que não precise buscar fora, Atlântico adentro, valores e potências para um futuro próspero. Exibido recentemente no FESTIn, em Lisboa, o longa-metragem demarca a evolução de uma dupla de realizadores que encantou olhares com o premiado "Miúcha, A Voz da Bossa Nova" (2022). Agora, eles se debruçam sobre um universo escolar cheio de singularidades e o fazem na combinação alquímica do que há de melhor nas proficiências de ambos. Mutti dirige; Zarvoz clica, na direção de fotografia. As pessoas que a câmera deles flagra estão empenhadas em terminar o ensino médio, aprendendo sobre a anatomia dos fenecos nas aulas de Biologia ou decorando quem foram os três maiores construtores de pirâmides do Egito Antigo (Queops, Qefren e Miquerinos). Pasam por um processo de evolução pessoal que é retratado com delicadeza contagiante na tela. Como objeto, "Salut, Mes Ami.e.s!" adota a rotina de uma escola muito peculiar em Niterói: o Ciep 449 Governador Leonel de Moura Brizola. É a única escola bilíngue, franco-brasileira, pública e integral da América Latina. Dentro de um prédio de concreto, construído pelo arquiteto Oscar Niemeyer, uma turma em fim de ano letivo passa cerca de dez horas por dia vivendo a cultura francesa, mas do lado da ponte que os separa do Rio de Janeiro. Jogam rugby e aprendem o idioma de Balzac enquanto vivenciam prazeres e dissabores de serem jovens, com a descoberta da sua sexualidade e outros aprendizados. Há um trabalho de edição refinado que costura o processo de observação feito por Liliane e Zarvos, que compartilham com o Estadão P de Pop suas descobertas antropológicas, sociológicas e sentimentais no papo a seguir.

Registro do Ciep 449 Governador Leonel de Moura Brizola, em Niterói - Foto: Daniel Zarvos/ Divulgação

Niterói se impõe como vetor, seja cultural ou geopolítico, de que forma sobre "Salut, Mes Ami.e.s!"? Que juventude se desenhou pra vocês ao desbravar aquele mundo? Liliane Mutti - Essa pergunta me faz lembrar do diretor do CIEP 449, Cicero Tauil, que no debate após a exibição do filme, no Cine UFF, reivindicou ser descendente de Araribóia, indígena de origem tupi, conhecido por ser um dos primeiros habitantes do litoral da Baía da Guanabara, onde está Niterói. Gosto de pensar em Niterói como uma cidade de resistências. Não podemos esquecer que foi o Moreira Franco, então governador do Rio de Janeiro, que com auxílio da mídia historicamente golpista, afundou o projeto dos Cieps. A existência do Ciep 449 no bairro de Charitas, em Niterói, onde se desenrola toda a história do "Salut...", é, em si, uma resistência. A existência desse filme, é resistência. Esse filme enfrentou corte de verbas na Ancine e um atraso absurdo no pagamento federal do edital. Foi graças à pressão da Secretaria das Culturas de Niterói que o recurso foi liberado. Antes do fim do Ministério da Cultura, havia idealizado essa história como uma ficção. Mas, com o baixíssimo orçamento final, a ideia original se tornou inviável. Então, decidimos pelo recorte temporal: a equipe do filme foi "morar" na escola e fizemos muitas parcerias locais. Assim, a atmosfera de Niterói ficou cada vez mais presente, o que me agrada muito. Mas, a essência da história está mesmo nos jovens. Nem todos são de Niterói, muitos são de cidades da grande região da Baixada Fluminense. Alguns chegam de balsa. Outros levam mais de quatro horas para ir e voltar da escola e há também aqueles que a mãe leva de carro. Nesse caldo, as classes sociais se misturam, o que cria uma juventude diversa e potente, que se encontra nas relações de amizades e paqueras. O namoro é algo bem valorizado no olhar do filme. Aqueles adolescentes estão na fase da vida com os hormônios a mil e costumam se apaixonar duas, três vezes por dia. Pude notar uma juventude fluída, no sentido aberto e livre do termo, desprendida de preconceitos. Acredito que isso ajude a explicar a ausência de bullying nessa escola, além do diálogo com os professores, que me pareceu algo presente e muitas vezes permeado de humor. Apesar das altas doses de melancolia, característica dessa juventude pós-pandemia, e de 2022 ter sido um ano com um comando político desastroso para o país, no final, fica a sensação de que o sonho vence. Mesmo que, esse sonho, naquele momento recortado pelo filme, seja ir embora do Brasil. Nos últimos cinco anos, vivemos o maior exílio do Brasil depois da ditadura militar. Essa saída não seria diferente em uma escola bilíngue, em que os jovens idealizam a França. Mas, se precisar escolher uma palavra para definir a juventude presente no "Salut...", diria, esperança. Porque seja qual for o caminho que cada um dos personagens do filme tome, seja o Gabriel, a Aurora, as Letícias, o Fellipe, a Fernanda e tantos outros, ao sair da escola, eles e elas carregam a poesia dos anos vividos ali.

Daniel Zarvos - Eles estão ali acertando e errando pra depois começar tudo novo e de novo. Beijando escondido na hora do recreio e chorando na despedida, depois de um ano passado junto, de sair com violão, de serem exagerados e quererem cantar e cantar. Porque o mundo começa com o "sim" e temos que dizer "sim" pra essa juventude. São eles e elas que vão "geopolíticar" por aí com muita alegria e tesão.

Estudantes de uma escola pública bilíngue revelam suas inquietações a uma câmera que observa seu processo de amadurecimento - Foto: Daniel Zarvos

Perto de "Entre os Muros da Escola", "Pro Dia Nascer Feliz" e muitos clássicos da ficção que se impõem nas telas desde "Ao Mestre... Com Carinho", o filme de vocês é acolchoado por uma cama histórica do que pode ser um subgênero do drama: os filmes de escola. Que referências da ficção e do documentário entraram na construção da narrativa de "Salut, Mes Ami.e.s!" e o que a realidade trouxe de mais inusitado para vocês? Liliane Mutti - Sou da geração "sessão da tarde", na qual os pais saíam de manhã e nos víamos apenas à noite. A minha escola, como a maioria da classe média, tinha apenas um turno... então, eu passava as tardes na frente da televisão, vendo filmes americanos enlatados. Dessa fase, lembro de "Sociedade dos Poetas Mortos" e aquela frase (dita pelo Robin Williams) - "carpe diem" - me fez sair um pouco da frente da TV e pegar a bike para ir por aí. Fui me abrindo para outras culturas e morando em várias cidades, até me tornar uma pessoa nômade. Hoje moro entre Salvador, Rio e Paris. Então, devo muito aos filmes de escola, e não poderia ter vergonha desse subgênero. O "Salut" pode, sim, ser enquadrado no subgênero "filme de escola" e acredito que esse é um nicho ainda por ser mais visitado no Brasil. Tenho um projeto de trilogia, chamada "Juventudes", no qual o segundo filme, ainda em etapa de desenvolvimento, é uma ficção que se passa em outra escola em Niterói. O terceiro se passa na Bahia. Mas, voltando ao "Salut...", esse .doc tem uma referência assumida, que é o filme "High School", de Frederick Wiseman, com quem Daniel Zarvos e eu habitamos na mesma residência artística, no Centre International Les Récollets em Paris, durante o confinamento. Essa feliz coincidência me levou a revisitar esse clássico do filão. O "High School" se debruça sobre a juventude de 1968, aquele ano em que todos queriam ser jovens para sempre. Muita euforia, muito questionamento e muito por inventar. Em 2022, como está essa mesma faixa etária no Brasil? Vi ali um bom mote, e cheguei a experimentar na finalização fazer o "Salut..." todo em preto e branco. Mas, como abrir mão da paleta de cor do ser brasileira/o? Não, não seria o que somos. Então voltei para o colorido vivo e faço uma citação ao "High School" no final, quando depois dos créditos os jovens descem a rampa da escola tocando e cantando "Bella Ciao". Essa era a música que colocava nas alturas para acordar meus filhos, Nikos e Lola, para irem para a escola no inverno francês.

Daniel Zarvos - Esses longas denominados como "filmes de escola", que vimos na época da "Sessão da Tarde", estão no nosso inconsciente e, de alguma forma, estarão sempre presentes na preconcepção do que temos antes de filmar. Mas no caso do filme Salut Mes Ami.e.s !, parto mesmo dessa referência do filme "High School", e a minha abordagem como fotógrafo foi na linha de documentário do dito "cinema direto", claro que misturado e atualizado com algumas falas na primeira pessoa, conforme pediu a diretora Liliane Mutti. Mas partimos do princípio de interferir o menos possível na cena, de modo a montar a narrativa a partir das observações geradas nos dias em que ficamos na escola.

Cartaz do longa de Liliane e Zarvos sobre uma das vozes mais delicadas da MPB - Reprodução - Divulgação Festival In-Edit  

O .doc sobre Miúcha é um painel biográfico de afetos, mas personalista, de âncora fincada no mar da MPB. O que vai daquela experiência pro "Salut..."? O que aproxima dois olhares tão longe e tão perto sobre o real, numa dinâmica em que a estratégia da escuta parece ser a dinâmica essencial de vocês? Daniel Zarvos - O que define a experiência de quando faço um filme na esfera do real e sobre o real é o princípio da vida. É o cinema vivo, que transmite uma verdade, não como fato, mas como sentimento, imagens que passam e deixam um lastro de emoção. Emoção viva, sentimento que tende a abalar de alguma forma, confrontar e confortar. Um lastro emotivo. Esse é o objetivo desta imersão visual proposta em nossos filmes.

Liliane Mutti - Faço filmes biográficos, pelo feminino. Tenho um recorte muito claro, e isso acaba imprimindo nos filmes. Não tinha como ser diferente. Vejo esse olhar no "Miúcha". Sempre lhe disse que ela tinha uma vida tão rica que merecia vários filmes. Mas esse, "A Voz da Bossa Nova", biográfico - construído a partir das cartas, diários, aquarelas, fitas cassetes gravadas em casa - era o que queríamos contar. Por isso, é muito claro que não é um filme autobiográfico. A Miúcha é super autora, mas o recorte é exterior a ela. Já no "Salut...", eu estava completamente embriagada de Clarice Lispector. Tinha acabado de realizar o curta-metragem de ficção "Ta Clarice", em francês, inspirado no livro póstumo dela, "Um Sopro de Vida", e também escrevi seu abecedário com as suas palavras conceitos, que foi a pesquisa do meu segundo mestrado na França, ainda não publicado. Naquele momento, olhava para aqueles jovens do CIEP 449 e enxergava o seu interior, suas dores, seus medos, seus sonhos. Acredito que isso foi dando uma profundidade e ao mesmo tempo uma leveza ao filme. Chamo o "Salut" de um filme do tempo da delicadeza, pós-Bossa Nova, embalado pelo mar da Baía da Guanabara e que depois de ver deixa a sensação: é a dura a vida da bailarina, mas ela ama dançar.

Como funciona a dinâmica de criação dramatúrgica e direção de vocês? Quem cuida mais de que etapa e como funciona a sinergia na montagem? Liliane Mutti - Eu venho do texto; o Dani, da imagem. Mas não somos pessoas estáticas, e o Daniel é um excelente roteirista, mesmo que não pelos métodos clássicos. Eu já gosto da sala de roteiro, de exercer a função de líder de sala e de showrunner dos projetos, ocupando-me, por exemplo, das entregas com os canais. A gente acaba se completando, porque o Daniel traz um conhecimento técnico sólido, o que permite experimentar bastante. Digo que ele tem uma câmera "glauberiana", nem sempre fixa, e, às vezes, com o foco "doce", como quem busca o foco, o que gosto muito porque dialoga com as incertezas dos personagens do "Salut". Desde a universidade, quando cursei Comunicação com foco no Audiovisual na UFBA, ouvia dos meus mestres e das minhas mestras que era preciso um profundo conhecimento dos códigos da profissão para subvertê-los. Então, cada escolha tem um sentido, cada imagem, por exemplo, em um filme de arquivo como o Miúcha, conta um pedaço da história ou do traço da personalidade da personagem. Confesso que até o Miúcha eu tinha pânico da sala de montagem. Mas trabalhando com duas mulheres, as montadoras Isabel Castro e Daniela Ramalho, e, em seguida, no "Salut..." com outra mulher, a Daniela Gonçalves, posso dizer que estou curada. O pânico vinha da experiência que precisava gastar muito tempo e energia com montadores homens para convencê-los das minhas escolhas. Já o Daniel, que além de filmar também tem o domínio da montagem, é como se eu tivesse com uma montadora, no sentido afetivo e da sororidade pelo feminino. Ele é um cara desconstruído e muito rico de ideias para trabalhar em dupla.

Daniel Zarvos - Cada filme vai funcionar de uma forma distinta. No caso do "Miúcha", ambos fazemos concessões e, por isso, é um "filme de", uma obra coletiva de um casal sobre um casal. No filme "Miúcha", eu trouxe o meu olhar sobre a estética e o ritmo das imagens. Algumas imagens são de trechos de filmes de cineastas com quem trabalhei e convivi, como Nelson Pereira dos Santos e Jonas Mekas. Trabalhos de duas cineastas são fundamentais no "Miúcha": Shirley Clarke e Marie Menken, contemporâneas de Miucha na vanguarda do feminino. Tem também a Agnès Varda, que a Lili adora e fez "Salut, Les Cubains" (1963), filme que nos embalou durante o "Salut, mes ami.e.s !". Estas imagens complementam a narrativa do filme e representam uma forma de olhar e fazer cinema. O olhar e a estética sobre a imagem são escolhas ideológicas que definem nossa percepção de mundo e cinema. "Cinema" está sendo hoje a palavra que define uma gramática visual no que hoje chamamos, de forma mais ampla, Audiovisual. Sendo assim, no "Miúcha", como eu também assino a direção, coube a mim a escolha e definição visual e rítmica do filme. A Liliane Mutti estruturou os textos do enredo do filme. Nos outros filmes que faço com Liliane Mutti, eu os fotografo. Quando faço isso, parto de uma interação pessoal com a cena e o sujeito. Sim, há algum diálogo, mas, às vezes, não há tempo. Então depois de filmado, entrego o filme e só opino quando pronto. Gosto de ver o filme que ela fez. Então mantemos esses diálogos, juntos e separados, tendo momentos de tensão, buscando rupturas e prazer nesta pulsão de vida que é o cinema.

Premiado em filme sobre a cantora Miúcha, o casal Liliane Mutti e Daniel Zarvos anda salpicando afeto na maneira que o Brasil tem de documentar o real, celebrando sobretudo a força feminina - Foto: Daniel Zarvos/ Divulgação

RODRIGO FONSECA Ora muito maduros (gente com a chamada "alma de velho"), ora super joviais (com "espírito de criança"), a turma de estudantes adolescentes retratadas pelo casal Liliane Mutti e Daniel Zarvos no longa documental "Salut, Mes Ami.e.s!" é um microcosmos colorido de diversidades afetivas, de resistênicias e de sonho. Em especial, o sonho de um Brasil que não precise buscar fora, Atlântico adentro, valores e potências para um futuro próspero. Exibido recentemente no FESTIn, em Lisboa, o longa-metragem demarca a evolução de uma dupla de realizadores que encantou olhares com o premiado "Miúcha, A Voz da Bossa Nova" (2022). Agora, eles se debruçam sobre um universo escolar cheio de singularidades e o fazem na combinação alquímica do que há de melhor nas proficiências de ambos. Mutti dirige; Zarvoz clica, na direção de fotografia. As pessoas que a câmera deles flagra estão empenhadas em terminar o ensino médio, aprendendo sobre a anatomia dos fenecos nas aulas de Biologia ou decorando quem foram os três maiores construtores de pirâmides do Egito Antigo (Queops, Qefren e Miquerinos). Pasam por um processo de evolução pessoal que é retratado com delicadeza contagiante na tela. Como objeto, "Salut, Mes Ami.e.s!" adota a rotina de uma escola muito peculiar em Niterói: o Ciep 449 Governador Leonel de Moura Brizola. É a única escola bilíngue, franco-brasileira, pública e integral da América Latina. Dentro de um prédio de concreto, construído pelo arquiteto Oscar Niemeyer, uma turma em fim de ano letivo passa cerca de dez horas por dia vivendo a cultura francesa, mas do lado da ponte que os separa do Rio de Janeiro. Jogam rugby e aprendem o idioma de Balzac enquanto vivenciam prazeres e dissabores de serem jovens, com a descoberta da sua sexualidade e outros aprendizados. Há um trabalho de edição refinado que costura o processo de observação feito por Liliane e Zarvos, que compartilham com o Estadão P de Pop suas descobertas antropológicas, sociológicas e sentimentais no papo a seguir.

Registro do Ciep 449 Governador Leonel de Moura Brizola, em Niterói - Foto: Daniel Zarvos/ Divulgação

Niterói se impõe como vetor, seja cultural ou geopolítico, de que forma sobre "Salut, Mes Ami.e.s!"? Que juventude se desenhou pra vocês ao desbravar aquele mundo? Liliane Mutti - Essa pergunta me faz lembrar do diretor do CIEP 449, Cicero Tauil, que no debate após a exibição do filme, no Cine UFF, reivindicou ser descendente de Araribóia, indígena de origem tupi, conhecido por ser um dos primeiros habitantes do litoral da Baía da Guanabara, onde está Niterói. Gosto de pensar em Niterói como uma cidade de resistências. Não podemos esquecer que foi o Moreira Franco, então governador do Rio de Janeiro, que com auxílio da mídia historicamente golpista, afundou o projeto dos Cieps. A existência do Ciep 449 no bairro de Charitas, em Niterói, onde se desenrola toda a história do "Salut...", é, em si, uma resistência. A existência desse filme, é resistência. Esse filme enfrentou corte de verbas na Ancine e um atraso absurdo no pagamento federal do edital. Foi graças à pressão da Secretaria das Culturas de Niterói que o recurso foi liberado. Antes do fim do Ministério da Cultura, havia idealizado essa história como uma ficção. Mas, com o baixíssimo orçamento final, a ideia original se tornou inviável. Então, decidimos pelo recorte temporal: a equipe do filme foi "morar" na escola e fizemos muitas parcerias locais. Assim, a atmosfera de Niterói ficou cada vez mais presente, o que me agrada muito. Mas, a essência da história está mesmo nos jovens. Nem todos são de Niterói, muitos são de cidades da grande região da Baixada Fluminense. Alguns chegam de balsa. Outros levam mais de quatro horas para ir e voltar da escola e há também aqueles que a mãe leva de carro. Nesse caldo, as classes sociais se misturam, o que cria uma juventude diversa e potente, que se encontra nas relações de amizades e paqueras. O namoro é algo bem valorizado no olhar do filme. Aqueles adolescentes estão na fase da vida com os hormônios a mil e costumam se apaixonar duas, três vezes por dia. Pude notar uma juventude fluída, no sentido aberto e livre do termo, desprendida de preconceitos. Acredito que isso ajude a explicar a ausência de bullying nessa escola, além do diálogo com os professores, que me pareceu algo presente e muitas vezes permeado de humor. Apesar das altas doses de melancolia, característica dessa juventude pós-pandemia, e de 2022 ter sido um ano com um comando político desastroso para o país, no final, fica a sensação de que o sonho vence. Mesmo que, esse sonho, naquele momento recortado pelo filme, seja ir embora do Brasil. Nos últimos cinco anos, vivemos o maior exílio do Brasil depois da ditadura militar. Essa saída não seria diferente em uma escola bilíngue, em que os jovens idealizam a França. Mas, se precisar escolher uma palavra para definir a juventude presente no "Salut...", diria, esperança. Porque seja qual for o caminho que cada um dos personagens do filme tome, seja o Gabriel, a Aurora, as Letícias, o Fellipe, a Fernanda e tantos outros, ao sair da escola, eles e elas carregam a poesia dos anos vividos ali.

Daniel Zarvos - Eles estão ali acertando e errando pra depois começar tudo novo e de novo. Beijando escondido na hora do recreio e chorando na despedida, depois de um ano passado junto, de sair com violão, de serem exagerados e quererem cantar e cantar. Porque o mundo começa com o "sim" e temos que dizer "sim" pra essa juventude. São eles e elas que vão "geopolíticar" por aí com muita alegria e tesão.

Estudantes de uma escola pública bilíngue revelam suas inquietações a uma câmera que observa seu processo de amadurecimento - Foto: Daniel Zarvos

Perto de "Entre os Muros da Escola", "Pro Dia Nascer Feliz" e muitos clássicos da ficção que se impõem nas telas desde "Ao Mestre... Com Carinho", o filme de vocês é acolchoado por uma cama histórica do que pode ser um subgênero do drama: os filmes de escola. Que referências da ficção e do documentário entraram na construção da narrativa de "Salut, Mes Ami.e.s!" e o que a realidade trouxe de mais inusitado para vocês? Liliane Mutti - Sou da geração "sessão da tarde", na qual os pais saíam de manhã e nos víamos apenas à noite. A minha escola, como a maioria da classe média, tinha apenas um turno... então, eu passava as tardes na frente da televisão, vendo filmes americanos enlatados. Dessa fase, lembro de "Sociedade dos Poetas Mortos" e aquela frase (dita pelo Robin Williams) - "carpe diem" - me fez sair um pouco da frente da TV e pegar a bike para ir por aí. Fui me abrindo para outras culturas e morando em várias cidades, até me tornar uma pessoa nômade. Hoje moro entre Salvador, Rio e Paris. Então, devo muito aos filmes de escola, e não poderia ter vergonha desse subgênero. O "Salut" pode, sim, ser enquadrado no subgênero "filme de escola" e acredito que esse é um nicho ainda por ser mais visitado no Brasil. Tenho um projeto de trilogia, chamada "Juventudes", no qual o segundo filme, ainda em etapa de desenvolvimento, é uma ficção que se passa em outra escola em Niterói. O terceiro se passa na Bahia. Mas, voltando ao "Salut...", esse .doc tem uma referência assumida, que é o filme "High School", de Frederick Wiseman, com quem Daniel Zarvos e eu habitamos na mesma residência artística, no Centre International Les Récollets em Paris, durante o confinamento. Essa feliz coincidência me levou a revisitar esse clássico do filão. O "High School" se debruça sobre a juventude de 1968, aquele ano em que todos queriam ser jovens para sempre. Muita euforia, muito questionamento e muito por inventar. Em 2022, como está essa mesma faixa etária no Brasil? Vi ali um bom mote, e cheguei a experimentar na finalização fazer o "Salut..." todo em preto e branco. Mas, como abrir mão da paleta de cor do ser brasileira/o? Não, não seria o que somos. Então voltei para o colorido vivo e faço uma citação ao "High School" no final, quando depois dos créditos os jovens descem a rampa da escola tocando e cantando "Bella Ciao". Essa era a música que colocava nas alturas para acordar meus filhos, Nikos e Lola, para irem para a escola no inverno francês.

Daniel Zarvos - Esses longas denominados como "filmes de escola", que vimos na época da "Sessão da Tarde", estão no nosso inconsciente e, de alguma forma, estarão sempre presentes na preconcepção do que temos antes de filmar. Mas no caso do filme Salut Mes Ami.e.s !, parto mesmo dessa referência do filme "High School", e a minha abordagem como fotógrafo foi na linha de documentário do dito "cinema direto", claro que misturado e atualizado com algumas falas na primeira pessoa, conforme pediu a diretora Liliane Mutti. Mas partimos do princípio de interferir o menos possível na cena, de modo a montar a narrativa a partir das observações geradas nos dias em que ficamos na escola.

Cartaz do longa de Liliane e Zarvos sobre uma das vozes mais delicadas da MPB - Reprodução - Divulgação Festival In-Edit  

O .doc sobre Miúcha é um painel biográfico de afetos, mas personalista, de âncora fincada no mar da MPB. O que vai daquela experiência pro "Salut..."? O que aproxima dois olhares tão longe e tão perto sobre o real, numa dinâmica em que a estratégia da escuta parece ser a dinâmica essencial de vocês? Daniel Zarvos - O que define a experiência de quando faço um filme na esfera do real e sobre o real é o princípio da vida. É o cinema vivo, que transmite uma verdade, não como fato, mas como sentimento, imagens que passam e deixam um lastro de emoção. Emoção viva, sentimento que tende a abalar de alguma forma, confrontar e confortar. Um lastro emotivo. Esse é o objetivo desta imersão visual proposta em nossos filmes.

Liliane Mutti - Faço filmes biográficos, pelo feminino. Tenho um recorte muito claro, e isso acaba imprimindo nos filmes. Não tinha como ser diferente. Vejo esse olhar no "Miúcha". Sempre lhe disse que ela tinha uma vida tão rica que merecia vários filmes. Mas esse, "A Voz da Bossa Nova", biográfico - construído a partir das cartas, diários, aquarelas, fitas cassetes gravadas em casa - era o que queríamos contar. Por isso, é muito claro que não é um filme autobiográfico. A Miúcha é super autora, mas o recorte é exterior a ela. Já no "Salut...", eu estava completamente embriagada de Clarice Lispector. Tinha acabado de realizar o curta-metragem de ficção "Ta Clarice", em francês, inspirado no livro póstumo dela, "Um Sopro de Vida", e também escrevi seu abecedário com as suas palavras conceitos, que foi a pesquisa do meu segundo mestrado na França, ainda não publicado. Naquele momento, olhava para aqueles jovens do CIEP 449 e enxergava o seu interior, suas dores, seus medos, seus sonhos. Acredito que isso foi dando uma profundidade e ao mesmo tempo uma leveza ao filme. Chamo o "Salut" de um filme do tempo da delicadeza, pós-Bossa Nova, embalado pelo mar da Baía da Guanabara e que depois de ver deixa a sensação: é a dura a vida da bailarina, mas ela ama dançar.

Como funciona a dinâmica de criação dramatúrgica e direção de vocês? Quem cuida mais de que etapa e como funciona a sinergia na montagem? Liliane Mutti - Eu venho do texto; o Dani, da imagem. Mas não somos pessoas estáticas, e o Daniel é um excelente roteirista, mesmo que não pelos métodos clássicos. Eu já gosto da sala de roteiro, de exercer a função de líder de sala e de showrunner dos projetos, ocupando-me, por exemplo, das entregas com os canais. A gente acaba se completando, porque o Daniel traz um conhecimento técnico sólido, o que permite experimentar bastante. Digo que ele tem uma câmera "glauberiana", nem sempre fixa, e, às vezes, com o foco "doce", como quem busca o foco, o que gosto muito porque dialoga com as incertezas dos personagens do "Salut". Desde a universidade, quando cursei Comunicação com foco no Audiovisual na UFBA, ouvia dos meus mestres e das minhas mestras que era preciso um profundo conhecimento dos códigos da profissão para subvertê-los. Então, cada escolha tem um sentido, cada imagem, por exemplo, em um filme de arquivo como o Miúcha, conta um pedaço da história ou do traço da personalidade da personagem. Confesso que até o Miúcha eu tinha pânico da sala de montagem. Mas trabalhando com duas mulheres, as montadoras Isabel Castro e Daniela Ramalho, e, em seguida, no "Salut..." com outra mulher, a Daniela Gonçalves, posso dizer que estou curada. O pânico vinha da experiência que precisava gastar muito tempo e energia com montadores homens para convencê-los das minhas escolhas. Já o Daniel, que além de filmar também tem o domínio da montagem, é como se eu tivesse com uma montadora, no sentido afetivo e da sororidade pelo feminino. Ele é um cara desconstruído e muito rico de ideias para trabalhar em dupla.

Daniel Zarvos - Cada filme vai funcionar de uma forma distinta. No caso do "Miúcha", ambos fazemos concessões e, por isso, é um "filme de", uma obra coletiva de um casal sobre um casal. No filme "Miúcha", eu trouxe o meu olhar sobre a estética e o ritmo das imagens. Algumas imagens são de trechos de filmes de cineastas com quem trabalhei e convivi, como Nelson Pereira dos Santos e Jonas Mekas. Trabalhos de duas cineastas são fundamentais no "Miúcha": Shirley Clarke e Marie Menken, contemporâneas de Miucha na vanguarda do feminino. Tem também a Agnès Varda, que a Lili adora e fez "Salut, Les Cubains" (1963), filme que nos embalou durante o "Salut, mes ami.e.s !". Estas imagens complementam a narrativa do filme e representam uma forma de olhar e fazer cinema. O olhar e a estética sobre a imagem são escolhas ideológicas que definem nossa percepção de mundo e cinema. "Cinema" está sendo hoje a palavra que define uma gramática visual no que hoje chamamos, de forma mais ampla, Audiovisual. Sendo assim, no "Miúcha", como eu também assino a direção, coube a mim a escolha e definição visual e rítmica do filme. A Liliane Mutti estruturou os textos do enredo do filme. Nos outros filmes que faço com Liliane Mutti, eu os fotografo. Quando faço isso, parto de uma interação pessoal com a cena e o sujeito. Sim, há algum diálogo, mas, às vezes, não há tempo. Então depois de filmado, entrego o filme e só opino quando pronto. Gosto de ver o filme que ela fez. Então mantemos esses diálogos, juntos e separados, tendo momentos de tensão, buscando rupturas e prazer nesta pulsão de vida que é o cinema.

Premiado em filme sobre a cantora Miúcha, o casal Liliane Mutti e Daniel Zarvos anda salpicando afeto na maneira que o Brasil tem de documentar o real, celebrando sobretudo a força feminina - Foto: Daniel Zarvos/ Divulgação

RODRIGO FONSECA Ora muito maduros (gente com a chamada "alma de velho"), ora super joviais (com "espírito de criança"), a turma de estudantes adolescentes retratadas pelo casal Liliane Mutti e Daniel Zarvos no longa documental "Salut, Mes Ami.e.s!" é um microcosmos colorido de diversidades afetivas, de resistênicias e de sonho. Em especial, o sonho de um Brasil que não precise buscar fora, Atlântico adentro, valores e potências para um futuro próspero. Exibido recentemente no FESTIn, em Lisboa, o longa-metragem demarca a evolução de uma dupla de realizadores que encantou olhares com o premiado "Miúcha, A Voz da Bossa Nova" (2022). Agora, eles se debruçam sobre um universo escolar cheio de singularidades e o fazem na combinação alquímica do que há de melhor nas proficiências de ambos. Mutti dirige; Zarvoz clica, na direção de fotografia. As pessoas que a câmera deles flagra estão empenhadas em terminar o ensino médio, aprendendo sobre a anatomia dos fenecos nas aulas de Biologia ou decorando quem foram os três maiores construtores de pirâmides do Egito Antigo (Queops, Qefren e Miquerinos). Pasam por um processo de evolução pessoal que é retratado com delicadeza contagiante na tela. Como objeto, "Salut, Mes Ami.e.s!" adota a rotina de uma escola muito peculiar em Niterói: o Ciep 449 Governador Leonel de Moura Brizola. É a única escola bilíngue, franco-brasileira, pública e integral da América Latina. Dentro de um prédio de concreto, construído pelo arquiteto Oscar Niemeyer, uma turma em fim de ano letivo passa cerca de dez horas por dia vivendo a cultura francesa, mas do lado da ponte que os separa do Rio de Janeiro. Jogam rugby e aprendem o idioma de Balzac enquanto vivenciam prazeres e dissabores de serem jovens, com a descoberta da sua sexualidade e outros aprendizados. Há um trabalho de edição refinado que costura o processo de observação feito por Liliane e Zarvos, que compartilham com o Estadão P de Pop suas descobertas antropológicas, sociológicas e sentimentais no papo a seguir.

Registro do Ciep 449 Governador Leonel de Moura Brizola, em Niterói - Foto: Daniel Zarvos/ Divulgação

Niterói se impõe como vetor, seja cultural ou geopolítico, de que forma sobre "Salut, Mes Ami.e.s!"? Que juventude se desenhou pra vocês ao desbravar aquele mundo? Liliane Mutti - Essa pergunta me faz lembrar do diretor do CIEP 449, Cicero Tauil, que no debate após a exibição do filme, no Cine UFF, reivindicou ser descendente de Araribóia, indígena de origem tupi, conhecido por ser um dos primeiros habitantes do litoral da Baía da Guanabara, onde está Niterói. Gosto de pensar em Niterói como uma cidade de resistências. Não podemos esquecer que foi o Moreira Franco, então governador do Rio de Janeiro, que com auxílio da mídia historicamente golpista, afundou o projeto dos Cieps. A existência do Ciep 449 no bairro de Charitas, em Niterói, onde se desenrola toda a história do "Salut...", é, em si, uma resistência. A existência desse filme, é resistência. Esse filme enfrentou corte de verbas na Ancine e um atraso absurdo no pagamento federal do edital. Foi graças à pressão da Secretaria das Culturas de Niterói que o recurso foi liberado. Antes do fim do Ministério da Cultura, havia idealizado essa história como uma ficção. Mas, com o baixíssimo orçamento final, a ideia original se tornou inviável. Então, decidimos pelo recorte temporal: a equipe do filme foi "morar" na escola e fizemos muitas parcerias locais. Assim, a atmosfera de Niterói ficou cada vez mais presente, o que me agrada muito. Mas, a essência da história está mesmo nos jovens. Nem todos são de Niterói, muitos são de cidades da grande região da Baixada Fluminense. Alguns chegam de balsa. Outros levam mais de quatro horas para ir e voltar da escola e há também aqueles que a mãe leva de carro. Nesse caldo, as classes sociais se misturam, o que cria uma juventude diversa e potente, que se encontra nas relações de amizades e paqueras. O namoro é algo bem valorizado no olhar do filme. Aqueles adolescentes estão na fase da vida com os hormônios a mil e costumam se apaixonar duas, três vezes por dia. Pude notar uma juventude fluída, no sentido aberto e livre do termo, desprendida de preconceitos. Acredito que isso ajude a explicar a ausência de bullying nessa escola, além do diálogo com os professores, que me pareceu algo presente e muitas vezes permeado de humor. Apesar das altas doses de melancolia, característica dessa juventude pós-pandemia, e de 2022 ter sido um ano com um comando político desastroso para o país, no final, fica a sensação de que o sonho vence. Mesmo que, esse sonho, naquele momento recortado pelo filme, seja ir embora do Brasil. Nos últimos cinco anos, vivemos o maior exílio do Brasil depois da ditadura militar. Essa saída não seria diferente em uma escola bilíngue, em que os jovens idealizam a França. Mas, se precisar escolher uma palavra para definir a juventude presente no "Salut...", diria, esperança. Porque seja qual for o caminho que cada um dos personagens do filme tome, seja o Gabriel, a Aurora, as Letícias, o Fellipe, a Fernanda e tantos outros, ao sair da escola, eles e elas carregam a poesia dos anos vividos ali.

Daniel Zarvos - Eles estão ali acertando e errando pra depois começar tudo novo e de novo. Beijando escondido na hora do recreio e chorando na despedida, depois de um ano passado junto, de sair com violão, de serem exagerados e quererem cantar e cantar. Porque o mundo começa com o "sim" e temos que dizer "sim" pra essa juventude. São eles e elas que vão "geopolíticar" por aí com muita alegria e tesão.

Estudantes de uma escola pública bilíngue revelam suas inquietações a uma câmera que observa seu processo de amadurecimento - Foto: Daniel Zarvos

Perto de "Entre os Muros da Escola", "Pro Dia Nascer Feliz" e muitos clássicos da ficção que se impõem nas telas desde "Ao Mestre... Com Carinho", o filme de vocês é acolchoado por uma cama histórica do que pode ser um subgênero do drama: os filmes de escola. Que referências da ficção e do documentário entraram na construção da narrativa de "Salut, Mes Ami.e.s!" e o que a realidade trouxe de mais inusitado para vocês? Liliane Mutti - Sou da geração "sessão da tarde", na qual os pais saíam de manhã e nos víamos apenas à noite. A minha escola, como a maioria da classe média, tinha apenas um turno... então, eu passava as tardes na frente da televisão, vendo filmes americanos enlatados. Dessa fase, lembro de "Sociedade dos Poetas Mortos" e aquela frase (dita pelo Robin Williams) - "carpe diem" - me fez sair um pouco da frente da TV e pegar a bike para ir por aí. Fui me abrindo para outras culturas e morando em várias cidades, até me tornar uma pessoa nômade. Hoje moro entre Salvador, Rio e Paris. Então, devo muito aos filmes de escola, e não poderia ter vergonha desse subgênero. O "Salut" pode, sim, ser enquadrado no subgênero "filme de escola" e acredito que esse é um nicho ainda por ser mais visitado no Brasil. Tenho um projeto de trilogia, chamada "Juventudes", no qual o segundo filme, ainda em etapa de desenvolvimento, é uma ficção que se passa em outra escola em Niterói. O terceiro se passa na Bahia. Mas, voltando ao "Salut...", esse .doc tem uma referência assumida, que é o filme "High School", de Frederick Wiseman, com quem Daniel Zarvos e eu habitamos na mesma residência artística, no Centre International Les Récollets em Paris, durante o confinamento. Essa feliz coincidência me levou a revisitar esse clássico do filão. O "High School" se debruça sobre a juventude de 1968, aquele ano em que todos queriam ser jovens para sempre. Muita euforia, muito questionamento e muito por inventar. Em 2022, como está essa mesma faixa etária no Brasil? Vi ali um bom mote, e cheguei a experimentar na finalização fazer o "Salut..." todo em preto e branco. Mas, como abrir mão da paleta de cor do ser brasileira/o? Não, não seria o que somos. Então voltei para o colorido vivo e faço uma citação ao "High School" no final, quando depois dos créditos os jovens descem a rampa da escola tocando e cantando "Bella Ciao". Essa era a música que colocava nas alturas para acordar meus filhos, Nikos e Lola, para irem para a escola no inverno francês.

Daniel Zarvos - Esses longas denominados como "filmes de escola", que vimos na época da "Sessão da Tarde", estão no nosso inconsciente e, de alguma forma, estarão sempre presentes na preconcepção do que temos antes de filmar. Mas no caso do filme Salut Mes Ami.e.s !, parto mesmo dessa referência do filme "High School", e a minha abordagem como fotógrafo foi na linha de documentário do dito "cinema direto", claro que misturado e atualizado com algumas falas na primeira pessoa, conforme pediu a diretora Liliane Mutti. Mas partimos do princípio de interferir o menos possível na cena, de modo a montar a narrativa a partir das observações geradas nos dias em que ficamos na escola.

Cartaz do longa de Liliane e Zarvos sobre uma das vozes mais delicadas da MPB - Reprodução - Divulgação Festival In-Edit  

O .doc sobre Miúcha é um painel biográfico de afetos, mas personalista, de âncora fincada no mar da MPB. O que vai daquela experiência pro "Salut..."? O que aproxima dois olhares tão longe e tão perto sobre o real, numa dinâmica em que a estratégia da escuta parece ser a dinâmica essencial de vocês? Daniel Zarvos - O que define a experiência de quando faço um filme na esfera do real e sobre o real é o princípio da vida. É o cinema vivo, que transmite uma verdade, não como fato, mas como sentimento, imagens que passam e deixam um lastro de emoção. Emoção viva, sentimento que tende a abalar de alguma forma, confrontar e confortar. Um lastro emotivo. Esse é o objetivo desta imersão visual proposta em nossos filmes.

Liliane Mutti - Faço filmes biográficos, pelo feminino. Tenho um recorte muito claro, e isso acaba imprimindo nos filmes. Não tinha como ser diferente. Vejo esse olhar no "Miúcha". Sempre lhe disse que ela tinha uma vida tão rica que merecia vários filmes. Mas esse, "A Voz da Bossa Nova", biográfico - construído a partir das cartas, diários, aquarelas, fitas cassetes gravadas em casa - era o que queríamos contar. Por isso, é muito claro que não é um filme autobiográfico. A Miúcha é super autora, mas o recorte é exterior a ela. Já no "Salut...", eu estava completamente embriagada de Clarice Lispector. Tinha acabado de realizar o curta-metragem de ficção "Ta Clarice", em francês, inspirado no livro póstumo dela, "Um Sopro de Vida", e também escrevi seu abecedário com as suas palavras conceitos, que foi a pesquisa do meu segundo mestrado na França, ainda não publicado. Naquele momento, olhava para aqueles jovens do CIEP 449 e enxergava o seu interior, suas dores, seus medos, seus sonhos. Acredito que isso foi dando uma profundidade e ao mesmo tempo uma leveza ao filme. Chamo o "Salut" de um filme do tempo da delicadeza, pós-Bossa Nova, embalado pelo mar da Baía da Guanabara e que depois de ver deixa a sensação: é a dura a vida da bailarina, mas ela ama dançar.

Como funciona a dinâmica de criação dramatúrgica e direção de vocês? Quem cuida mais de que etapa e como funciona a sinergia na montagem? Liliane Mutti - Eu venho do texto; o Dani, da imagem. Mas não somos pessoas estáticas, e o Daniel é um excelente roteirista, mesmo que não pelos métodos clássicos. Eu já gosto da sala de roteiro, de exercer a função de líder de sala e de showrunner dos projetos, ocupando-me, por exemplo, das entregas com os canais. A gente acaba se completando, porque o Daniel traz um conhecimento técnico sólido, o que permite experimentar bastante. Digo que ele tem uma câmera "glauberiana", nem sempre fixa, e, às vezes, com o foco "doce", como quem busca o foco, o que gosto muito porque dialoga com as incertezas dos personagens do "Salut". Desde a universidade, quando cursei Comunicação com foco no Audiovisual na UFBA, ouvia dos meus mestres e das minhas mestras que era preciso um profundo conhecimento dos códigos da profissão para subvertê-los. Então, cada escolha tem um sentido, cada imagem, por exemplo, em um filme de arquivo como o Miúcha, conta um pedaço da história ou do traço da personalidade da personagem. Confesso que até o Miúcha eu tinha pânico da sala de montagem. Mas trabalhando com duas mulheres, as montadoras Isabel Castro e Daniela Ramalho, e, em seguida, no "Salut..." com outra mulher, a Daniela Gonçalves, posso dizer que estou curada. O pânico vinha da experiência que precisava gastar muito tempo e energia com montadores homens para convencê-los das minhas escolhas. Já o Daniel, que além de filmar também tem o domínio da montagem, é como se eu tivesse com uma montadora, no sentido afetivo e da sororidade pelo feminino. Ele é um cara desconstruído e muito rico de ideias para trabalhar em dupla.

Daniel Zarvos - Cada filme vai funcionar de uma forma distinta. No caso do "Miúcha", ambos fazemos concessões e, por isso, é um "filme de", uma obra coletiva de um casal sobre um casal. No filme "Miúcha", eu trouxe o meu olhar sobre a estética e o ritmo das imagens. Algumas imagens são de trechos de filmes de cineastas com quem trabalhei e convivi, como Nelson Pereira dos Santos e Jonas Mekas. Trabalhos de duas cineastas são fundamentais no "Miúcha": Shirley Clarke e Marie Menken, contemporâneas de Miucha na vanguarda do feminino. Tem também a Agnès Varda, que a Lili adora e fez "Salut, Les Cubains" (1963), filme que nos embalou durante o "Salut, mes ami.e.s !". Estas imagens complementam a narrativa do filme e representam uma forma de olhar e fazer cinema. O olhar e a estética sobre a imagem são escolhas ideológicas que definem nossa percepção de mundo e cinema. "Cinema" está sendo hoje a palavra que define uma gramática visual no que hoje chamamos, de forma mais ampla, Audiovisual. Sendo assim, no "Miúcha", como eu também assino a direção, coube a mim a escolha e definição visual e rítmica do filme. A Liliane Mutti estruturou os textos do enredo do filme. Nos outros filmes que faço com Liliane Mutti, eu os fotografo. Quando faço isso, parto de uma interação pessoal com a cena e o sujeito. Sim, há algum diálogo, mas, às vezes, não há tempo. Então depois de filmado, entrego o filme e só opino quando pronto. Gosto de ver o filme que ela fez. Então mantemos esses diálogos, juntos e separados, tendo momentos de tensão, buscando rupturas e prazer nesta pulsão de vida que é o cinema.

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