De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

'Seu Neyla': a celebração dionisíaca de um titã


Por Rodrigo Fonseca
Interação virtual de Latorraca com a trupe no espetáculo escritor por Heloisa Périssé - Divulgação/Bernardo Cartolano/Divulgação  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA Há um filme - "O Beijo no Asfalto" na versão de 1981 - e uma novela - "O Beijo do Vampiro", de 2002 - no Globoplay que traduzem todo o esplendor de um ator cuja carreira zombou da caretice institucionalizada no país, não apenas pela escolha de personagens controversos (e imortais), mas, também, por interpretações regadas da mais fina inteligência. É Ney Latorraca! Hoje um titã, à altura dos mais talentosos dínamos teatrais do país, Latorraca tem sua vida e sua obra esmiuçadas nos palcos do Rio, no espetáculo "Seu Neyla", em cartaz no T. Riachuelo. É um experimento anfíbio (meio teatro, meio vídeo, meio musical, meio talk-show) da atriz Heloisa Périssé como dramaturga, (bem) escrito por ela com colaboração de Aloísio de Abreu e José Possi Neto (que assina a direção). Não se trata de encenação com adereços de videoarte e, sim, de uma utilização 3D no espaço cênico, onde um telão de 5 metros de altura leva o astro, virtualmente, pra diante da plateia. Nessa presença eletrônica, Ney vira fantasmagoria de si mesmo, como num filme expressionista à la Murnau, encarnando um Nosferatu dele próprio. Não é que ele se vampirize e, sim, que ele revivifique cada uma de suas memórias a cada mordida em seu próprio passado. Ou seja, é um memorial de guerra, contra a mesmice e a inércia, que se desenha diante de nós como uma celebração dionisíaca. Ao seu redor há uma trupe montando um espetáculo biográfico sobre sua carreira, indo e voltando no tempo em metalinguagens suaves. Aloísio de Abreu brinca de Joel Grey (qual o mestre de cerimônias de "Cabaret"), esbanjando desenvoltura cômica, no papel do diretor Stan. E com ele estão Helga Nemetik (num brilhante desempenho), Thainá Gallo, Bruno Fraga e Pedro Henrique Lopes, exercitando-se em múltiplos papéis que contam as peripécias de Seu Latorraca de criança até a fase "Irma Vap" (um fenômeno teatral), passando por "TV Pirata" e "Vamp". Tem citações ao Barbosa e sua boca mole, e ao Conde Vlad, uma figura que revolucionou a representação na televisão dos anos 1990. Na cozinha dessa mnemotécnica, Périssé trança inteligentemente uma ciranda de factualidades, de modo a saciar o desejo de informação prática do público, mas não se atém a elas, abrindo espaço para a ironia de Ney. É um dispositivo que lembra a série "The Last Movie Stars", de Ethan Hawke (produzida por Martin Scorsese), hoje na grade da HBO Max, falando de Joanne Woodward e Paul Newman. É arquivo, é leitura, é encenação, é autópsia em corpo vivo e é um "canto de bodes" para celebrar o lugar social (e político) do ator na civilização... e na barbárie. Com "Seu Neyla" o processo é o mesmo. Só que mais engraçado. E é uma forma de gerações mais novas conhecerem uma forma de lidar com a arte que faz da irreverência um aríete contra a ignorância.

p.s.: Tem cinema sul-coreano na TV Globo neste "Domingo Maior", à 0h15: "Dia Sem Fim" ("Ha-roo", 2017), de Cho Sun-ho. É uma trama sobre um pai que fica encapsulado no tempo pela culpa de um ato antiético.

Interação virtual de Latorraca com a trupe no espetáculo escritor por Heloisa Périssé - Divulgação/Bernardo Cartolano/Divulgação  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA Há um filme - "O Beijo no Asfalto" na versão de 1981 - e uma novela - "O Beijo do Vampiro", de 2002 - no Globoplay que traduzem todo o esplendor de um ator cuja carreira zombou da caretice institucionalizada no país, não apenas pela escolha de personagens controversos (e imortais), mas, também, por interpretações regadas da mais fina inteligência. É Ney Latorraca! Hoje um titã, à altura dos mais talentosos dínamos teatrais do país, Latorraca tem sua vida e sua obra esmiuçadas nos palcos do Rio, no espetáculo "Seu Neyla", em cartaz no T. Riachuelo. É um experimento anfíbio (meio teatro, meio vídeo, meio musical, meio talk-show) da atriz Heloisa Périssé como dramaturga, (bem) escrito por ela com colaboração de Aloísio de Abreu e José Possi Neto (que assina a direção). Não se trata de encenação com adereços de videoarte e, sim, de uma utilização 3D no espaço cênico, onde um telão de 5 metros de altura leva o astro, virtualmente, pra diante da plateia. Nessa presença eletrônica, Ney vira fantasmagoria de si mesmo, como num filme expressionista à la Murnau, encarnando um Nosferatu dele próprio. Não é que ele se vampirize e, sim, que ele revivifique cada uma de suas memórias a cada mordida em seu próprio passado. Ou seja, é um memorial de guerra, contra a mesmice e a inércia, que se desenha diante de nós como uma celebração dionisíaca. Ao seu redor há uma trupe montando um espetáculo biográfico sobre sua carreira, indo e voltando no tempo em metalinguagens suaves. Aloísio de Abreu brinca de Joel Grey (qual o mestre de cerimônias de "Cabaret"), esbanjando desenvoltura cômica, no papel do diretor Stan. E com ele estão Helga Nemetik (num brilhante desempenho), Thainá Gallo, Bruno Fraga e Pedro Henrique Lopes, exercitando-se em múltiplos papéis que contam as peripécias de Seu Latorraca de criança até a fase "Irma Vap" (um fenômeno teatral), passando por "TV Pirata" e "Vamp". Tem citações ao Barbosa e sua boca mole, e ao Conde Vlad, uma figura que revolucionou a representação na televisão dos anos 1990. Na cozinha dessa mnemotécnica, Périssé trança inteligentemente uma ciranda de factualidades, de modo a saciar o desejo de informação prática do público, mas não se atém a elas, abrindo espaço para a ironia de Ney. É um dispositivo que lembra a série "The Last Movie Stars", de Ethan Hawke (produzida por Martin Scorsese), hoje na grade da HBO Max, falando de Joanne Woodward e Paul Newman. É arquivo, é leitura, é encenação, é autópsia em corpo vivo e é um "canto de bodes" para celebrar o lugar social (e político) do ator na civilização... e na barbárie. Com "Seu Neyla" o processo é o mesmo. Só que mais engraçado. E é uma forma de gerações mais novas conhecerem uma forma de lidar com a arte que faz da irreverência um aríete contra a ignorância.

p.s.: Tem cinema sul-coreano na TV Globo neste "Domingo Maior", à 0h15: "Dia Sem Fim" ("Ha-roo", 2017), de Cho Sun-ho. É uma trama sobre um pai que fica encapsulado no tempo pela culpa de um ato antiético.

Interação virtual de Latorraca com a trupe no espetáculo escritor por Heloisa Périssé - Divulgação/Bernardo Cartolano/Divulgação  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA Há um filme - "O Beijo no Asfalto" na versão de 1981 - e uma novela - "O Beijo do Vampiro", de 2002 - no Globoplay que traduzem todo o esplendor de um ator cuja carreira zombou da caretice institucionalizada no país, não apenas pela escolha de personagens controversos (e imortais), mas, também, por interpretações regadas da mais fina inteligência. É Ney Latorraca! Hoje um titã, à altura dos mais talentosos dínamos teatrais do país, Latorraca tem sua vida e sua obra esmiuçadas nos palcos do Rio, no espetáculo "Seu Neyla", em cartaz no T. Riachuelo. É um experimento anfíbio (meio teatro, meio vídeo, meio musical, meio talk-show) da atriz Heloisa Périssé como dramaturga, (bem) escrito por ela com colaboração de Aloísio de Abreu e José Possi Neto (que assina a direção). Não se trata de encenação com adereços de videoarte e, sim, de uma utilização 3D no espaço cênico, onde um telão de 5 metros de altura leva o astro, virtualmente, pra diante da plateia. Nessa presença eletrônica, Ney vira fantasmagoria de si mesmo, como num filme expressionista à la Murnau, encarnando um Nosferatu dele próprio. Não é que ele se vampirize e, sim, que ele revivifique cada uma de suas memórias a cada mordida em seu próprio passado. Ou seja, é um memorial de guerra, contra a mesmice e a inércia, que se desenha diante de nós como uma celebração dionisíaca. Ao seu redor há uma trupe montando um espetáculo biográfico sobre sua carreira, indo e voltando no tempo em metalinguagens suaves. Aloísio de Abreu brinca de Joel Grey (qual o mestre de cerimônias de "Cabaret"), esbanjando desenvoltura cômica, no papel do diretor Stan. E com ele estão Helga Nemetik (num brilhante desempenho), Thainá Gallo, Bruno Fraga e Pedro Henrique Lopes, exercitando-se em múltiplos papéis que contam as peripécias de Seu Latorraca de criança até a fase "Irma Vap" (um fenômeno teatral), passando por "TV Pirata" e "Vamp". Tem citações ao Barbosa e sua boca mole, e ao Conde Vlad, uma figura que revolucionou a representação na televisão dos anos 1990. Na cozinha dessa mnemotécnica, Périssé trança inteligentemente uma ciranda de factualidades, de modo a saciar o desejo de informação prática do público, mas não se atém a elas, abrindo espaço para a ironia de Ney. É um dispositivo que lembra a série "The Last Movie Stars", de Ethan Hawke (produzida por Martin Scorsese), hoje na grade da HBO Max, falando de Joanne Woodward e Paul Newman. É arquivo, é leitura, é encenação, é autópsia em corpo vivo e é um "canto de bodes" para celebrar o lugar social (e político) do ator na civilização... e na barbárie. Com "Seu Neyla" o processo é o mesmo. Só que mais engraçado. E é uma forma de gerações mais novas conhecerem uma forma de lidar com a arte que faz da irreverência um aríete contra a ignorância.

p.s.: Tem cinema sul-coreano na TV Globo neste "Domingo Maior", à 0h15: "Dia Sem Fim" ("Ha-roo", 2017), de Cho Sun-ho. É uma trama sobre um pai que fica encapsulado no tempo pela culpa de um ato antiético.

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