De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

'Te Falo Com Amor e Ira' da força 'cinecênica'


Por Rodrigo Fonseca
Branca Messina encarna uma mulher em videoconferência com um ex-amor na peça dirigida por Fernanda Bond, em cartaz até domingo, com sessões online via Sympla Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA Ao ver o Teatro beber da fonte de uma donzela vaidosa chamada Audiovisual, para matar a sede de existir na estiagem da pandemia, a cultura digital testemunha a gênese de uma forma híbrida de se explorar a encenação. Forma essa expressa a partir de centauros (meio peça, meio filme) que fazem do YouTube, do Sympla e de outros ambientes de URL um Globe Theatre virtual. Nele, blocos do eu sozinho, como o cítrico "Te Falo Com Amor e Ira", desfilam sob o pedacinho colorido de nossa saudade de plateias. Em cena, passando da brandura a selvageria, mas sem perder a curva da cordilheira no desmaio da planície, Branca Messina faz uma exortação aos crocodilos da desunião, para alertá-los das consequências (míticas) do fim de um matrimônio. Um olhar ressaqueado de Capitu - mas uma Capitu que nada deve a seu Bentinho, nem se preocupa com um futuro Escobar - torna a máscara plástica do rosto de Branca um oceano de signos. E em sua maré, que oscila entre uma calmaria cúmplice e uma braveza de Santa Bárbara revolta, o ciborgue formado pela conexão entre as artes cênicas e os transistores cinematográficos nos levam a pensar em Ingmar Bergman (1918-2007). E pensamos no realizador de "Morangos Silvestres" (ganhador do Urso de Ouro de 1958) por dois motivos, lembrando-se que ele transitava pelos écrans e sob as ribaltas. Primeiro porque a dramaturgia trançada por La Messina e Fernanda Bond, que dirige o espetáculo, passa por um veio existencialista, inventariante das cicatrizes da alma, capaz de ribombar os ecos da metafísica bergmaniana de "A Paixão de Ana" (1969). Segundo: Branca e Bond se reportam a todas as Divindades - do Deus da culpa ao Zeus do Panteão -, sem firulas e sem subserviências, num diálogo ressentido e exigente, bem parecido com as formas como o cineasta sueco se referia ao Altíssimo. As forças do Absoluto, da Fé, do Espírito Santo entram na experiência "cinecênica" de Messina e Fernanda como um sintagma de universalidade e de uma (precisa) atemporalidade. Nas franjas do "aqui e agora", quando a Protagonista fala com seu ex-amado, em uma videoconferência, sobre os potes ainda repletos de mágoa, espalhados pelos escombros da relação, ela busca uma conexão com toda uma memória feminina de submissão das mulheres às vaidades e às fraquezas dos homens. Uma submissão que precisa acabar... já. Sexismos se desnudam não apenas na saliva que cai qual fel de uma boca com o paladar amargo do "ainda há algo a ser dito". Eles se desnudam na doação radical da personagem (e, com ela, a doação de uma atriz em madureza profissional da mais pura e plena) a um acerto de contas. Em dado momento, a personagem faz um convite (em forma de dança) para um "pra sempre". O pra sempre de quem tem filhos, de quem tem as contas de uma educação sentimental de crianças a prestar - e a prestar futuro adentro. Ao entendermos que uma pessoa a fim de falar e de deixar ouvir não busca guerra, a carpintaria poética de "Te Falo Com Amor e Ira" vira mais um afago do que um lamento. E vem à cabeça um relato que Liv Ullmann, parceira de Bergman em tantos filmes e num amor de tanto empenho, deu pra gente, numa entrevista publicada em O Globo, em 2012. Numa pergunta sobre o que é saber se olhar, sendo uma entidade cinéfila, a estrela de "Persona" (1966) cravou: "Envelhecer muda a gente por dentro. Quando uma mulher é atraente, ela costuma depositar muito de si em seu visual. Seu rosto é uma pintura. Diz tudo. Quando essa mulher envelhece e se olha no espelho, dependendo do ângulo da luz, ela vai se sentir bonita, achar encantos. Mas aí ela olha uma foto e vê que é mentira, pois o tempo está ali, na frente. Eu estou nessa fase, de ver que a pintura não é o rosto, é o interior. Mas ainda me sinto mais bonita do que as mulheres de botox. Minha face não tem retoques. Sou o que sou". Não se fala de "velhice" na peça de Branca e de Fernanda, arejada pela música de apaziguamento de Rodrigo Marçal, mas se reflete nela o peso do Tempo - esse moleque dengoso - sobre as aprendizagens e sobre os corpos. Mais ou menos como Liv e Seu Ingmar fizeram no belo (mas pouco falado) "Saraband" (2003). Ao falar do cineasta, nessa mesma conversa, de nove anos atrás, a atriz encarou a seguinte pergunta, deste que vos tecla: "De que maneira essa mulher sem retoques olha para trás e vê as lembranças de Ingmar Bergman?". A resposta saiu pelos favos do mel: "Essa mulher que sou eu se arrepende de não ter falado mais com Bergman, sobre mais coisas, sobre tanta coisa. O documentário "Liv & Ingmar" recorda momentos que vivemos juntos, nossa filha. Mas o momento maior talvez seja a recordação de que, mesmo separados, quando nos víamos, andávamos de mãos dadas. Lembro da mão dele na minha porque a gente nunca deixou de se amar, mesmo ficando apenas amigos. Ele era um homem de quem o mundo lembra como alguém que encarava conflitos da alma. Para mim, ele era esse mesmo homem, só que capaz de me proporcionar momentos felizes". Em sua acidez de limão com gengibre, uma acidez de ex-amantes na arena dos acertos, "Te Falo Com Amor e Ira" é mão dada. Mais ou menos como o Teatro deu a mão ao Cinema. Há tempos, Branca deu ao pontiagudo thriller "Vingança", lançado em Gramado em 2008 e exibido na Berlinale em 2009, um sopro de fogo de entranhas que prometia incendiar a maneira de se representar em sua geração. Bonito ver que, desde então, a chama só cresceu. Peça bonita. Tem sessão dela neste sábado e neste domingo, às 21h. É No Sympla e custa só 20 merréis. Perde não.

Branca Messina encarna uma mulher em videoconferência com um ex-amor na peça dirigida por Fernanda Bond, em cartaz até domingo, com sessões online via Sympla Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA Ao ver o Teatro beber da fonte de uma donzela vaidosa chamada Audiovisual, para matar a sede de existir na estiagem da pandemia, a cultura digital testemunha a gênese de uma forma híbrida de se explorar a encenação. Forma essa expressa a partir de centauros (meio peça, meio filme) que fazem do YouTube, do Sympla e de outros ambientes de URL um Globe Theatre virtual. Nele, blocos do eu sozinho, como o cítrico "Te Falo Com Amor e Ira", desfilam sob o pedacinho colorido de nossa saudade de plateias. Em cena, passando da brandura a selvageria, mas sem perder a curva da cordilheira no desmaio da planície, Branca Messina faz uma exortação aos crocodilos da desunião, para alertá-los das consequências (míticas) do fim de um matrimônio. Um olhar ressaqueado de Capitu - mas uma Capitu que nada deve a seu Bentinho, nem se preocupa com um futuro Escobar - torna a máscara plástica do rosto de Branca um oceano de signos. E em sua maré, que oscila entre uma calmaria cúmplice e uma braveza de Santa Bárbara revolta, o ciborgue formado pela conexão entre as artes cênicas e os transistores cinematográficos nos levam a pensar em Ingmar Bergman (1918-2007). E pensamos no realizador de "Morangos Silvestres" (ganhador do Urso de Ouro de 1958) por dois motivos, lembrando-se que ele transitava pelos écrans e sob as ribaltas. Primeiro porque a dramaturgia trançada por La Messina e Fernanda Bond, que dirige o espetáculo, passa por um veio existencialista, inventariante das cicatrizes da alma, capaz de ribombar os ecos da metafísica bergmaniana de "A Paixão de Ana" (1969). Segundo: Branca e Bond se reportam a todas as Divindades - do Deus da culpa ao Zeus do Panteão -, sem firulas e sem subserviências, num diálogo ressentido e exigente, bem parecido com as formas como o cineasta sueco se referia ao Altíssimo. As forças do Absoluto, da Fé, do Espírito Santo entram na experiência "cinecênica" de Messina e Fernanda como um sintagma de universalidade e de uma (precisa) atemporalidade. Nas franjas do "aqui e agora", quando a Protagonista fala com seu ex-amado, em uma videoconferência, sobre os potes ainda repletos de mágoa, espalhados pelos escombros da relação, ela busca uma conexão com toda uma memória feminina de submissão das mulheres às vaidades e às fraquezas dos homens. Uma submissão que precisa acabar... já. Sexismos se desnudam não apenas na saliva que cai qual fel de uma boca com o paladar amargo do "ainda há algo a ser dito". Eles se desnudam na doação radical da personagem (e, com ela, a doação de uma atriz em madureza profissional da mais pura e plena) a um acerto de contas. Em dado momento, a personagem faz um convite (em forma de dança) para um "pra sempre". O pra sempre de quem tem filhos, de quem tem as contas de uma educação sentimental de crianças a prestar - e a prestar futuro adentro. Ao entendermos que uma pessoa a fim de falar e de deixar ouvir não busca guerra, a carpintaria poética de "Te Falo Com Amor e Ira" vira mais um afago do que um lamento. E vem à cabeça um relato que Liv Ullmann, parceira de Bergman em tantos filmes e num amor de tanto empenho, deu pra gente, numa entrevista publicada em O Globo, em 2012. Numa pergunta sobre o que é saber se olhar, sendo uma entidade cinéfila, a estrela de "Persona" (1966) cravou: "Envelhecer muda a gente por dentro. Quando uma mulher é atraente, ela costuma depositar muito de si em seu visual. Seu rosto é uma pintura. Diz tudo. Quando essa mulher envelhece e se olha no espelho, dependendo do ângulo da luz, ela vai se sentir bonita, achar encantos. Mas aí ela olha uma foto e vê que é mentira, pois o tempo está ali, na frente. Eu estou nessa fase, de ver que a pintura não é o rosto, é o interior. Mas ainda me sinto mais bonita do que as mulheres de botox. Minha face não tem retoques. Sou o que sou". Não se fala de "velhice" na peça de Branca e de Fernanda, arejada pela música de apaziguamento de Rodrigo Marçal, mas se reflete nela o peso do Tempo - esse moleque dengoso - sobre as aprendizagens e sobre os corpos. Mais ou menos como Liv e Seu Ingmar fizeram no belo (mas pouco falado) "Saraband" (2003). Ao falar do cineasta, nessa mesma conversa, de nove anos atrás, a atriz encarou a seguinte pergunta, deste que vos tecla: "De que maneira essa mulher sem retoques olha para trás e vê as lembranças de Ingmar Bergman?". A resposta saiu pelos favos do mel: "Essa mulher que sou eu se arrepende de não ter falado mais com Bergman, sobre mais coisas, sobre tanta coisa. O documentário "Liv & Ingmar" recorda momentos que vivemos juntos, nossa filha. Mas o momento maior talvez seja a recordação de que, mesmo separados, quando nos víamos, andávamos de mãos dadas. Lembro da mão dele na minha porque a gente nunca deixou de se amar, mesmo ficando apenas amigos. Ele era um homem de quem o mundo lembra como alguém que encarava conflitos da alma. Para mim, ele era esse mesmo homem, só que capaz de me proporcionar momentos felizes". Em sua acidez de limão com gengibre, uma acidez de ex-amantes na arena dos acertos, "Te Falo Com Amor e Ira" é mão dada. Mais ou menos como o Teatro deu a mão ao Cinema. Há tempos, Branca deu ao pontiagudo thriller "Vingança", lançado em Gramado em 2008 e exibido na Berlinale em 2009, um sopro de fogo de entranhas que prometia incendiar a maneira de se representar em sua geração. Bonito ver que, desde então, a chama só cresceu. Peça bonita. Tem sessão dela neste sábado e neste domingo, às 21h. É No Sympla e custa só 20 merréis. Perde não.

Branca Messina encarna uma mulher em videoconferência com um ex-amor na peça dirigida por Fernanda Bond, em cartaz até domingo, com sessões online via Sympla Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA Ao ver o Teatro beber da fonte de uma donzela vaidosa chamada Audiovisual, para matar a sede de existir na estiagem da pandemia, a cultura digital testemunha a gênese de uma forma híbrida de se explorar a encenação. Forma essa expressa a partir de centauros (meio peça, meio filme) que fazem do YouTube, do Sympla e de outros ambientes de URL um Globe Theatre virtual. Nele, blocos do eu sozinho, como o cítrico "Te Falo Com Amor e Ira", desfilam sob o pedacinho colorido de nossa saudade de plateias. Em cena, passando da brandura a selvageria, mas sem perder a curva da cordilheira no desmaio da planície, Branca Messina faz uma exortação aos crocodilos da desunião, para alertá-los das consequências (míticas) do fim de um matrimônio. Um olhar ressaqueado de Capitu - mas uma Capitu que nada deve a seu Bentinho, nem se preocupa com um futuro Escobar - torna a máscara plástica do rosto de Branca um oceano de signos. E em sua maré, que oscila entre uma calmaria cúmplice e uma braveza de Santa Bárbara revolta, o ciborgue formado pela conexão entre as artes cênicas e os transistores cinematográficos nos levam a pensar em Ingmar Bergman (1918-2007). E pensamos no realizador de "Morangos Silvestres" (ganhador do Urso de Ouro de 1958) por dois motivos, lembrando-se que ele transitava pelos écrans e sob as ribaltas. Primeiro porque a dramaturgia trançada por La Messina e Fernanda Bond, que dirige o espetáculo, passa por um veio existencialista, inventariante das cicatrizes da alma, capaz de ribombar os ecos da metafísica bergmaniana de "A Paixão de Ana" (1969). Segundo: Branca e Bond se reportam a todas as Divindades - do Deus da culpa ao Zeus do Panteão -, sem firulas e sem subserviências, num diálogo ressentido e exigente, bem parecido com as formas como o cineasta sueco se referia ao Altíssimo. As forças do Absoluto, da Fé, do Espírito Santo entram na experiência "cinecênica" de Messina e Fernanda como um sintagma de universalidade e de uma (precisa) atemporalidade. Nas franjas do "aqui e agora", quando a Protagonista fala com seu ex-amado, em uma videoconferência, sobre os potes ainda repletos de mágoa, espalhados pelos escombros da relação, ela busca uma conexão com toda uma memória feminina de submissão das mulheres às vaidades e às fraquezas dos homens. Uma submissão que precisa acabar... já. Sexismos se desnudam não apenas na saliva que cai qual fel de uma boca com o paladar amargo do "ainda há algo a ser dito". Eles se desnudam na doação radical da personagem (e, com ela, a doação de uma atriz em madureza profissional da mais pura e plena) a um acerto de contas. Em dado momento, a personagem faz um convite (em forma de dança) para um "pra sempre". O pra sempre de quem tem filhos, de quem tem as contas de uma educação sentimental de crianças a prestar - e a prestar futuro adentro. Ao entendermos que uma pessoa a fim de falar e de deixar ouvir não busca guerra, a carpintaria poética de "Te Falo Com Amor e Ira" vira mais um afago do que um lamento. E vem à cabeça um relato que Liv Ullmann, parceira de Bergman em tantos filmes e num amor de tanto empenho, deu pra gente, numa entrevista publicada em O Globo, em 2012. Numa pergunta sobre o que é saber se olhar, sendo uma entidade cinéfila, a estrela de "Persona" (1966) cravou: "Envelhecer muda a gente por dentro. Quando uma mulher é atraente, ela costuma depositar muito de si em seu visual. Seu rosto é uma pintura. Diz tudo. Quando essa mulher envelhece e se olha no espelho, dependendo do ângulo da luz, ela vai se sentir bonita, achar encantos. Mas aí ela olha uma foto e vê que é mentira, pois o tempo está ali, na frente. Eu estou nessa fase, de ver que a pintura não é o rosto, é o interior. Mas ainda me sinto mais bonita do que as mulheres de botox. Minha face não tem retoques. Sou o que sou". Não se fala de "velhice" na peça de Branca e de Fernanda, arejada pela música de apaziguamento de Rodrigo Marçal, mas se reflete nela o peso do Tempo - esse moleque dengoso - sobre as aprendizagens e sobre os corpos. Mais ou menos como Liv e Seu Ingmar fizeram no belo (mas pouco falado) "Saraband" (2003). Ao falar do cineasta, nessa mesma conversa, de nove anos atrás, a atriz encarou a seguinte pergunta, deste que vos tecla: "De que maneira essa mulher sem retoques olha para trás e vê as lembranças de Ingmar Bergman?". A resposta saiu pelos favos do mel: "Essa mulher que sou eu se arrepende de não ter falado mais com Bergman, sobre mais coisas, sobre tanta coisa. O documentário "Liv & Ingmar" recorda momentos que vivemos juntos, nossa filha. Mas o momento maior talvez seja a recordação de que, mesmo separados, quando nos víamos, andávamos de mãos dadas. Lembro da mão dele na minha porque a gente nunca deixou de se amar, mesmo ficando apenas amigos. Ele era um homem de quem o mundo lembra como alguém que encarava conflitos da alma. Para mim, ele era esse mesmo homem, só que capaz de me proporcionar momentos felizes". Em sua acidez de limão com gengibre, uma acidez de ex-amantes na arena dos acertos, "Te Falo Com Amor e Ira" é mão dada. Mais ou menos como o Teatro deu a mão ao Cinema. Há tempos, Branca deu ao pontiagudo thriller "Vingança", lançado em Gramado em 2008 e exibido na Berlinale em 2009, um sopro de fogo de entranhas que prometia incendiar a maneira de se representar em sua geração. Bonito ver que, desde então, a chama só cresceu. Peça bonita. Tem sessão dela neste sábado e neste domingo, às 21h. É No Sympla e custa só 20 merréis. Perde não.

Branca Messina encarna uma mulher em videoconferência com um ex-amor na peça dirigida por Fernanda Bond, em cartaz até domingo, com sessões online via Sympla Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA Ao ver o Teatro beber da fonte de uma donzela vaidosa chamada Audiovisual, para matar a sede de existir na estiagem da pandemia, a cultura digital testemunha a gênese de uma forma híbrida de se explorar a encenação. Forma essa expressa a partir de centauros (meio peça, meio filme) que fazem do YouTube, do Sympla e de outros ambientes de URL um Globe Theatre virtual. Nele, blocos do eu sozinho, como o cítrico "Te Falo Com Amor e Ira", desfilam sob o pedacinho colorido de nossa saudade de plateias. Em cena, passando da brandura a selvageria, mas sem perder a curva da cordilheira no desmaio da planície, Branca Messina faz uma exortação aos crocodilos da desunião, para alertá-los das consequências (míticas) do fim de um matrimônio. Um olhar ressaqueado de Capitu - mas uma Capitu que nada deve a seu Bentinho, nem se preocupa com um futuro Escobar - torna a máscara plástica do rosto de Branca um oceano de signos. E em sua maré, que oscila entre uma calmaria cúmplice e uma braveza de Santa Bárbara revolta, o ciborgue formado pela conexão entre as artes cênicas e os transistores cinematográficos nos levam a pensar em Ingmar Bergman (1918-2007). E pensamos no realizador de "Morangos Silvestres" (ganhador do Urso de Ouro de 1958) por dois motivos, lembrando-se que ele transitava pelos écrans e sob as ribaltas. Primeiro porque a dramaturgia trançada por La Messina e Fernanda Bond, que dirige o espetáculo, passa por um veio existencialista, inventariante das cicatrizes da alma, capaz de ribombar os ecos da metafísica bergmaniana de "A Paixão de Ana" (1969). Segundo: Branca e Bond se reportam a todas as Divindades - do Deus da culpa ao Zeus do Panteão -, sem firulas e sem subserviências, num diálogo ressentido e exigente, bem parecido com as formas como o cineasta sueco se referia ao Altíssimo. As forças do Absoluto, da Fé, do Espírito Santo entram na experiência "cinecênica" de Messina e Fernanda como um sintagma de universalidade e de uma (precisa) atemporalidade. Nas franjas do "aqui e agora", quando a Protagonista fala com seu ex-amado, em uma videoconferência, sobre os potes ainda repletos de mágoa, espalhados pelos escombros da relação, ela busca uma conexão com toda uma memória feminina de submissão das mulheres às vaidades e às fraquezas dos homens. Uma submissão que precisa acabar... já. Sexismos se desnudam não apenas na saliva que cai qual fel de uma boca com o paladar amargo do "ainda há algo a ser dito". Eles se desnudam na doação radical da personagem (e, com ela, a doação de uma atriz em madureza profissional da mais pura e plena) a um acerto de contas. Em dado momento, a personagem faz um convite (em forma de dança) para um "pra sempre". O pra sempre de quem tem filhos, de quem tem as contas de uma educação sentimental de crianças a prestar - e a prestar futuro adentro. Ao entendermos que uma pessoa a fim de falar e de deixar ouvir não busca guerra, a carpintaria poética de "Te Falo Com Amor e Ira" vira mais um afago do que um lamento. E vem à cabeça um relato que Liv Ullmann, parceira de Bergman em tantos filmes e num amor de tanto empenho, deu pra gente, numa entrevista publicada em O Globo, em 2012. Numa pergunta sobre o que é saber se olhar, sendo uma entidade cinéfila, a estrela de "Persona" (1966) cravou: "Envelhecer muda a gente por dentro. Quando uma mulher é atraente, ela costuma depositar muito de si em seu visual. Seu rosto é uma pintura. Diz tudo. Quando essa mulher envelhece e se olha no espelho, dependendo do ângulo da luz, ela vai se sentir bonita, achar encantos. Mas aí ela olha uma foto e vê que é mentira, pois o tempo está ali, na frente. Eu estou nessa fase, de ver que a pintura não é o rosto, é o interior. Mas ainda me sinto mais bonita do que as mulheres de botox. Minha face não tem retoques. Sou o que sou". Não se fala de "velhice" na peça de Branca e de Fernanda, arejada pela música de apaziguamento de Rodrigo Marçal, mas se reflete nela o peso do Tempo - esse moleque dengoso - sobre as aprendizagens e sobre os corpos. Mais ou menos como Liv e Seu Ingmar fizeram no belo (mas pouco falado) "Saraband" (2003). Ao falar do cineasta, nessa mesma conversa, de nove anos atrás, a atriz encarou a seguinte pergunta, deste que vos tecla: "De que maneira essa mulher sem retoques olha para trás e vê as lembranças de Ingmar Bergman?". A resposta saiu pelos favos do mel: "Essa mulher que sou eu se arrepende de não ter falado mais com Bergman, sobre mais coisas, sobre tanta coisa. O documentário "Liv & Ingmar" recorda momentos que vivemos juntos, nossa filha. Mas o momento maior talvez seja a recordação de que, mesmo separados, quando nos víamos, andávamos de mãos dadas. Lembro da mão dele na minha porque a gente nunca deixou de se amar, mesmo ficando apenas amigos. Ele era um homem de quem o mundo lembra como alguém que encarava conflitos da alma. Para mim, ele era esse mesmo homem, só que capaz de me proporcionar momentos felizes". Em sua acidez de limão com gengibre, uma acidez de ex-amantes na arena dos acertos, "Te Falo Com Amor e Ira" é mão dada. Mais ou menos como o Teatro deu a mão ao Cinema. Há tempos, Branca deu ao pontiagudo thriller "Vingança", lançado em Gramado em 2008 e exibido na Berlinale em 2009, um sopro de fogo de entranhas que prometia incendiar a maneira de se representar em sua geração. Bonito ver que, desde então, a chama só cresceu. Peça bonita. Tem sessão dela neste sábado e neste domingo, às 21h. É No Sympla e custa só 20 merréis. Perde não.

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