RODRIGO FONSECA Apesar do que seu título possa sugerir, a peça "Tráfico" - em cartaz no Poeirinha, de Botafogo, no RJ, até 18 de dezembro - é uma história de amor, daquelas que contaminam, como um LP do Julio Iglesias ou - mais especificamente - um livro de Marçal Aquino, autor que mais (e melhor) enxerga o fino da fossa do homem brasileiro. Sim, "Tráfico" é uma peça sobre um homem, escrita por homem (Sergio Blanco), dirigida (de modo claustrofóbico) por homem (Victor Garcia Peralta), e encenada num monólogo de um ator que se doa até a plenitude de sua alma no palco: Robson Torinni. Mas essa condição masculina está frisada aqui apenas pra indicar que ela é mera casca de um fruto carnudo, universalíssimo, chamado "desmedida". É um fruto que sabe ser comum a todos os gêneros, a todas as identidades e a qualquer devir. É universal como os thrillers de Marçal, que escreve, numa das radiais de seu romance "Eu Receberia As Piores Notícias Dos Seus Lindos Lábios" (2005) - filmado por Renato Ciasca e Betop Brant em 2011 - algo capaz de sintetiza o que Torinni dá à plateia:"No reino amoroso, o 'talvez' é moeda sem nenhum valor. Talvez se eu tivesse perdido aquele avião, talvez se não tivesse tomado aquele trem, quando ainda existiam trens. (...) Se tivesse ido pra outro lugar... Minha vida não estaria completa. Porque nenhuma vida está completa sem um grande desastre". Disse (muito bem) o cineasta David Lean (1908-1991), no longa-metragem "Desencanto" ("Brief Encounter", Grande Prêmio do Júri de Cannes, em 1946), que "toda história de amor é uma história de talvez". Há sempre um "Talvez eu tenha me doado demais". Ou um "Talvez eu tenha errado" no jogo de amar. A gente vê isso em cena, no Poeirinha. Na periferia de uma cidade latino-americana, cheia de desigualdades, Alex, papel de Torinni em "Tráfico", está na várzea do "talvez". Toda a narrativa que ele compartilha com as pessoas que lotam o teatro é assombrada por uma reflexão condicional. Cada afirmação de sua vivência é acompanhada de algo que poderia ter sido. Seja esse "poderia" algo sereno ou algo aconchegante. A "farinha" que ele cheirou na falta de cocaína da boa engrossa o caldo desse condicional até o ponto da entorna. Afirmativas cruzam seu caminho aqui e ali, em especial na descrição de suas performances e de seus dotes como garoto de programa. Alex passa de "um bom aluno que pode vir a ser um astronauta quando crescer" a michê e a matador de aluguel, num fluxo de incontinência verbal de três atos. Ouvimos sobre problemas familiares, sobre uma mãe que era uma santa, sobre uma medalhinha sagrada, sobre o relacionamento conturbado com a sua namorada e sobre a ambição de ter uma moto envenenada. Blanco transforma alguns substantivos em cacos de um vidro afiado ao longo daquele memorial de um "eu" doído. E a direção de Peralta, apoiada num espaço cênico de (aparente) simplicidade (e de plena harmonia, cenografado por Gilberto Gawronski), facilita um super close de um personagem fragilizado até a medula. Mas é um super close tenso, onde o suspense vai se elevando a cada sequência, um pouco como se vê atualmente no cinema brasileiro no trabalho do realizador Cristiano Burlan, com a atriz Marcélia Cartaxo, no filme "A Mãe". São narrativas confessionais. A diferença essencial delas é que, em "A Mãe", a natureza física da maternidade não comporta o "talvez". No amor... ah... esse se lambuza no "talvez". É o que se sente quando Alex fala sobre o Francês, professor que serve de bússola a um coração perdido, que foi despejado da casa da harmonia em autos de resistência das contradições sociais brasileiras. Como experimento dramatúrgico, "Tráfico" é a autópsia em corpo vivo do Estado sob o prisma dos hematomas gerados pelo abandono da segurança pública, do assistencialismo, da política corrupta. Como experimento humanista, "Tráfico" é o estudo de alguém que amou demais sem saber lidar com a aritmética do "talvez". Como teatro, "Tráfico" é a prova de que Torinni é capaz de alcançar uma zona assombrosa da invenção, sem medo da liberdade cênica.
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