De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

'Zama' coroa mostra no CCBB-SP


Por Rodrigo Fonseca
Daniel Giménez Cacho brilha no papel de um funcionário da coroa espanhola fora de seu habitat - Foto: Bananeira Filmes

RODRIGO FONSECA Tem mito filme bom na retrospectiva "El Camino - Cinema de Viagem da América do Sul", no CCBB de São Paulo, a começar por "Serras da Desordem" (2006), do precioso Andrea Tonacci, que será exibido neste domingo, às 14h, na curadoria de Carla Italiano e Leonardo Amaral. Tem "Vidas Secas" (1963), tem o chileno "A Terra Prometido" (1973), mas o xodó aqui do P de Pop brota vicejante nesse cardápio: "Zama" (2017), de Lucrecia Martel. Sua sessão será no dia 29, às 14h30. Referência de excelência no continente sul-americano no quesito roteiro, o cinema argentino pode ganhar um reforço nobre, vindo de Lucrecia, uma das suas mais potentes criadoras de imagens, quiçá para a programação do Festival de Veneza, que arranca em 30 de agosto. Esse possível regresso dela há de se dar pelo terreno da produção documental, por meio de um projeto associado ao Sundance Institute. "Chocobar". Nele, a diretora de "O Pântano" ("La Ciénaga", 2001) resgata a memória de lutas do fotógrafo e ativista Javier Chocobar (1941-2009), um ferrenho defensor dos povos indígenas, assassinado como sequela de suas pelejas pela reforma fundiária. O projeto marca o regresso da realizadora aos longas-metragens depois de sua aclamada experiência em "Zama" (2017), laureado com 40 prêmios. Feito em parceria com a Bananeira Filmes, da mineira Vânia Catani, este sinestésico drama de época é um dos principais acertos da mostra do CCBB de SP. Em cena estão estrelas nacionais como Mariana Nunes, Evandro Melo e Matheus Nachtergaele. Mas do que se trata "Zama"? Homem cordial, mas de uma cordialidade com aquele senso de obediência utilitária apontado sociologicamente por Sergio Buarque de Holanda (1902-1982), Zama, o protagonista do longa-metragem homônimo de La Martel é uma espécie de Policarpo Quaresma na colonização espanhola. Não entra no delírio do ufanismo patriótico, ao contrário do que faz o personagem de Lima Barreto (1881-1922). Ainda assim, como ele, Zama é o único herói possível (mesmo que num heroísmo involuntário) para uma pátria moldada na rapinagem. No quarto longa-metragem da diretora de "A Menina Santa" (2004), Zama, um nobre inspetor da Coroa de Espanha, interpretado por Daniel Giménez Cacho (de "Má Educação") no limite da contenção de gestos, é a única pedra no caminho do mecanismo de corrupção estabelecido entre a metrópole e suas colônias. Isso se dá num século XVIII maculado por banditismos sociais. Não é da natureza inercial dele combater os corruptos. Contudo, sua retidão no dever atrapalha a demanda por vista grossa feita por seus superiores. E embora saiba se adaptar às necessidades do meio, pela sobrevivência dos fortes e a resignação dos fracos, Zama é a encarnação do burocrata kafkiano: leva às últimas consequências as exigências que as engrenagens da máquina do Poder necessitam para sobreviver. Mas sabe que isso irrita aqueles que, longe da Europa, estabeleceram um estado de exceção do Mal, ou seja, o Estado da Propina, da Derrama, de Caixa Dois. Não por acaso, o filme - uma expedição ao passado colonial das Américas, organizada a partir de uma exuberante engenharia visual na fotografia do português Rui Poças e na direção de arte da pernambucana Renata Pinheiro - tem DNA brasileiro. Não há ninguém capaz de entender melhor, na carne, a dor de um pretérito imperfeito de corrupções do que nós, do Brasil. Até porque, um dos desejos da diretora é expor essa imperfeição de gênese de nosso continente sob uma ótica multinacional. O que dói aqui também dói na Argentina de Martel, assim como na paraguaia Asunción, para onde o Policarpo de Lucrecia é transferido, na caça por um terrorista chamado Vicuña Porto. Como um castigo por seu exercício burocrático (de olhos abertos ao que não deveria ter visto), Zama é obrigado a caçar Vicuña, nos rincões praianos do Novo Mundo sul-americano. Ali, o anacoreta acaba se aproximando de figuras estranhas como o mercenário vivido por um inspiradíssimo Matheus Natchergaele. É um homem que fascina, mas, ao mesmo tempo, aterroriza Zama, como tudo em sua volta, nas horas que antecedem seu sonho de regressar ao posto de cidade grande que tanto deseja ocupar. Até a caça ao bando de Vicuña começar, Lucrecia faz uma espécie de geografia - física e humana - dos feudos que se constroem na colônia, cimentados pela subserviência, pela prevaricação e pelo jeitinho ibérico de driblar convenções morais. Parece uma estrutura nova para uma cineasta acostumada ao intimismo e uma investigação de sentimentos que beira o existencial, como vimos no supracitado "O Pântano" ou em sua obra-prima, "A Mulher Sem Cabeça" (2008). Mas há algo de familiar, para além das marcas autorais de direção. A principal delas é o cuidado dela com o desenho de som, dando a ruídos e engasgos o peso de uma fala.

Uma fotografia arrebatadora de Rui Poças coroa o olhar de Lucrecia Martel sobre ranços coloniais - Foto: Bananeira
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O ponto mais comum é a contenção, assunto central de sua obra, que soma já 35 anos de cinema. Em 1988, "El 56", um curta-metragem de animação, marcou a estreia dela na telona; ainda que Lucrecia considere outro curta, "Rey Muerto", de 1995, como o primeiro filme genuinamente seu como realizadora. Em seus dramas sobre mulheres da província de Salta, ambientados nos dias de hoje, o foco do drama são verdades contidas: a opção em se represar vontades. "Zama" é um filme de época. Um filme sobre um homem. E um filme sobre os efeitos cancerígenos do dinheiro. Mas, na prática, o ontem que o longa recria (com a magistral luz de Rui Poças) não é muito distinto das zonas pantanosas flagradas pela cineasta nas mulheres dos nossos dias e nos homens que as sufocam. O relato histórico deste seu precioso novo filme dispensa cartilhas da narrativa épica - tão comuns a reconstituições - e aposta numa psicologia do impasse, na tentativa de entendimento acerca da burocracia interna de Zama, estudando que carimbos legitimam seus medos e suas perversões. É um estudo da alma, com a crueza desconcertante que faz de Lucrecia um patrimônio cinéfilo da América Latina e com um ritmo de contemplação do Espaço e do silêncio a seu redor que consagra a montadora Karen Harley como uma de nossas mais criativas editoras de imagem. Coproduzido pela El Deseo, dos irmãos Agustín e Pedro Almodóvar, o filme é um olhar atônito para uma América de desesperanças. Vale destaque a atuação de Mariana Nunes.

Daniel Giménez Cacho brilha no papel de um funcionário da coroa espanhola fora de seu habitat - Foto: Bananeira Filmes

RODRIGO FONSECA Tem mito filme bom na retrospectiva "El Camino - Cinema de Viagem da América do Sul", no CCBB de São Paulo, a começar por "Serras da Desordem" (2006), do precioso Andrea Tonacci, que será exibido neste domingo, às 14h, na curadoria de Carla Italiano e Leonardo Amaral. Tem "Vidas Secas" (1963), tem o chileno "A Terra Prometido" (1973), mas o xodó aqui do P de Pop brota vicejante nesse cardápio: "Zama" (2017), de Lucrecia Martel. Sua sessão será no dia 29, às 14h30. Referência de excelência no continente sul-americano no quesito roteiro, o cinema argentino pode ganhar um reforço nobre, vindo de Lucrecia, uma das suas mais potentes criadoras de imagens, quiçá para a programação do Festival de Veneza, que arranca em 30 de agosto. Esse possível regresso dela há de se dar pelo terreno da produção documental, por meio de um projeto associado ao Sundance Institute. "Chocobar". Nele, a diretora de "O Pântano" ("La Ciénaga", 2001) resgata a memória de lutas do fotógrafo e ativista Javier Chocobar (1941-2009), um ferrenho defensor dos povos indígenas, assassinado como sequela de suas pelejas pela reforma fundiária. O projeto marca o regresso da realizadora aos longas-metragens depois de sua aclamada experiência em "Zama" (2017), laureado com 40 prêmios. Feito em parceria com a Bananeira Filmes, da mineira Vânia Catani, este sinestésico drama de época é um dos principais acertos da mostra do CCBB de SP. Em cena estão estrelas nacionais como Mariana Nunes, Evandro Melo e Matheus Nachtergaele. Mas do que se trata "Zama"? Homem cordial, mas de uma cordialidade com aquele senso de obediência utilitária apontado sociologicamente por Sergio Buarque de Holanda (1902-1982), Zama, o protagonista do longa-metragem homônimo de La Martel é uma espécie de Policarpo Quaresma na colonização espanhola. Não entra no delírio do ufanismo patriótico, ao contrário do que faz o personagem de Lima Barreto (1881-1922). Ainda assim, como ele, Zama é o único herói possível (mesmo que num heroísmo involuntário) para uma pátria moldada na rapinagem. No quarto longa-metragem da diretora de "A Menina Santa" (2004), Zama, um nobre inspetor da Coroa de Espanha, interpretado por Daniel Giménez Cacho (de "Má Educação") no limite da contenção de gestos, é a única pedra no caminho do mecanismo de corrupção estabelecido entre a metrópole e suas colônias. Isso se dá num século XVIII maculado por banditismos sociais. Não é da natureza inercial dele combater os corruptos. Contudo, sua retidão no dever atrapalha a demanda por vista grossa feita por seus superiores. E embora saiba se adaptar às necessidades do meio, pela sobrevivência dos fortes e a resignação dos fracos, Zama é a encarnação do burocrata kafkiano: leva às últimas consequências as exigências que as engrenagens da máquina do Poder necessitam para sobreviver. Mas sabe que isso irrita aqueles que, longe da Europa, estabeleceram um estado de exceção do Mal, ou seja, o Estado da Propina, da Derrama, de Caixa Dois. Não por acaso, o filme - uma expedição ao passado colonial das Américas, organizada a partir de uma exuberante engenharia visual na fotografia do português Rui Poças e na direção de arte da pernambucana Renata Pinheiro - tem DNA brasileiro. Não há ninguém capaz de entender melhor, na carne, a dor de um pretérito imperfeito de corrupções do que nós, do Brasil. Até porque, um dos desejos da diretora é expor essa imperfeição de gênese de nosso continente sob uma ótica multinacional. O que dói aqui também dói na Argentina de Martel, assim como na paraguaia Asunción, para onde o Policarpo de Lucrecia é transferido, na caça por um terrorista chamado Vicuña Porto. Como um castigo por seu exercício burocrático (de olhos abertos ao que não deveria ter visto), Zama é obrigado a caçar Vicuña, nos rincões praianos do Novo Mundo sul-americano. Ali, o anacoreta acaba se aproximando de figuras estranhas como o mercenário vivido por um inspiradíssimo Matheus Natchergaele. É um homem que fascina, mas, ao mesmo tempo, aterroriza Zama, como tudo em sua volta, nas horas que antecedem seu sonho de regressar ao posto de cidade grande que tanto deseja ocupar. Até a caça ao bando de Vicuña começar, Lucrecia faz uma espécie de geografia - física e humana - dos feudos que se constroem na colônia, cimentados pela subserviência, pela prevaricação e pelo jeitinho ibérico de driblar convenções morais. Parece uma estrutura nova para uma cineasta acostumada ao intimismo e uma investigação de sentimentos que beira o existencial, como vimos no supracitado "O Pântano" ou em sua obra-prima, "A Mulher Sem Cabeça" (2008). Mas há algo de familiar, para além das marcas autorais de direção. A principal delas é o cuidado dela com o desenho de som, dando a ruídos e engasgos o peso de uma fala.

Uma fotografia arrebatadora de Rui Poças coroa o olhar de Lucrecia Martel sobre ranços coloniais - Foto: Bananeira

O ponto mais comum é a contenção, assunto central de sua obra, que soma já 35 anos de cinema. Em 1988, "El 56", um curta-metragem de animação, marcou a estreia dela na telona; ainda que Lucrecia considere outro curta, "Rey Muerto", de 1995, como o primeiro filme genuinamente seu como realizadora. Em seus dramas sobre mulheres da província de Salta, ambientados nos dias de hoje, o foco do drama são verdades contidas: a opção em se represar vontades. "Zama" é um filme de época. Um filme sobre um homem. E um filme sobre os efeitos cancerígenos do dinheiro. Mas, na prática, o ontem que o longa recria (com a magistral luz de Rui Poças) não é muito distinto das zonas pantanosas flagradas pela cineasta nas mulheres dos nossos dias e nos homens que as sufocam. O relato histórico deste seu precioso novo filme dispensa cartilhas da narrativa épica - tão comuns a reconstituições - e aposta numa psicologia do impasse, na tentativa de entendimento acerca da burocracia interna de Zama, estudando que carimbos legitimam seus medos e suas perversões. É um estudo da alma, com a crueza desconcertante que faz de Lucrecia um patrimônio cinéfilo da América Latina e com um ritmo de contemplação do Espaço e do silêncio a seu redor que consagra a montadora Karen Harley como uma de nossas mais criativas editoras de imagem. Coproduzido pela El Deseo, dos irmãos Agustín e Pedro Almodóvar, o filme é um olhar atônito para uma América de desesperanças. Vale destaque a atuação de Mariana Nunes.

Daniel Giménez Cacho brilha no papel de um funcionário da coroa espanhola fora de seu habitat - Foto: Bananeira Filmes

RODRIGO FONSECA Tem mito filme bom na retrospectiva "El Camino - Cinema de Viagem da América do Sul", no CCBB de São Paulo, a começar por "Serras da Desordem" (2006), do precioso Andrea Tonacci, que será exibido neste domingo, às 14h, na curadoria de Carla Italiano e Leonardo Amaral. Tem "Vidas Secas" (1963), tem o chileno "A Terra Prometido" (1973), mas o xodó aqui do P de Pop brota vicejante nesse cardápio: "Zama" (2017), de Lucrecia Martel. Sua sessão será no dia 29, às 14h30. Referência de excelência no continente sul-americano no quesito roteiro, o cinema argentino pode ganhar um reforço nobre, vindo de Lucrecia, uma das suas mais potentes criadoras de imagens, quiçá para a programação do Festival de Veneza, que arranca em 30 de agosto. Esse possível regresso dela há de se dar pelo terreno da produção documental, por meio de um projeto associado ao Sundance Institute. "Chocobar". Nele, a diretora de "O Pântano" ("La Ciénaga", 2001) resgata a memória de lutas do fotógrafo e ativista Javier Chocobar (1941-2009), um ferrenho defensor dos povos indígenas, assassinado como sequela de suas pelejas pela reforma fundiária. O projeto marca o regresso da realizadora aos longas-metragens depois de sua aclamada experiência em "Zama" (2017), laureado com 40 prêmios. Feito em parceria com a Bananeira Filmes, da mineira Vânia Catani, este sinestésico drama de época é um dos principais acertos da mostra do CCBB de SP. Em cena estão estrelas nacionais como Mariana Nunes, Evandro Melo e Matheus Nachtergaele. Mas do que se trata "Zama"? Homem cordial, mas de uma cordialidade com aquele senso de obediência utilitária apontado sociologicamente por Sergio Buarque de Holanda (1902-1982), Zama, o protagonista do longa-metragem homônimo de La Martel é uma espécie de Policarpo Quaresma na colonização espanhola. Não entra no delírio do ufanismo patriótico, ao contrário do que faz o personagem de Lima Barreto (1881-1922). Ainda assim, como ele, Zama é o único herói possível (mesmo que num heroísmo involuntário) para uma pátria moldada na rapinagem. No quarto longa-metragem da diretora de "A Menina Santa" (2004), Zama, um nobre inspetor da Coroa de Espanha, interpretado por Daniel Giménez Cacho (de "Má Educação") no limite da contenção de gestos, é a única pedra no caminho do mecanismo de corrupção estabelecido entre a metrópole e suas colônias. Isso se dá num século XVIII maculado por banditismos sociais. Não é da natureza inercial dele combater os corruptos. Contudo, sua retidão no dever atrapalha a demanda por vista grossa feita por seus superiores. E embora saiba se adaptar às necessidades do meio, pela sobrevivência dos fortes e a resignação dos fracos, Zama é a encarnação do burocrata kafkiano: leva às últimas consequências as exigências que as engrenagens da máquina do Poder necessitam para sobreviver. Mas sabe que isso irrita aqueles que, longe da Europa, estabeleceram um estado de exceção do Mal, ou seja, o Estado da Propina, da Derrama, de Caixa Dois. Não por acaso, o filme - uma expedição ao passado colonial das Américas, organizada a partir de uma exuberante engenharia visual na fotografia do português Rui Poças e na direção de arte da pernambucana Renata Pinheiro - tem DNA brasileiro. Não há ninguém capaz de entender melhor, na carne, a dor de um pretérito imperfeito de corrupções do que nós, do Brasil. Até porque, um dos desejos da diretora é expor essa imperfeição de gênese de nosso continente sob uma ótica multinacional. O que dói aqui também dói na Argentina de Martel, assim como na paraguaia Asunción, para onde o Policarpo de Lucrecia é transferido, na caça por um terrorista chamado Vicuña Porto. Como um castigo por seu exercício burocrático (de olhos abertos ao que não deveria ter visto), Zama é obrigado a caçar Vicuña, nos rincões praianos do Novo Mundo sul-americano. Ali, o anacoreta acaba se aproximando de figuras estranhas como o mercenário vivido por um inspiradíssimo Matheus Natchergaele. É um homem que fascina, mas, ao mesmo tempo, aterroriza Zama, como tudo em sua volta, nas horas que antecedem seu sonho de regressar ao posto de cidade grande que tanto deseja ocupar. Até a caça ao bando de Vicuña começar, Lucrecia faz uma espécie de geografia - física e humana - dos feudos que se constroem na colônia, cimentados pela subserviência, pela prevaricação e pelo jeitinho ibérico de driblar convenções morais. Parece uma estrutura nova para uma cineasta acostumada ao intimismo e uma investigação de sentimentos que beira o existencial, como vimos no supracitado "O Pântano" ou em sua obra-prima, "A Mulher Sem Cabeça" (2008). Mas há algo de familiar, para além das marcas autorais de direção. A principal delas é o cuidado dela com o desenho de som, dando a ruídos e engasgos o peso de uma fala.

Uma fotografia arrebatadora de Rui Poças coroa o olhar de Lucrecia Martel sobre ranços coloniais - Foto: Bananeira

O ponto mais comum é a contenção, assunto central de sua obra, que soma já 35 anos de cinema. Em 1988, "El 56", um curta-metragem de animação, marcou a estreia dela na telona; ainda que Lucrecia considere outro curta, "Rey Muerto", de 1995, como o primeiro filme genuinamente seu como realizadora. Em seus dramas sobre mulheres da província de Salta, ambientados nos dias de hoje, o foco do drama são verdades contidas: a opção em se represar vontades. "Zama" é um filme de época. Um filme sobre um homem. E um filme sobre os efeitos cancerígenos do dinheiro. Mas, na prática, o ontem que o longa recria (com a magistral luz de Rui Poças) não é muito distinto das zonas pantanosas flagradas pela cineasta nas mulheres dos nossos dias e nos homens que as sufocam. O relato histórico deste seu precioso novo filme dispensa cartilhas da narrativa épica - tão comuns a reconstituições - e aposta numa psicologia do impasse, na tentativa de entendimento acerca da burocracia interna de Zama, estudando que carimbos legitimam seus medos e suas perversões. É um estudo da alma, com a crueza desconcertante que faz de Lucrecia um patrimônio cinéfilo da América Latina e com um ritmo de contemplação do Espaço e do silêncio a seu redor que consagra a montadora Karen Harley como uma de nossas mais criativas editoras de imagem. Coproduzido pela El Deseo, dos irmãos Agustín e Pedro Almodóvar, o filme é um olhar atônito para uma América de desesperanças. Vale destaque a atuação de Mariana Nunes.

Daniel Giménez Cacho brilha no papel de um funcionário da coroa espanhola fora de seu habitat - Foto: Bananeira Filmes

RODRIGO FONSECA Tem mito filme bom na retrospectiva "El Camino - Cinema de Viagem da América do Sul", no CCBB de São Paulo, a começar por "Serras da Desordem" (2006), do precioso Andrea Tonacci, que será exibido neste domingo, às 14h, na curadoria de Carla Italiano e Leonardo Amaral. Tem "Vidas Secas" (1963), tem o chileno "A Terra Prometido" (1973), mas o xodó aqui do P de Pop brota vicejante nesse cardápio: "Zama" (2017), de Lucrecia Martel. Sua sessão será no dia 29, às 14h30. Referência de excelência no continente sul-americano no quesito roteiro, o cinema argentino pode ganhar um reforço nobre, vindo de Lucrecia, uma das suas mais potentes criadoras de imagens, quiçá para a programação do Festival de Veneza, que arranca em 30 de agosto. Esse possível regresso dela há de se dar pelo terreno da produção documental, por meio de um projeto associado ao Sundance Institute. "Chocobar". Nele, a diretora de "O Pântano" ("La Ciénaga", 2001) resgata a memória de lutas do fotógrafo e ativista Javier Chocobar (1941-2009), um ferrenho defensor dos povos indígenas, assassinado como sequela de suas pelejas pela reforma fundiária. O projeto marca o regresso da realizadora aos longas-metragens depois de sua aclamada experiência em "Zama" (2017), laureado com 40 prêmios. Feito em parceria com a Bananeira Filmes, da mineira Vânia Catani, este sinestésico drama de época é um dos principais acertos da mostra do CCBB de SP. Em cena estão estrelas nacionais como Mariana Nunes, Evandro Melo e Matheus Nachtergaele. Mas do que se trata "Zama"? Homem cordial, mas de uma cordialidade com aquele senso de obediência utilitária apontado sociologicamente por Sergio Buarque de Holanda (1902-1982), Zama, o protagonista do longa-metragem homônimo de La Martel é uma espécie de Policarpo Quaresma na colonização espanhola. Não entra no delírio do ufanismo patriótico, ao contrário do que faz o personagem de Lima Barreto (1881-1922). Ainda assim, como ele, Zama é o único herói possível (mesmo que num heroísmo involuntário) para uma pátria moldada na rapinagem. No quarto longa-metragem da diretora de "A Menina Santa" (2004), Zama, um nobre inspetor da Coroa de Espanha, interpretado por Daniel Giménez Cacho (de "Má Educação") no limite da contenção de gestos, é a única pedra no caminho do mecanismo de corrupção estabelecido entre a metrópole e suas colônias. Isso se dá num século XVIII maculado por banditismos sociais. Não é da natureza inercial dele combater os corruptos. Contudo, sua retidão no dever atrapalha a demanda por vista grossa feita por seus superiores. E embora saiba se adaptar às necessidades do meio, pela sobrevivência dos fortes e a resignação dos fracos, Zama é a encarnação do burocrata kafkiano: leva às últimas consequências as exigências que as engrenagens da máquina do Poder necessitam para sobreviver. Mas sabe que isso irrita aqueles que, longe da Europa, estabeleceram um estado de exceção do Mal, ou seja, o Estado da Propina, da Derrama, de Caixa Dois. Não por acaso, o filme - uma expedição ao passado colonial das Américas, organizada a partir de uma exuberante engenharia visual na fotografia do português Rui Poças e na direção de arte da pernambucana Renata Pinheiro - tem DNA brasileiro. Não há ninguém capaz de entender melhor, na carne, a dor de um pretérito imperfeito de corrupções do que nós, do Brasil. Até porque, um dos desejos da diretora é expor essa imperfeição de gênese de nosso continente sob uma ótica multinacional. O que dói aqui também dói na Argentina de Martel, assim como na paraguaia Asunción, para onde o Policarpo de Lucrecia é transferido, na caça por um terrorista chamado Vicuña Porto. Como um castigo por seu exercício burocrático (de olhos abertos ao que não deveria ter visto), Zama é obrigado a caçar Vicuña, nos rincões praianos do Novo Mundo sul-americano. Ali, o anacoreta acaba se aproximando de figuras estranhas como o mercenário vivido por um inspiradíssimo Matheus Natchergaele. É um homem que fascina, mas, ao mesmo tempo, aterroriza Zama, como tudo em sua volta, nas horas que antecedem seu sonho de regressar ao posto de cidade grande que tanto deseja ocupar. Até a caça ao bando de Vicuña começar, Lucrecia faz uma espécie de geografia - física e humana - dos feudos que se constroem na colônia, cimentados pela subserviência, pela prevaricação e pelo jeitinho ibérico de driblar convenções morais. Parece uma estrutura nova para uma cineasta acostumada ao intimismo e uma investigação de sentimentos que beira o existencial, como vimos no supracitado "O Pântano" ou em sua obra-prima, "A Mulher Sem Cabeça" (2008). Mas há algo de familiar, para além das marcas autorais de direção. A principal delas é o cuidado dela com o desenho de som, dando a ruídos e engasgos o peso de uma fala.

Uma fotografia arrebatadora de Rui Poças coroa o olhar de Lucrecia Martel sobre ranços coloniais - Foto: Bananeira

O ponto mais comum é a contenção, assunto central de sua obra, que soma já 35 anos de cinema. Em 1988, "El 56", um curta-metragem de animação, marcou a estreia dela na telona; ainda que Lucrecia considere outro curta, "Rey Muerto", de 1995, como o primeiro filme genuinamente seu como realizadora. Em seus dramas sobre mulheres da província de Salta, ambientados nos dias de hoje, o foco do drama são verdades contidas: a opção em se represar vontades. "Zama" é um filme de época. Um filme sobre um homem. E um filme sobre os efeitos cancerígenos do dinheiro. Mas, na prática, o ontem que o longa recria (com a magistral luz de Rui Poças) não é muito distinto das zonas pantanosas flagradas pela cineasta nas mulheres dos nossos dias e nos homens que as sufocam. O relato histórico deste seu precioso novo filme dispensa cartilhas da narrativa épica - tão comuns a reconstituições - e aposta numa psicologia do impasse, na tentativa de entendimento acerca da burocracia interna de Zama, estudando que carimbos legitimam seus medos e suas perversões. É um estudo da alma, com a crueza desconcertante que faz de Lucrecia um patrimônio cinéfilo da América Latina e com um ritmo de contemplação do Espaço e do silêncio a seu redor que consagra a montadora Karen Harley como uma de nossas mais criativas editoras de imagem. Coproduzido pela El Deseo, dos irmãos Agustín e Pedro Almodóvar, o filme é um olhar atônito para uma América de desesperanças. Vale destaque a atuação de Mariana Nunes.

Daniel Giménez Cacho brilha no papel de um funcionário da coroa espanhola fora de seu habitat - Foto: Bananeira Filmes

RODRIGO FONSECA Tem mito filme bom na retrospectiva "El Camino - Cinema de Viagem da América do Sul", no CCBB de São Paulo, a começar por "Serras da Desordem" (2006), do precioso Andrea Tonacci, que será exibido neste domingo, às 14h, na curadoria de Carla Italiano e Leonardo Amaral. Tem "Vidas Secas" (1963), tem o chileno "A Terra Prometido" (1973), mas o xodó aqui do P de Pop brota vicejante nesse cardápio: "Zama" (2017), de Lucrecia Martel. Sua sessão será no dia 29, às 14h30. Referência de excelência no continente sul-americano no quesito roteiro, o cinema argentino pode ganhar um reforço nobre, vindo de Lucrecia, uma das suas mais potentes criadoras de imagens, quiçá para a programação do Festival de Veneza, que arranca em 30 de agosto. Esse possível regresso dela há de se dar pelo terreno da produção documental, por meio de um projeto associado ao Sundance Institute. "Chocobar". Nele, a diretora de "O Pântano" ("La Ciénaga", 2001) resgata a memória de lutas do fotógrafo e ativista Javier Chocobar (1941-2009), um ferrenho defensor dos povos indígenas, assassinado como sequela de suas pelejas pela reforma fundiária. O projeto marca o regresso da realizadora aos longas-metragens depois de sua aclamada experiência em "Zama" (2017), laureado com 40 prêmios. Feito em parceria com a Bananeira Filmes, da mineira Vânia Catani, este sinestésico drama de época é um dos principais acertos da mostra do CCBB de SP. Em cena estão estrelas nacionais como Mariana Nunes, Evandro Melo e Matheus Nachtergaele. Mas do que se trata "Zama"? Homem cordial, mas de uma cordialidade com aquele senso de obediência utilitária apontado sociologicamente por Sergio Buarque de Holanda (1902-1982), Zama, o protagonista do longa-metragem homônimo de La Martel é uma espécie de Policarpo Quaresma na colonização espanhola. Não entra no delírio do ufanismo patriótico, ao contrário do que faz o personagem de Lima Barreto (1881-1922). Ainda assim, como ele, Zama é o único herói possível (mesmo que num heroísmo involuntário) para uma pátria moldada na rapinagem. No quarto longa-metragem da diretora de "A Menina Santa" (2004), Zama, um nobre inspetor da Coroa de Espanha, interpretado por Daniel Giménez Cacho (de "Má Educação") no limite da contenção de gestos, é a única pedra no caminho do mecanismo de corrupção estabelecido entre a metrópole e suas colônias. Isso se dá num século XVIII maculado por banditismos sociais. Não é da natureza inercial dele combater os corruptos. Contudo, sua retidão no dever atrapalha a demanda por vista grossa feita por seus superiores. E embora saiba se adaptar às necessidades do meio, pela sobrevivência dos fortes e a resignação dos fracos, Zama é a encarnação do burocrata kafkiano: leva às últimas consequências as exigências que as engrenagens da máquina do Poder necessitam para sobreviver. Mas sabe que isso irrita aqueles que, longe da Europa, estabeleceram um estado de exceção do Mal, ou seja, o Estado da Propina, da Derrama, de Caixa Dois. Não por acaso, o filme - uma expedição ao passado colonial das Américas, organizada a partir de uma exuberante engenharia visual na fotografia do português Rui Poças e na direção de arte da pernambucana Renata Pinheiro - tem DNA brasileiro. Não há ninguém capaz de entender melhor, na carne, a dor de um pretérito imperfeito de corrupções do que nós, do Brasil. Até porque, um dos desejos da diretora é expor essa imperfeição de gênese de nosso continente sob uma ótica multinacional. O que dói aqui também dói na Argentina de Martel, assim como na paraguaia Asunción, para onde o Policarpo de Lucrecia é transferido, na caça por um terrorista chamado Vicuña Porto. Como um castigo por seu exercício burocrático (de olhos abertos ao que não deveria ter visto), Zama é obrigado a caçar Vicuña, nos rincões praianos do Novo Mundo sul-americano. Ali, o anacoreta acaba se aproximando de figuras estranhas como o mercenário vivido por um inspiradíssimo Matheus Natchergaele. É um homem que fascina, mas, ao mesmo tempo, aterroriza Zama, como tudo em sua volta, nas horas que antecedem seu sonho de regressar ao posto de cidade grande que tanto deseja ocupar. Até a caça ao bando de Vicuña começar, Lucrecia faz uma espécie de geografia - física e humana - dos feudos que se constroem na colônia, cimentados pela subserviência, pela prevaricação e pelo jeitinho ibérico de driblar convenções morais. Parece uma estrutura nova para uma cineasta acostumada ao intimismo e uma investigação de sentimentos que beira o existencial, como vimos no supracitado "O Pântano" ou em sua obra-prima, "A Mulher Sem Cabeça" (2008). Mas há algo de familiar, para além das marcas autorais de direção. A principal delas é o cuidado dela com o desenho de som, dando a ruídos e engasgos o peso de uma fala.

Uma fotografia arrebatadora de Rui Poças coroa o olhar de Lucrecia Martel sobre ranços coloniais - Foto: Bananeira

O ponto mais comum é a contenção, assunto central de sua obra, que soma já 35 anos de cinema. Em 1988, "El 56", um curta-metragem de animação, marcou a estreia dela na telona; ainda que Lucrecia considere outro curta, "Rey Muerto", de 1995, como o primeiro filme genuinamente seu como realizadora. Em seus dramas sobre mulheres da província de Salta, ambientados nos dias de hoje, o foco do drama são verdades contidas: a opção em se represar vontades. "Zama" é um filme de época. Um filme sobre um homem. E um filme sobre os efeitos cancerígenos do dinheiro. Mas, na prática, o ontem que o longa recria (com a magistral luz de Rui Poças) não é muito distinto das zonas pantanosas flagradas pela cineasta nas mulheres dos nossos dias e nos homens que as sufocam. O relato histórico deste seu precioso novo filme dispensa cartilhas da narrativa épica - tão comuns a reconstituições - e aposta numa psicologia do impasse, na tentativa de entendimento acerca da burocracia interna de Zama, estudando que carimbos legitimam seus medos e suas perversões. É um estudo da alma, com a crueza desconcertante que faz de Lucrecia um patrimônio cinéfilo da América Latina e com um ritmo de contemplação do Espaço e do silêncio a seu redor que consagra a montadora Karen Harley como uma de nossas mais criativas editoras de imagem. Coproduzido pela El Deseo, dos irmãos Agustín e Pedro Almodóvar, o filme é um olhar atônito para uma América de desesperanças. Vale destaque a atuação de Mariana Nunes.

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