Para o historiador Evaldo Cabral de Mello, Independência fora do eixo Rio-SP foi decisiva; entenda


Em entrevista ao 'Estadão', ensaísta e escritor conta a importância do processo de separação de Portugal

Por Leonencio Nossa

No ano do bicentenário da independência de 1822, um dos mais destacados historiadores do País, Evaldo Cabral de Mello afirma que ainda há muito o que se estudar sobre o período. Em entrevista ao Estadão, o autor de A Outra Independência, clássico com críticas à historiografia hegemônica do Sudeste, afirma que a narrativa histórica ficou restrita aos acontecimentos vividos no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. “A Independência está pouco estudada exatamente por causa do riocentrismo. Todo mundo só ficou na base do Rio, convocação das Cortes, o Dia do Fico, a ida de Dom Pedro para São Paulo, a ida a Minas. Ficou nisso: Rio, São Paulo e Minas. Todo o resto do Brasil foi ignorado.”

Historiador Evaldo Cabral de Mello, mebro da Academia Brasileira de Letras, fez carreira na diplomacia Foto: Leonencio Nossa

  • CONVOCAÇÃO DAS CORTES

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Com invasão de Portugal pela França, a família real portuguesa fugiu, em 1808, para o Brasil. Em 1820, um movimento afastou os franceses. As Cortes de Lisboa, formadas por lideranças dessa revolta, obrigaram o retorno de D. João e depois exigiram também a volta de D. Pedro. Mas, a 9 de janeiro de 1822, o príncipe decidiu “ficar” no Rio, como defendiam separatistas brasileiros.

  • IDA DE DOM PEDRO A MINAS E SÃO PAULO EM 1822

Viagens do príncipe regente em busca de apoio político à causa da Independência.

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Restauração do quadro'Independência ou Morte', de Pedro Américo, foi feita no próprio Museu do Ipiranga Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO

O movimento oficial da Independência faz agora 200 anos. O senhor personalizou a crítica à História contada apenas a partir da Corte. Quase 20 anos após a publicação de A Outra Independência, o Brasil continua se olhando desta forma?

O livro foi publicado em 2004. Curiosamente, foi o livro a que eu menos me dediquei e que despertou mais interesse, porque é uma coisa da história recente. Ninguém se interessa por guerra holandesa no Brasil. E esse foi sempre o meu tema de predileção. Vai sair até uma segunda edição, porque as pessoas se deram conta de que a história da Independência era contada de maneira muito limitada pelos historiadores que se ocuparam dela – Varnhagen, Oliveira Lima e outros. Todos esses sujeitos que centraram no Rio e que escreveram sobre a Independência têm uma coisa em comum: eram funcionários públicos. Isso é um filão que se esgotou, você não pode contar mais a Independência em termos só de Rio de Janeiro. É normal que coisas fundamentais ocorram nas metrópoles. Mas quando você tem elementos de contestação, como em Pernambuco em 1817 e 1824, é difícil escamotear.

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  • VARNHAGEN E OLIVEIRA LIMA

Sempre ligados ao Estado, Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) e Manuel de Oliveira Lima (1867-1928) contaram a história da Independência aos olhos dos poderes econômico e político.

Crianças com o livro comemorativo dos 150 anos da proclamação da Independência do Brasil, 1972 Foto: Acervo/Estadão
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O senhor expôs que havia dois projetos de independência: um grupo aderiu ao centralismo na figura de D. Pedro e outro às ideias da Revolução Francesa. Por que os proprietários de terra de Pernambuco aderiram ao imperador?

Mesmo antes de 1824, houve uma retração dos proprietários de terra, dos senhores de engenho. Era o problema dos fantasmas do Haiti. Quer dizer, os sujeitos já viviam isolados nos engenhos com as cavalarias enormes dormindo ao lado. Então o medo começou. As revoluções de 1817 e 1824 foram essencialmente urbanas. Foram feitas por comerciantes, profissionais liberais. Se você for ver a lista, eram todos comerciantes. Gervásio Pinto Ferreira era comerciante e filho de uma família de comerciantes. Quer dizer, era uma elite muito segregada no meio urbano.

  • REVOLUÇÃO DO HAITI (1791-1808)

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Caso único de movimento de lideranças negras nas Américas que resultou na abolição da escravatura e na independência. A guerra foi contra a França de Napoleão.

  • GERVÁSIO PIRES FERREIRA (1765-1838)

Comerciante, um dos líderes da Revolução de 1817.

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O militar Emiliano Munducuru, retratado por Moisés Patrício, participou na revolução de 1817 e na Confederação do Equador Foto: Companhia das Letras/Pinacoteca do Estado de São Paulo

Mas ela teve um ramo rural no Ceará...

No Crato, houve a Bárbara de Alencar. Havia esse núcleo revolucionário que fez tanto 1817 quanto 1824. Esses camaradas, no fundo, eram uma minoria, mas tinham uma ideia separatista. Eram ao mesmo tempo federalistas. Você vê o projeto da revolução de 17, que prevê uma assembleia de cada uma dessas capitanias – Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco. Alagoas não existia ainda, era comarca de Pernambuco. É um negócio curioso, porque outro dia vi um ex-governador de Alagoas dizer: “Alagoas é o berço da República”. Acontece que Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto chegaram à presidência não por serem alagoanos, mas por serem militares. Alagoas se opôs à revolução de 17. Aí, quando veio a repressão, D. João VI compensou Alagoas dando-lhe a condição de capitania. E vem o cara dizer que Alagoas é o berço da República.

  • BÁRBARA DE ALENCAR (1760-1832)

Matriarca da família que liderou no Ceará as revoltas de 1817 contra a Coroa Portuguesa e de 1824 contra o Império Brasileiro.

Como avalia os paradoxos de 1817? Revolucionários sugeriram trazer Napoleão para Recife.

Raptá-lo, né? Ele já estava preso lá em Santa Helena. Mas aquilo foi loucura. Já pensou o Napoleão no Recife? Isso, eles eram (republicanos). Mas eles não eram muito definidos, se eram separatistas. Havia um grupo pequeno que era separatista e que queria um Nordeste independente – nessa época ninguém falava em Nordeste, o termo começou a ser usado no começo do Século 20. Chamava-se Norte. Desde a descoberta de ouro em Minas o Nordeste foi sendo crescentemente marginalizado.

  • REVOLUÇÃO DE 1817

Movimento em Pernambuco de características republicana e separatista, reprimido por D. João VI.

O Museu Nacional foi fundado por D. João VI e tinha como um dos atrativos o quarto onde dormia o imperador D. Pedro II, no Palácio de São Cristóvão Foto: Marcos Arcoverde/Estadão

O centralismo de poder, criticado pelos revoltosos de 1817 e 1824, perdura no País?

Ah, sim. Apenas a diferença é que o centro hoje é Brasília. Quer dizer, você não tem muito como reclamar, você tem um centro, vamos dizer, que responde a nação toda, enquanto que o Rio de Janeiro era um negócio...

  • CONFEDERAÇÃO DO EQUADOR DE 1824

Movimento iniciado em Pernambuco e que atingiu o Rio Grande do Norte, a Paraíba e o Ceará após a Constituição daquele ano dar amplos poderes a D. Pedro.

Os movimentos da Cabanagem no Pará e da Balaiada no Maranhão foram demandas ainda da Independência?

Ninguém falava desses movimentos. No fundo, eles estavam marginalizados pela Corte no Rio. Estavam estreitamente ligados comercialmente a Portugal, muito mais do que com o Rio de Janeiro ou com o resto do Brasil, e a coisa da aversão aos portugueses também acabou prevalecendo ali.

  • CABANAGEM E BALAIADA

Revoltas populares ocorridas respectivamente no Pará e Amazonas, entre 1835 e 1840, e no Maranhão, 1838 a 1841, que tinham demandas sociais não atendidas pelo processo da Independência.

Exposição do Museu do Ipiranga na estação República do Metrô traz reprodução de obra clássica sobre a Independência do Brasil Foto: Taba Benedicto/Estadão

A questão da escravidão rachou os movimentos nativistas em Pernambuco...

A escravidão estava implantada entre o pessoal do dinheiro. Esse negócio de ser republicano e revolucionário ficou reduzido ao Recife, liberais que tinham se formado em Portugal, e eram uma elite urbana, não tinha nada a ver com a elite rural. É um negócio curioso, você vê, a contestação passa a ser quase que exclusivamente urbana.

Os mais pobres do Recife nunca tiveram espaço nesses movimentos?

O sentimento antiportuguês era sobretudo plebeu. Na cidade, o sujeito que era passado para trás na concorrência pelos empregos pelo português que vinha pobre de Portugal. A quantidade de portugueses que continua vindo para o Brasil mesmo depois da Independência é impressionante. E aqui havia um processo de concorrência que era altamente desfavorável para o mestiço já abrasileirado, vamos dizer assim.

Escravas negras de diferentes nações, entre 1834 e 1839: a partir do século 18, era cada vez mais forte a influência da escravidão no cotidiano brasileiro Foto: Jean-Baptiste Debret/Acervo Estadão

Em 'O Nome e o Sangue', o senhor mostra uma elite tentado recriar o passado.

Ela acreditava naquilo. É um negócio curioso. Depois que escrevi aquele livro, fiquei lembrando que papai era amigo de um sujeito chamado Mário de Albuquerque Melo, um homem de negócios no Recife, rico esnobe. Ele descendia de cristãos novos. Fiquei cá pensando: ele ia ficar espantado que um filho de um amigo fosse escrever a história da empulhação que a família dele inventou no século 17 para esconder a origem.

Foi natural a opção do senhor em focar boa parte de seu trabalho no período colonial no Nordeste, um período bem distante?

Espontânea, instintiva. Eu detesto História recente, porque você não vê com nitidez as coisas. Se fosse europeu, teria sido medievalista, a maneira de me separar mais longe possível da história recente. É muito difícil você escrever um livro que fique, porque vem logo o revisionismo. A história recente é a pátria do revisionismo. Veja o caso da Independência. A história recente é um negócio perigoso. E ninguém estava interessado em Pernambuco. Mas eu não teria motivação para me dedicar a escrever sobre um lugar que não estivesse sentimentalmente ligado.

Por que ser historiador?

Eu fui ser historiador porque o Itamaraty não me ocupava full time, sobretudo quando eu estava no exterior. Tinha a vantagem de fácil acesso a arquivos, sobretudo em Portugal. Quando era menino pequeno ainda fiquei muito impressionado com um livro do José Lins do Rego. Fogo Morto foi o primeiro livro de adulto que eu li, escondido. Meu pai não deixaria porque não era leitura para jovem. Toda minha família tinha sido de engenho, mas eu não. De modo que eu só conhecia da vida rural o que eu via num sítio que meu pai tinha, a 70 km do Recife. Eu tinha 12, 13 anos, ele abriu uma conta para mim numa livraria do Recife para eu chegar lá e pegar o livro que eu quisesse. 

E por que investigar a guerra holandesa?

Eu tinha um primo, José Antônio, 19 anos mais velho, autor de Tempo dos Flamengos. Ele me disse: “Se você quiser se interessar por período holandês tem que ler em holandês”. Depois, entrei para o Itamaraty. Em Genebra, eu fui a uma professora, que era funcionária da ONU. “Eu não quero falar nem escrever holandês, quero apenas ler de preferência holandês do Século 17’. É um holandês mais fácil para a gente, do que o do Século 20. Tenho a impressão que se eu não tivesse sido diplomata não teria sido historiador, não. 

Quais foram suas leituras decisivas?

Ah, tem outra coisa que me levou a ser historiador. Um dia, em Washington, lendo o New York Times, aparece a notícia do lançamento da segunda edição de Méditerranée (O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de Filipe II), de Fernand Braudel. Os livros decisivos na minha vida foram Fogo Morto e o de Braudel. Eu vi em Fogo Morto a vida rural que eu não havia alcançado e, em Braudel, a capacidade de estocagem de conhecimento e de dar sentido a esse conhecimento numa escala impressionante para o ser humano. 

O senhor critica a historiografia que deixou de querer entender o País no geral.

É pelo fato de que eu não pertenço à universidade. Eu saí direto do Braudel para escrever história. A história da universidade é muito particularizada, agarrada a temas, um negócio estranho, não são temas amplos. Repare, não há nenhum grande livro de história no Brasil que tenha vindo da universidade. Você vai me dizer Sérgio Buarque. Ele foi para a Universidade de São Paulo aos cinquenta e tantos anos de idade. A obra dele não deve nada à USP. Aspectos institucionais empobreceram a universidade.

O historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda Foto: Acervo pessoal

Historiadores não gostam de fazer comparações, mas quando a gente pega os trabalhos do senhor sobre a sociedade açucareira e analisa a violência política brasileira no período democrático atual vê que Pernambuco e Alagoas são justamente os estados mais violentos.

Paraíba também. Depois da guerra holandesa, aquele negócio ficou uma bagunça, há um livro meu que eu trato do assunto, chamado A Fronda dos Mazombos, que vai da expulsão dos holandeses até a Guerra dos Mascates. A violência em Pernambuco é um negócio impressionante. Alagoas também, muito mais do que Pernambuco. Havia uma cultura da violência, vamos dizer, embotada na população.

  • GUERRA HOLANDESA (1604-1654)

Com a unificação dos tronos de Portugal e Espanha, em 1570, a Holanda, inimiga de Madri, invadiu o atual Nordeste brasileiro, região produtora de açúcar.

O senhor sempre soube escolher os títulos dos seus livros.

O título é fundamental para você imaginar o que você está fazendo.

O título surge antes de iniciar o livro ou quando está escrevendo?

Não, ao longo da escrita eu vou lá no título. Você tem um tema sem necessariamente ter um título. O Negócio do Brasil surgiu quando eu trabalhava no livro. O título saiu de uma frase do embaixador português em Haia: “Minha missão aqui é o negócio do Brasil, não sei se Portugal terá outro tão importante”.

Chegou a escrever ficção?

Cheguei a escrever um conto passado no engenho do meu avô que eu não conheci, o Engenho Poço, em São Lourenço da Mata. Pra você ver que foi uma coisa... Ou melhor, eu só conheci depois, quando já não era mais engenho. Tinha sido comprado pela usina Tiúma. O título era O Poço do Aleixo, acho que é isso. Eu tinha 14, 15 anos.

O senhor guardou esse conto?

E eu ia guardar conto de adolescente? Não sou de guardar papel.

Depois, o senhor foi atraído definitivamente pela História?

História é bem melhor, você não tem que imaginar, o prato já vem feito.

Mas a obra do senhor é um trabalho de elaboração narrativa.

É exatamente o que falta na historiografia das universidades. As pessoas não querem mais saber de narrar, querem fazer da história uma ciência social à margem, como a antropologia ou a sociologia. A história é, na verdade, uma forma de apreensão da realidade que vem da antiguidade clássica. A sociologia e a antropologia são criações do século 19. Você não pode por a história no mesmo lugar das ciências sociais, porque inclusive a história não é uma ciência. É uma forma de apreensão da realidade como as outras que na antiguidade clássica apareceram. É por isso também que a universidade não se importa, por exemplo, com uma coisa fundamental para o historiador, que é o estilo. Escrevem mal, não sabem escrever, como sociólogos e antropólogos. Os grandes historiadores do passado eram grandes escritores. E isso já na Grécia e em Roma. Ainda hoje eles são lidos e traduzidos no Ocidente. 

No ano do bicentenário da independência de 1822, um dos mais destacados historiadores do País, Evaldo Cabral de Mello afirma que ainda há muito o que se estudar sobre o período. Em entrevista ao Estadão, o autor de A Outra Independência, clássico com críticas à historiografia hegemônica do Sudeste, afirma que a narrativa histórica ficou restrita aos acontecimentos vividos no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. “A Independência está pouco estudada exatamente por causa do riocentrismo. Todo mundo só ficou na base do Rio, convocação das Cortes, o Dia do Fico, a ida de Dom Pedro para São Paulo, a ida a Minas. Ficou nisso: Rio, São Paulo e Minas. Todo o resto do Brasil foi ignorado.”

Historiador Evaldo Cabral de Mello, mebro da Academia Brasileira de Letras, fez carreira na diplomacia Foto: Leonencio Nossa

  • CONVOCAÇÃO DAS CORTES

Com invasão de Portugal pela França, a família real portuguesa fugiu, em 1808, para o Brasil. Em 1820, um movimento afastou os franceses. As Cortes de Lisboa, formadas por lideranças dessa revolta, obrigaram o retorno de D. João e depois exigiram também a volta de D. Pedro. Mas, a 9 de janeiro de 1822, o príncipe decidiu “ficar” no Rio, como defendiam separatistas brasileiros.

  • IDA DE DOM PEDRO A MINAS E SÃO PAULO EM 1822

Viagens do príncipe regente em busca de apoio político à causa da Independência.

Restauração do quadro'Independência ou Morte', de Pedro Américo, foi feita no próprio Museu do Ipiranga Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO

O movimento oficial da Independência faz agora 200 anos. O senhor personalizou a crítica à História contada apenas a partir da Corte. Quase 20 anos após a publicação de A Outra Independência, o Brasil continua se olhando desta forma?

O livro foi publicado em 2004. Curiosamente, foi o livro a que eu menos me dediquei e que despertou mais interesse, porque é uma coisa da história recente. Ninguém se interessa por guerra holandesa no Brasil. E esse foi sempre o meu tema de predileção. Vai sair até uma segunda edição, porque as pessoas se deram conta de que a história da Independência era contada de maneira muito limitada pelos historiadores que se ocuparam dela – Varnhagen, Oliveira Lima e outros. Todos esses sujeitos que centraram no Rio e que escreveram sobre a Independência têm uma coisa em comum: eram funcionários públicos. Isso é um filão que se esgotou, você não pode contar mais a Independência em termos só de Rio de Janeiro. É normal que coisas fundamentais ocorram nas metrópoles. Mas quando você tem elementos de contestação, como em Pernambuco em 1817 e 1824, é difícil escamotear.

  • VARNHAGEN E OLIVEIRA LIMA

Sempre ligados ao Estado, Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) e Manuel de Oliveira Lima (1867-1928) contaram a história da Independência aos olhos dos poderes econômico e político.

Crianças com o livro comemorativo dos 150 anos da proclamação da Independência do Brasil, 1972 Foto: Acervo/Estadão

O senhor expôs que havia dois projetos de independência: um grupo aderiu ao centralismo na figura de D. Pedro e outro às ideias da Revolução Francesa. Por que os proprietários de terra de Pernambuco aderiram ao imperador?

Mesmo antes de 1824, houve uma retração dos proprietários de terra, dos senhores de engenho. Era o problema dos fantasmas do Haiti. Quer dizer, os sujeitos já viviam isolados nos engenhos com as cavalarias enormes dormindo ao lado. Então o medo começou. As revoluções de 1817 e 1824 foram essencialmente urbanas. Foram feitas por comerciantes, profissionais liberais. Se você for ver a lista, eram todos comerciantes. Gervásio Pinto Ferreira era comerciante e filho de uma família de comerciantes. Quer dizer, era uma elite muito segregada no meio urbano.

  • REVOLUÇÃO DO HAITI (1791-1808)

Caso único de movimento de lideranças negras nas Américas que resultou na abolição da escravatura e na independência. A guerra foi contra a França de Napoleão.

  • GERVÁSIO PIRES FERREIRA (1765-1838)

Comerciante, um dos líderes da Revolução de 1817.

O militar Emiliano Munducuru, retratado por Moisés Patrício, participou na revolução de 1817 e na Confederação do Equador Foto: Companhia das Letras/Pinacoteca do Estado de São Paulo

Mas ela teve um ramo rural no Ceará...

No Crato, houve a Bárbara de Alencar. Havia esse núcleo revolucionário que fez tanto 1817 quanto 1824. Esses camaradas, no fundo, eram uma minoria, mas tinham uma ideia separatista. Eram ao mesmo tempo federalistas. Você vê o projeto da revolução de 17, que prevê uma assembleia de cada uma dessas capitanias – Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco. Alagoas não existia ainda, era comarca de Pernambuco. É um negócio curioso, porque outro dia vi um ex-governador de Alagoas dizer: “Alagoas é o berço da República”. Acontece que Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto chegaram à presidência não por serem alagoanos, mas por serem militares. Alagoas se opôs à revolução de 17. Aí, quando veio a repressão, D. João VI compensou Alagoas dando-lhe a condição de capitania. E vem o cara dizer que Alagoas é o berço da República.

  • BÁRBARA DE ALENCAR (1760-1832)

Matriarca da família que liderou no Ceará as revoltas de 1817 contra a Coroa Portuguesa e de 1824 contra o Império Brasileiro.

Como avalia os paradoxos de 1817? Revolucionários sugeriram trazer Napoleão para Recife.

Raptá-lo, né? Ele já estava preso lá em Santa Helena. Mas aquilo foi loucura. Já pensou o Napoleão no Recife? Isso, eles eram (republicanos). Mas eles não eram muito definidos, se eram separatistas. Havia um grupo pequeno que era separatista e que queria um Nordeste independente – nessa época ninguém falava em Nordeste, o termo começou a ser usado no começo do Século 20. Chamava-se Norte. Desde a descoberta de ouro em Minas o Nordeste foi sendo crescentemente marginalizado.

  • REVOLUÇÃO DE 1817

Movimento em Pernambuco de características republicana e separatista, reprimido por D. João VI.

O Museu Nacional foi fundado por D. João VI e tinha como um dos atrativos o quarto onde dormia o imperador D. Pedro II, no Palácio de São Cristóvão Foto: Marcos Arcoverde/Estadão

O centralismo de poder, criticado pelos revoltosos de 1817 e 1824, perdura no País?

Ah, sim. Apenas a diferença é que o centro hoje é Brasília. Quer dizer, você não tem muito como reclamar, você tem um centro, vamos dizer, que responde a nação toda, enquanto que o Rio de Janeiro era um negócio...

  • CONFEDERAÇÃO DO EQUADOR DE 1824

Movimento iniciado em Pernambuco e que atingiu o Rio Grande do Norte, a Paraíba e o Ceará após a Constituição daquele ano dar amplos poderes a D. Pedro.

Os movimentos da Cabanagem no Pará e da Balaiada no Maranhão foram demandas ainda da Independência?

Ninguém falava desses movimentos. No fundo, eles estavam marginalizados pela Corte no Rio. Estavam estreitamente ligados comercialmente a Portugal, muito mais do que com o Rio de Janeiro ou com o resto do Brasil, e a coisa da aversão aos portugueses também acabou prevalecendo ali.

  • CABANAGEM E BALAIADA

Revoltas populares ocorridas respectivamente no Pará e Amazonas, entre 1835 e 1840, e no Maranhão, 1838 a 1841, que tinham demandas sociais não atendidas pelo processo da Independência.

Exposição do Museu do Ipiranga na estação República do Metrô traz reprodução de obra clássica sobre a Independência do Brasil Foto: Taba Benedicto/Estadão

A questão da escravidão rachou os movimentos nativistas em Pernambuco...

A escravidão estava implantada entre o pessoal do dinheiro. Esse negócio de ser republicano e revolucionário ficou reduzido ao Recife, liberais que tinham se formado em Portugal, e eram uma elite urbana, não tinha nada a ver com a elite rural. É um negócio curioso, você vê, a contestação passa a ser quase que exclusivamente urbana.

Os mais pobres do Recife nunca tiveram espaço nesses movimentos?

O sentimento antiportuguês era sobretudo plebeu. Na cidade, o sujeito que era passado para trás na concorrência pelos empregos pelo português que vinha pobre de Portugal. A quantidade de portugueses que continua vindo para o Brasil mesmo depois da Independência é impressionante. E aqui havia um processo de concorrência que era altamente desfavorável para o mestiço já abrasileirado, vamos dizer assim.

Escravas negras de diferentes nações, entre 1834 e 1839: a partir do século 18, era cada vez mais forte a influência da escravidão no cotidiano brasileiro Foto: Jean-Baptiste Debret/Acervo Estadão

Em 'O Nome e o Sangue', o senhor mostra uma elite tentado recriar o passado.

Ela acreditava naquilo. É um negócio curioso. Depois que escrevi aquele livro, fiquei lembrando que papai era amigo de um sujeito chamado Mário de Albuquerque Melo, um homem de negócios no Recife, rico esnobe. Ele descendia de cristãos novos. Fiquei cá pensando: ele ia ficar espantado que um filho de um amigo fosse escrever a história da empulhação que a família dele inventou no século 17 para esconder a origem.

Foi natural a opção do senhor em focar boa parte de seu trabalho no período colonial no Nordeste, um período bem distante?

Espontânea, instintiva. Eu detesto História recente, porque você não vê com nitidez as coisas. Se fosse europeu, teria sido medievalista, a maneira de me separar mais longe possível da história recente. É muito difícil você escrever um livro que fique, porque vem logo o revisionismo. A história recente é a pátria do revisionismo. Veja o caso da Independência. A história recente é um negócio perigoso. E ninguém estava interessado em Pernambuco. Mas eu não teria motivação para me dedicar a escrever sobre um lugar que não estivesse sentimentalmente ligado.

Por que ser historiador?

Eu fui ser historiador porque o Itamaraty não me ocupava full time, sobretudo quando eu estava no exterior. Tinha a vantagem de fácil acesso a arquivos, sobretudo em Portugal. Quando era menino pequeno ainda fiquei muito impressionado com um livro do José Lins do Rego. Fogo Morto foi o primeiro livro de adulto que eu li, escondido. Meu pai não deixaria porque não era leitura para jovem. Toda minha família tinha sido de engenho, mas eu não. De modo que eu só conhecia da vida rural o que eu via num sítio que meu pai tinha, a 70 km do Recife. Eu tinha 12, 13 anos, ele abriu uma conta para mim numa livraria do Recife para eu chegar lá e pegar o livro que eu quisesse. 

E por que investigar a guerra holandesa?

Eu tinha um primo, José Antônio, 19 anos mais velho, autor de Tempo dos Flamengos. Ele me disse: “Se você quiser se interessar por período holandês tem que ler em holandês”. Depois, entrei para o Itamaraty. Em Genebra, eu fui a uma professora, que era funcionária da ONU. “Eu não quero falar nem escrever holandês, quero apenas ler de preferência holandês do Século 17’. É um holandês mais fácil para a gente, do que o do Século 20. Tenho a impressão que se eu não tivesse sido diplomata não teria sido historiador, não. 

Quais foram suas leituras decisivas?

Ah, tem outra coisa que me levou a ser historiador. Um dia, em Washington, lendo o New York Times, aparece a notícia do lançamento da segunda edição de Méditerranée (O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de Filipe II), de Fernand Braudel. Os livros decisivos na minha vida foram Fogo Morto e o de Braudel. Eu vi em Fogo Morto a vida rural que eu não havia alcançado e, em Braudel, a capacidade de estocagem de conhecimento e de dar sentido a esse conhecimento numa escala impressionante para o ser humano. 

O senhor critica a historiografia que deixou de querer entender o País no geral.

É pelo fato de que eu não pertenço à universidade. Eu saí direto do Braudel para escrever história. A história da universidade é muito particularizada, agarrada a temas, um negócio estranho, não são temas amplos. Repare, não há nenhum grande livro de história no Brasil que tenha vindo da universidade. Você vai me dizer Sérgio Buarque. Ele foi para a Universidade de São Paulo aos cinquenta e tantos anos de idade. A obra dele não deve nada à USP. Aspectos institucionais empobreceram a universidade.

O historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda Foto: Acervo pessoal

Historiadores não gostam de fazer comparações, mas quando a gente pega os trabalhos do senhor sobre a sociedade açucareira e analisa a violência política brasileira no período democrático atual vê que Pernambuco e Alagoas são justamente os estados mais violentos.

Paraíba também. Depois da guerra holandesa, aquele negócio ficou uma bagunça, há um livro meu que eu trato do assunto, chamado A Fronda dos Mazombos, que vai da expulsão dos holandeses até a Guerra dos Mascates. A violência em Pernambuco é um negócio impressionante. Alagoas também, muito mais do que Pernambuco. Havia uma cultura da violência, vamos dizer, embotada na população.

  • GUERRA HOLANDESA (1604-1654)

Com a unificação dos tronos de Portugal e Espanha, em 1570, a Holanda, inimiga de Madri, invadiu o atual Nordeste brasileiro, região produtora de açúcar.

O senhor sempre soube escolher os títulos dos seus livros.

O título é fundamental para você imaginar o que você está fazendo.

O título surge antes de iniciar o livro ou quando está escrevendo?

Não, ao longo da escrita eu vou lá no título. Você tem um tema sem necessariamente ter um título. O Negócio do Brasil surgiu quando eu trabalhava no livro. O título saiu de uma frase do embaixador português em Haia: “Minha missão aqui é o negócio do Brasil, não sei se Portugal terá outro tão importante”.

Chegou a escrever ficção?

Cheguei a escrever um conto passado no engenho do meu avô que eu não conheci, o Engenho Poço, em São Lourenço da Mata. Pra você ver que foi uma coisa... Ou melhor, eu só conheci depois, quando já não era mais engenho. Tinha sido comprado pela usina Tiúma. O título era O Poço do Aleixo, acho que é isso. Eu tinha 14, 15 anos.

O senhor guardou esse conto?

E eu ia guardar conto de adolescente? Não sou de guardar papel.

Depois, o senhor foi atraído definitivamente pela História?

História é bem melhor, você não tem que imaginar, o prato já vem feito.

Mas a obra do senhor é um trabalho de elaboração narrativa.

É exatamente o que falta na historiografia das universidades. As pessoas não querem mais saber de narrar, querem fazer da história uma ciência social à margem, como a antropologia ou a sociologia. A história é, na verdade, uma forma de apreensão da realidade que vem da antiguidade clássica. A sociologia e a antropologia são criações do século 19. Você não pode por a história no mesmo lugar das ciências sociais, porque inclusive a história não é uma ciência. É uma forma de apreensão da realidade como as outras que na antiguidade clássica apareceram. É por isso também que a universidade não se importa, por exemplo, com uma coisa fundamental para o historiador, que é o estilo. Escrevem mal, não sabem escrever, como sociólogos e antropólogos. Os grandes historiadores do passado eram grandes escritores. E isso já na Grécia e em Roma. Ainda hoje eles são lidos e traduzidos no Ocidente. 

No ano do bicentenário da independência de 1822, um dos mais destacados historiadores do País, Evaldo Cabral de Mello afirma que ainda há muito o que se estudar sobre o período. Em entrevista ao Estadão, o autor de A Outra Independência, clássico com críticas à historiografia hegemônica do Sudeste, afirma que a narrativa histórica ficou restrita aos acontecimentos vividos no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. “A Independência está pouco estudada exatamente por causa do riocentrismo. Todo mundo só ficou na base do Rio, convocação das Cortes, o Dia do Fico, a ida de Dom Pedro para São Paulo, a ida a Minas. Ficou nisso: Rio, São Paulo e Minas. Todo o resto do Brasil foi ignorado.”

Historiador Evaldo Cabral de Mello, mebro da Academia Brasileira de Letras, fez carreira na diplomacia Foto: Leonencio Nossa

  • CONVOCAÇÃO DAS CORTES

Com invasão de Portugal pela França, a família real portuguesa fugiu, em 1808, para o Brasil. Em 1820, um movimento afastou os franceses. As Cortes de Lisboa, formadas por lideranças dessa revolta, obrigaram o retorno de D. João e depois exigiram também a volta de D. Pedro. Mas, a 9 de janeiro de 1822, o príncipe decidiu “ficar” no Rio, como defendiam separatistas brasileiros.

  • IDA DE DOM PEDRO A MINAS E SÃO PAULO EM 1822

Viagens do príncipe regente em busca de apoio político à causa da Independência.

Restauração do quadro'Independência ou Morte', de Pedro Américo, foi feita no próprio Museu do Ipiranga Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO

O movimento oficial da Independência faz agora 200 anos. O senhor personalizou a crítica à História contada apenas a partir da Corte. Quase 20 anos após a publicação de A Outra Independência, o Brasil continua se olhando desta forma?

O livro foi publicado em 2004. Curiosamente, foi o livro a que eu menos me dediquei e que despertou mais interesse, porque é uma coisa da história recente. Ninguém se interessa por guerra holandesa no Brasil. E esse foi sempre o meu tema de predileção. Vai sair até uma segunda edição, porque as pessoas se deram conta de que a história da Independência era contada de maneira muito limitada pelos historiadores que se ocuparam dela – Varnhagen, Oliveira Lima e outros. Todos esses sujeitos que centraram no Rio e que escreveram sobre a Independência têm uma coisa em comum: eram funcionários públicos. Isso é um filão que se esgotou, você não pode contar mais a Independência em termos só de Rio de Janeiro. É normal que coisas fundamentais ocorram nas metrópoles. Mas quando você tem elementos de contestação, como em Pernambuco em 1817 e 1824, é difícil escamotear.

  • VARNHAGEN E OLIVEIRA LIMA

Sempre ligados ao Estado, Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) e Manuel de Oliveira Lima (1867-1928) contaram a história da Independência aos olhos dos poderes econômico e político.

Crianças com o livro comemorativo dos 150 anos da proclamação da Independência do Brasil, 1972 Foto: Acervo/Estadão

O senhor expôs que havia dois projetos de independência: um grupo aderiu ao centralismo na figura de D. Pedro e outro às ideias da Revolução Francesa. Por que os proprietários de terra de Pernambuco aderiram ao imperador?

Mesmo antes de 1824, houve uma retração dos proprietários de terra, dos senhores de engenho. Era o problema dos fantasmas do Haiti. Quer dizer, os sujeitos já viviam isolados nos engenhos com as cavalarias enormes dormindo ao lado. Então o medo começou. As revoluções de 1817 e 1824 foram essencialmente urbanas. Foram feitas por comerciantes, profissionais liberais. Se você for ver a lista, eram todos comerciantes. Gervásio Pinto Ferreira era comerciante e filho de uma família de comerciantes. Quer dizer, era uma elite muito segregada no meio urbano.

  • REVOLUÇÃO DO HAITI (1791-1808)

Caso único de movimento de lideranças negras nas Américas que resultou na abolição da escravatura e na independência. A guerra foi contra a França de Napoleão.

  • GERVÁSIO PIRES FERREIRA (1765-1838)

Comerciante, um dos líderes da Revolução de 1817.

O militar Emiliano Munducuru, retratado por Moisés Patrício, participou na revolução de 1817 e na Confederação do Equador Foto: Companhia das Letras/Pinacoteca do Estado de São Paulo

Mas ela teve um ramo rural no Ceará...

No Crato, houve a Bárbara de Alencar. Havia esse núcleo revolucionário que fez tanto 1817 quanto 1824. Esses camaradas, no fundo, eram uma minoria, mas tinham uma ideia separatista. Eram ao mesmo tempo federalistas. Você vê o projeto da revolução de 17, que prevê uma assembleia de cada uma dessas capitanias – Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco. Alagoas não existia ainda, era comarca de Pernambuco. É um negócio curioso, porque outro dia vi um ex-governador de Alagoas dizer: “Alagoas é o berço da República”. Acontece que Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto chegaram à presidência não por serem alagoanos, mas por serem militares. Alagoas se opôs à revolução de 17. Aí, quando veio a repressão, D. João VI compensou Alagoas dando-lhe a condição de capitania. E vem o cara dizer que Alagoas é o berço da República.

  • BÁRBARA DE ALENCAR (1760-1832)

Matriarca da família que liderou no Ceará as revoltas de 1817 contra a Coroa Portuguesa e de 1824 contra o Império Brasileiro.

Como avalia os paradoxos de 1817? Revolucionários sugeriram trazer Napoleão para Recife.

Raptá-lo, né? Ele já estava preso lá em Santa Helena. Mas aquilo foi loucura. Já pensou o Napoleão no Recife? Isso, eles eram (republicanos). Mas eles não eram muito definidos, se eram separatistas. Havia um grupo pequeno que era separatista e que queria um Nordeste independente – nessa época ninguém falava em Nordeste, o termo começou a ser usado no começo do Século 20. Chamava-se Norte. Desde a descoberta de ouro em Minas o Nordeste foi sendo crescentemente marginalizado.

  • REVOLUÇÃO DE 1817

Movimento em Pernambuco de características republicana e separatista, reprimido por D. João VI.

O Museu Nacional foi fundado por D. João VI e tinha como um dos atrativos o quarto onde dormia o imperador D. Pedro II, no Palácio de São Cristóvão Foto: Marcos Arcoverde/Estadão

O centralismo de poder, criticado pelos revoltosos de 1817 e 1824, perdura no País?

Ah, sim. Apenas a diferença é que o centro hoje é Brasília. Quer dizer, você não tem muito como reclamar, você tem um centro, vamos dizer, que responde a nação toda, enquanto que o Rio de Janeiro era um negócio...

  • CONFEDERAÇÃO DO EQUADOR DE 1824

Movimento iniciado em Pernambuco e que atingiu o Rio Grande do Norte, a Paraíba e o Ceará após a Constituição daquele ano dar amplos poderes a D. Pedro.

Os movimentos da Cabanagem no Pará e da Balaiada no Maranhão foram demandas ainda da Independência?

Ninguém falava desses movimentos. No fundo, eles estavam marginalizados pela Corte no Rio. Estavam estreitamente ligados comercialmente a Portugal, muito mais do que com o Rio de Janeiro ou com o resto do Brasil, e a coisa da aversão aos portugueses também acabou prevalecendo ali.

  • CABANAGEM E BALAIADA

Revoltas populares ocorridas respectivamente no Pará e Amazonas, entre 1835 e 1840, e no Maranhão, 1838 a 1841, que tinham demandas sociais não atendidas pelo processo da Independência.

Exposição do Museu do Ipiranga na estação República do Metrô traz reprodução de obra clássica sobre a Independência do Brasil Foto: Taba Benedicto/Estadão

A questão da escravidão rachou os movimentos nativistas em Pernambuco...

A escravidão estava implantada entre o pessoal do dinheiro. Esse negócio de ser republicano e revolucionário ficou reduzido ao Recife, liberais que tinham se formado em Portugal, e eram uma elite urbana, não tinha nada a ver com a elite rural. É um negócio curioso, você vê, a contestação passa a ser quase que exclusivamente urbana.

Os mais pobres do Recife nunca tiveram espaço nesses movimentos?

O sentimento antiportuguês era sobretudo plebeu. Na cidade, o sujeito que era passado para trás na concorrência pelos empregos pelo português que vinha pobre de Portugal. A quantidade de portugueses que continua vindo para o Brasil mesmo depois da Independência é impressionante. E aqui havia um processo de concorrência que era altamente desfavorável para o mestiço já abrasileirado, vamos dizer assim.

Escravas negras de diferentes nações, entre 1834 e 1839: a partir do século 18, era cada vez mais forte a influência da escravidão no cotidiano brasileiro Foto: Jean-Baptiste Debret/Acervo Estadão

Em 'O Nome e o Sangue', o senhor mostra uma elite tentado recriar o passado.

Ela acreditava naquilo. É um negócio curioso. Depois que escrevi aquele livro, fiquei lembrando que papai era amigo de um sujeito chamado Mário de Albuquerque Melo, um homem de negócios no Recife, rico esnobe. Ele descendia de cristãos novos. Fiquei cá pensando: ele ia ficar espantado que um filho de um amigo fosse escrever a história da empulhação que a família dele inventou no século 17 para esconder a origem.

Foi natural a opção do senhor em focar boa parte de seu trabalho no período colonial no Nordeste, um período bem distante?

Espontânea, instintiva. Eu detesto História recente, porque você não vê com nitidez as coisas. Se fosse europeu, teria sido medievalista, a maneira de me separar mais longe possível da história recente. É muito difícil você escrever um livro que fique, porque vem logo o revisionismo. A história recente é a pátria do revisionismo. Veja o caso da Independência. A história recente é um negócio perigoso. E ninguém estava interessado em Pernambuco. Mas eu não teria motivação para me dedicar a escrever sobre um lugar que não estivesse sentimentalmente ligado.

Por que ser historiador?

Eu fui ser historiador porque o Itamaraty não me ocupava full time, sobretudo quando eu estava no exterior. Tinha a vantagem de fácil acesso a arquivos, sobretudo em Portugal. Quando era menino pequeno ainda fiquei muito impressionado com um livro do José Lins do Rego. Fogo Morto foi o primeiro livro de adulto que eu li, escondido. Meu pai não deixaria porque não era leitura para jovem. Toda minha família tinha sido de engenho, mas eu não. De modo que eu só conhecia da vida rural o que eu via num sítio que meu pai tinha, a 70 km do Recife. Eu tinha 12, 13 anos, ele abriu uma conta para mim numa livraria do Recife para eu chegar lá e pegar o livro que eu quisesse. 

E por que investigar a guerra holandesa?

Eu tinha um primo, José Antônio, 19 anos mais velho, autor de Tempo dos Flamengos. Ele me disse: “Se você quiser se interessar por período holandês tem que ler em holandês”. Depois, entrei para o Itamaraty. Em Genebra, eu fui a uma professora, que era funcionária da ONU. “Eu não quero falar nem escrever holandês, quero apenas ler de preferência holandês do Século 17’. É um holandês mais fácil para a gente, do que o do Século 20. Tenho a impressão que se eu não tivesse sido diplomata não teria sido historiador, não. 

Quais foram suas leituras decisivas?

Ah, tem outra coisa que me levou a ser historiador. Um dia, em Washington, lendo o New York Times, aparece a notícia do lançamento da segunda edição de Méditerranée (O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de Filipe II), de Fernand Braudel. Os livros decisivos na minha vida foram Fogo Morto e o de Braudel. Eu vi em Fogo Morto a vida rural que eu não havia alcançado e, em Braudel, a capacidade de estocagem de conhecimento e de dar sentido a esse conhecimento numa escala impressionante para o ser humano. 

O senhor critica a historiografia que deixou de querer entender o País no geral.

É pelo fato de que eu não pertenço à universidade. Eu saí direto do Braudel para escrever história. A história da universidade é muito particularizada, agarrada a temas, um negócio estranho, não são temas amplos. Repare, não há nenhum grande livro de história no Brasil que tenha vindo da universidade. Você vai me dizer Sérgio Buarque. Ele foi para a Universidade de São Paulo aos cinquenta e tantos anos de idade. A obra dele não deve nada à USP. Aspectos institucionais empobreceram a universidade.

O historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda Foto: Acervo pessoal

Historiadores não gostam de fazer comparações, mas quando a gente pega os trabalhos do senhor sobre a sociedade açucareira e analisa a violência política brasileira no período democrático atual vê que Pernambuco e Alagoas são justamente os estados mais violentos.

Paraíba também. Depois da guerra holandesa, aquele negócio ficou uma bagunça, há um livro meu que eu trato do assunto, chamado A Fronda dos Mazombos, que vai da expulsão dos holandeses até a Guerra dos Mascates. A violência em Pernambuco é um negócio impressionante. Alagoas também, muito mais do que Pernambuco. Havia uma cultura da violência, vamos dizer, embotada na população.

  • GUERRA HOLANDESA (1604-1654)

Com a unificação dos tronos de Portugal e Espanha, em 1570, a Holanda, inimiga de Madri, invadiu o atual Nordeste brasileiro, região produtora de açúcar.

O senhor sempre soube escolher os títulos dos seus livros.

O título é fundamental para você imaginar o que você está fazendo.

O título surge antes de iniciar o livro ou quando está escrevendo?

Não, ao longo da escrita eu vou lá no título. Você tem um tema sem necessariamente ter um título. O Negócio do Brasil surgiu quando eu trabalhava no livro. O título saiu de uma frase do embaixador português em Haia: “Minha missão aqui é o negócio do Brasil, não sei se Portugal terá outro tão importante”.

Chegou a escrever ficção?

Cheguei a escrever um conto passado no engenho do meu avô que eu não conheci, o Engenho Poço, em São Lourenço da Mata. Pra você ver que foi uma coisa... Ou melhor, eu só conheci depois, quando já não era mais engenho. Tinha sido comprado pela usina Tiúma. O título era O Poço do Aleixo, acho que é isso. Eu tinha 14, 15 anos.

O senhor guardou esse conto?

E eu ia guardar conto de adolescente? Não sou de guardar papel.

Depois, o senhor foi atraído definitivamente pela História?

História é bem melhor, você não tem que imaginar, o prato já vem feito.

Mas a obra do senhor é um trabalho de elaboração narrativa.

É exatamente o que falta na historiografia das universidades. As pessoas não querem mais saber de narrar, querem fazer da história uma ciência social à margem, como a antropologia ou a sociologia. A história é, na verdade, uma forma de apreensão da realidade que vem da antiguidade clássica. A sociologia e a antropologia são criações do século 19. Você não pode por a história no mesmo lugar das ciências sociais, porque inclusive a história não é uma ciência. É uma forma de apreensão da realidade como as outras que na antiguidade clássica apareceram. É por isso também que a universidade não se importa, por exemplo, com uma coisa fundamental para o historiador, que é o estilo. Escrevem mal, não sabem escrever, como sociólogos e antropólogos. Os grandes historiadores do passado eram grandes escritores. E isso já na Grécia e em Roma. Ainda hoje eles são lidos e traduzidos no Ocidente. 

No ano do bicentenário da independência de 1822, um dos mais destacados historiadores do País, Evaldo Cabral de Mello afirma que ainda há muito o que se estudar sobre o período. Em entrevista ao Estadão, o autor de A Outra Independência, clássico com críticas à historiografia hegemônica do Sudeste, afirma que a narrativa histórica ficou restrita aos acontecimentos vividos no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. “A Independência está pouco estudada exatamente por causa do riocentrismo. Todo mundo só ficou na base do Rio, convocação das Cortes, o Dia do Fico, a ida de Dom Pedro para São Paulo, a ida a Minas. Ficou nisso: Rio, São Paulo e Minas. Todo o resto do Brasil foi ignorado.”

Historiador Evaldo Cabral de Mello, mebro da Academia Brasileira de Letras, fez carreira na diplomacia Foto: Leonencio Nossa

  • CONVOCAÇÃO DAS CORTES

Com invasão de Portugal pela França, a família real portuguesa fugiu, em 1808, para o Brasil. Em 1820, um movimento afastou os franceses. As Cortes de Lisboa, formadas por lideranças dessa revolta, obrigaram o retorno de D. João e depois exigiram também a volta de D. Pedro. Mas, a 9 de janeiro de 1822, o príncipe decidiu “ficar” no Rio, como defendiam separatistas brasileiros.

  • IDA DE DOM PEDRO A MINAS E SÃO PAULO EM 1822

Viagens do príncipe regente em busca de apoio político à causa da Independência.

Restauração do quadro'Independência ou Morte', de Pedro Américo, foi feita no próprio Museu do Ipiranga Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO

O movimento oficial da Independência faz agora 200 anos. O senhor personalizou a crítica à História contada apenas a partir da Corte. Quase 20 anos após a publicação de A Outra Independência, o Brasil continua se olhando desta forma?

O livro foi publicado em 2004. Curiosamente, foi o livro a que eu menos me dediquei e que despertou mais interesse, porque é uma coisa da história recente. Ninguém se interessa por guerra holandesa no Brasil. E esse foi sempre o meu tema de predileção. Vai sair até uma segunda edição, porque as pessoas se deram conta de que a história da Independência era contada de maneira muito limitada pelos historiadores que se ocuparam dela – Varnhagen, Oliveira Lima e outros. Todos esses sujeitos que centraram no Rio e que escreveram sobre a Independência têm uma coisa em comum: eram funcionários públicos. Isso é um filão que se esgotou, você não pode contar mais a Independência em termos só de Rio de Janeiro. É normal que coisas fundamentais ocorram nas metrópoles. Mas quando você tem elementos de contestação, como em Pernambuco em 1817 e 1824, é difícil escamotear.

  • VARNHAGEN E OLIVEIRA LIMA

Sempre ligados ao Estado, Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) e Manuel de Oliveira Lima (1867-1928) contaram a história da Independência aos olhos dos poderes econômico e político.

Crianças com o livro comemorativo dos 150 anos da proclamação da Independência do Brasil, 1972 Foto: Acervo/Estadão

O senhor expôs que havia dois projetos de independência: um grupo aderiu ao centralismo na figura de D. Pedro e outro às ideias da Revolução Francesa. Por que os proprietários de terra de Pernambuco aderiram ao imperador?

Mesmo antes de 1824, houve uma retração dos proprietários de terra, dos senhores de engenho. Era o problema dos fantasmas do Haiti. Quer dizer, os sujeitos já viviam isolados nos engenhos com as cavalarias enormes dormindo ao lado. Então o medo começou. As revoluções de 1817 e 1824 foram essencialmente urbanas. Foram feitas por comerciantes, profissionais liberais. Se você for ver a lista, eram todos comerciantes. Gervásio Pinto Ferreira era comerciante e filho de uma família de comerciantes. Quer dizer, era uma elite muito segregada no meio urbano.

  • REVOLUÇÃO DO HAITI (1791-1808)

Caso único de movimento de lideranças negras nas Américas que resultou na abolição da escravatura e na independência. A guerra foi contra a França de Napoleão.

  • GERVÁSIO PIRES FERREIRA (1765-1838)

Comerciante, um dos líderes da Revolução de 1817.

O militar Emiliano Munducuru, retratado por Moisés Patrício, participou na revolução de 1817 e na Confederação do Equador Foto: Companhia das Letras/Pinacoteca do Estado de São Paulo

Mas ela teve um ramo rural no Ceará...

No Crato, houve a Bárbara de Alencar. Havia esse núcleo revolucionário que fez tanto 1817 quanto 1824. Esses camaradas, no fundo, eram uma minoria, mas tinham uma ideia separatista. Eram ao mesmo tempo federalistas. Você vê o projeto da revolução de 17, que prevê uma assembleia de cada uma dessas capitanias – Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco. Alagoas não existia ainda, era comarca de Pernambuco. É um negócio curioso, porque outro dia vi um ex-governador de Alagoas dizer: “Alagoas é o berço da República”. Acontece que Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto chegaram à presidência não por serem alagoanos, mas por serem militares. Alagoas se opôs à revolução de 17. Aí, quando veio a repressão, D. João VI compensou Alagoas dando-lhe a condição de capitania. E vem o cara dizer que Alagoas é o berço da República.

  • BÁRBARA DE ALENCAR (1760-1832)

Matriarca da família que liderou no Ceará as revoltas de 1817 contra a Coroa Portuguesa e de 1824 contra o Império Brasileiro.

Como avalia os paradoxos de 1817? Revolucionários sugeriram trazer Napoleão para Recife.

Raptá-lo, né? Ele já estava preso lá em Santa Helena. Mas aquilo foi loucura. Já pensou o Napoleão no Recife? Isso, eles eram (republicanos). Mas eles não eram muito definidos, se eram separatistas. Havia um grupo pequeno que era separatista e que queria um Nordeste independente – nessa época ninguém falava em Nordeste, o termo começou a ser usado no começo do Século 20. Chamava-se Norte. Desde a descoberta de ouro em Minas o Nordeste foi sendo crescentemente marginalizado.

  • REVOLUÇÃO DE 1817

Movimento em Pernambuco de características republicana e separatista, reprimido por D. João VI.

O Museu Nacional foi fundado por D. João VI e tinha como um dos atrativos o quarto onde dormia o imperador D. Pedro II, no Palácio de São Cristóvão Foto: Marcos Arcoverde/Estadão

O centralismo de poder, criticado pelos revoltosos de 1817 e 1824, perdura no País?

Ah, sim. Apenas a diferença é que o centro hoje é Brasília. Quer dizer, você não tem muito como reclamar, você tem um centro, vamos dizer, que responde a nação toda, enquanto que o Rio de Janeiro era um negócio...

  • CONFEDERAÇÃO DO EQUADOR DE 1824

Movimento iniciado em Pernambuco e que atingiu o Rio Grande do Norte, a Paraíba e o Ceará após a Constituição daquele ano dar amplos poderes a D. Pedro.

Os movimentos da Cabanagem no Pará e da Balaiada no Maranhão foram demandas ainda da Independência?

Ninguém falava desses movimentos. No fundo, eles estavam marginalizados pela Corte no Rio. Estavam estreitamente ligados comercialmente a Portugal, muito mais do que com o Rio de Janeiro ou com o resto do Brasil, e a coisa da aversão aos portugueses também acabou prevalecendo ali.

  • CABANAGEM E BALAIADA

Revoltas populares ocorridas respectivamente no Pará e Amazonas, entre 1835 e 1840, e no Maranhão, 1838 a 1841, que tinham demandas sociais não atendidas pelo processo da Independência.

Exposição do Museu do Ipiranga na estação República do Metrô traz reprodução de obra clássica sobre a Independência do Brasil Foto: Taba Benedicto/Estadão

A questão da escravidão rachou os movimentos nativistas em Pernambuco...

A escravidão estava implantada entre o pessoal do dinheiro. Esse negócio de ser republicano e revolucionário ficou reduzido ao Recife, liberais que tinham se formado em Portugal, e eram uma elite urbana, não tinha nada a ver com a elite rural. É um negócio curioso, você vê, a contestação passa a ser quase que exclusivamente urbana.

Os mais pobres do Recife nunca tiveram espaço nesses movimentos?

O sentimento antiportuguês era sobretudo plebeu. Na cidade, o sujeito que era passado para trás na concorrência pelos empregos pelo português que vinha pobre de Portugal. A quantidade de portugueses que continua vindo para o Brasil mesmo depois da Independência é impressionante. E aqui havia um processo de concorrência que era altamente desfavorável para o mestiço já abrasileirado, vamos dizer assim.

Escravas negras de diferentes nações, entre 1834 e 1839: a partir do século 18, era cada vez mais forte a influência da escravidão no cotidiano brasileiro Foto: Jean-Baptiste Debret/Acervo Estadão

Em 'O Nome e o Sangue', o senhor mostra uma elite tentado recriar o passado.

Ela acreditava naquilo. É um negócio curioso. Depois que escrevi aquele livro, fiquei lembrando que papai era amigo de um sujeito chamado Mário de Albuquerque Melo, um homem de negócios no Recife, rico esnobe. Ele descendia de cristãos novos. Fiquei cá pensando: ele ia ficar espantado que um filho de um amigo fosse escrever a história da empulhação que a família dele inventou no século 17 para esconder a origem.

Foi natural a opção do senhor em focar boa parte de seu trabalho no período colonial no Nordeste, um período bem distante?

Espontânea, instintiva. Eu detesto História recente, porque você não vê com nitidez as coisas. Se fosse europeu, teria sido medievalista, a maneira de me separar mais longe possível da história recente. É muito difícil você escrever um livro que fique, porque vem logo o revisionismo. A história recente é a pátria do revisionismo. Veja o caso da Independência. A história recente é um negócio perigoso. E ninguém estava interessado em Pernambuco. Mas eu não teria motivação para me dedicar a escrever sobre um lugar que não estivesse sentimentalmente ligado.

Por que ser historiador?

Eu fui ser historiador porque o Itamaraty não me ocupava full time, sobretudo quando eu estava no exterior. Tinha a vantagem de fácil acesso a arquivos, sobretudo em Portugal. Quando era menino pequeno ainda fiquei muito impressionado com um livro do José Lins do Rego. Fogo Morto foi o primeiro livro de adulto que eu li, escondido. Meu pai não deixaria porque não era leitura para jovem. Toda minha família tinha sido de engenho, mas eu não. De modo que eu só conhecia da vida rural o que eu via num sítio que meu pai tinha, a 70 km do Recife. Eu tinha 12, 13 anos, ele abriu uma conta para mim numa livraria do Recife para eu chegar lá e pegar o livro que eu quisesse. 

E por que investigar a guerra holandesa?

Eu tinha um primo, José Antônio, 19 anos mais velho, autor de Tempo dos Flamengos. Ele me disse: “Se você quiser se interessar por período holandês tem que ler em holandês”. Depois, entrei para o Itamaraty. Em Genebra, eu fui a uma professora, que era funcionária da ONU. “Eu não quero falar nem escrever holandês, quero apenas ler de preferência holandês do Século 17’. É um holandês mais fácil para a gente, do que o do Século 20. Tenho a impressão que se eu não tivesse sido diplomata não teria sido historiador, não. 

Quais foram suas leituras decisivas?

Ah, tem outra coisa que me levou a ser historiador. Um dia, em Washington, lendo o New York Times, aparece a notícia do lançamento da segunda edição de Méditerranée (O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de Filipe II), de Fernand Braudel. Os livros decisivos na minha vida foram Fogo Morto e o de Braudel. Eu vi em Fogo Morto a vida rural que eu não havia alcançado e, em Braudel, a capacidade de estocagem de conhecimento e de dar sentido a esse conhecimento numa escala impressionante para o ser humano. 

O senhor critica a historiografia que deixou de querer entender o País no geral.

É pelo fato de que eu não pertenço à universidade. Eu saí direto do Braudel para escrever história. A história da universidade é muito particularizada, agarrada a temas, um negócio estranho, não são temas amplos. Repare, não há nenhum grande livro de história no Brasil que tenha vindo da universidade. Você vai me dizer Sérgio Buarque. Ele foi para a Universidade de São Paulo aos cinquenta e tantos anos de idade. A obra dele não deve nada à USP. Aspectos institucionais empobreceram a universidade.

O historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda Foto: Acervo pessoal

Historiadores não gostam de fazer comparações, mas quando a gente pega os trabalhos do senhor sobre a sociedade açucareira e analisa a violência política brasileira no período democrático atual vê que Pernambuco e Alagoas são justamente os estados mais violentos.

Paraíba também. Depois da guerra holandesa, aquele negócio ficou uma bagunça, há um livro meu que eu trato do assunto, chamado A Fronda dos Mazombos, que vai da expulsão dos holandeses até a Guerra dos Mascates. A violência em Pernambuco é um negócio impressionante. Alagoas também, muito mais do que Pernambuco. Havia uma cultura da violência, vamos dizer, embotada na população.

  • GUERRA HOLANDESA (1604-1654)

Com a unificação dos tronos de Portugal e Espanha, em 1570, a Holanda, inimiga de Madri, invadiu o atual Nordeste brasileiro, região produtora de açúcar.

O senhor sempre soube escolher os títulos dos seus livros.

O título é fundamental para você imaginar o que você está fazendo.

O título surge antes de iniciar o livro ou quando está escrevendo?

Não, ao longo da escrita eu vou lá no título. Você tem um tema sem necessariamente ter um título. O Negócio do Brasil surgiu quando eu trabalhava no livro. O título saiu de uma frase do embaixador português em Haia: “Minha missão aqui é o negócio do Brasil, não sei se Portugal terá outro tão importante”.

Chegou a escrever ficção?

Cheguei a escrever um conto passado no engenho do meu avô que eu não conheci, o Engenho Poço, em São Lourenço da Mata. Pra você ver que foi uma coisa... Ou melhor, eu só conheci depois, quando já não era mais engenho. Tinha sido comprado pela usina Tiúma. O título era O Poço do Aleixo, acho que é isso. Eu tinha 14, 15 anos.

O senhor guardou esse conto?

E eu ia guardar conto de adolescente? Não sou de guardar papel.

Depois, o senhor foi atraído definitivamente pela História?

História é bem melhor, você não tem que imaginar, o prato já vem feito.

Mas a obra do senhor é um trabalho de elaboração narrativa.

É exatamente o que falta na historiografia das universidades. As pessoas não querem mais saber de narrar, querem fazer da história uma ciência social à margem, como a antropologia ou a sociologia. A história é, na verdade, uma forma de apreensão da realidade que vem da antiguidade clássica. A sociologia e a antropologia são criações do século 19. Você não pode por a história no mesmo lugar das ciências sociais, porque inclusive a história não é uma ciência. É uma forma de apreensão da realidade como as outras que na antiguidade clássica apareceram. É por isso também que a universidade não se importa, por exemplo, com uma coisa fundamental para o historiador, que é o estilo. Escrevem mal, não sabem escrever, como sociólogos e antropólogos. Os grandes historiadores do passado eram grandes escritores. E isso já na Grécia e em Roma. Ainda hoje eles são lidos e traduzidos no Ocidente. 

No ano do bicentenário da independência de 1822, um dos mais destacados historiadores do País, Evaldo Cabral de Mello afirma que ainda há muito o que se estudar sobre o período. Em entrevista ao Estadão, o autor de A Outra Independência, clássico com críticas à historiografia hegemônica do Sudeste, afirma que a narrativa histórica ficou restrita aos acontecimentos vividos no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. “A Independência está pouco estudada exatamente por causa do riocentrismo. Todo mundo só ficou na base do Rio, convocação das Cortes, o Dia do Fico, a ida de Dom Pedro para São Paulo, a ida a Minas. Ficou nisso: Rio, São Paulo e Minas. Todo o resto do Brasil foi ignorado.”

Historiador Evaldo Cabral de Mello, mebro da Academia Brasileira de Letras, fez carreira na diplomacia Foto: Leonencio Nossa

  • CONVOCAÇÃO DAS CORTES

Com invasão de Portugal pela França, a família real portuguesa fugiu, em 1808, para o Brasil. Em 1820, um movimento afastou os franceses. As Cortes de Lisboa, formadas por lideranças dessa revolta, obrigaram o retorno de D. João e depois exigiram também a volta de D. Pedro. Mas, a 9 de janeiro de 1822, o príncipe decidiu “ficar” no Rio, como defendiam separatistas brasileiros.

  • IDA DE DOM PEDRO A MINAS E SÃO PAULO EM 1822

Viagens do príncipe regente em busca de apoio político à causa da Independência.

Restauração do quadro'Independência ou Morte', de Pedro Américo, foi feita no próprio Museu do Ipiranga Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO

O movimento oficial da Independência faz agora 200 anos. O senhor personalizou a crítica à História contada apenas a partir da Corte. Quase 20 anos após a publicação de A Outra Independência, o Brasil continua se olhando desta forma?

O livro foi publicado em 2004. Curiosamente, foi o livro a que eu menos me dediquei e que despertou mais interesse, porque é uma coisa da história recente. Ninguém se interessa por guerra holandesa no Brasil. E esse foi sempre o meu tema de predileção. Vai sair até uma segunda edição, porque as pessoas se deram conta de que a história da Independência era contada de maneira muito limitada pelos historiadores que se ocuparam dela – Varnhagen, Oliveira Lima e outros. Todos esses sujeitos que centraram no Rio e que escreveram sobre a Independência têm uma coisa em comum: eram funcionários públicos. Isso é um filão que se esgotou, você não pode contar mais a Independência em termos só de Rio de Janeiro. É normal que coisas fundamentais ocorram nas metrópoles. Mas quando você tem elementos de contestação, como em Pernambuco em 1817 e 1824, é difícil escamotear.

  • VARNHAGEN E OLIVEIRA LIMA

Sempre ligados ao Estado, Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) e Manuel de Oliveira Lima (1867-1928) contaram a história da Independência aos olhos dos poderes econômico e político.

Crianças com o livro comemorativo dos 150 anos da proclamação da Independência do Brasil, 1972 Foto: Acervo/Estadão

O senhor expôs que havia dois projetos de independência: um grupo aderiu ao centralismo na figura de D. Pedro e outro às ideias da Revolução Francesa. Por que os proprietários de terra de Pernambuco aderiram ao imperador?

Mesmo antes de 1824, houve uma retração dos proprietários de terra, dos senhores de engenho. Era o problema dos fantasmas do Haiti. Quer dizer, os sujeitos já viviam isolados nos engenhos com as cavalarias enormes dormindo ao lado. Então o medo começou. As revoluções de 1817 e 1824 foram essencialmente urbanas. Foram feitas por comerciantes, profissionais liberais. Se você for ver a lista, eram todos comerciantes. Gervásio Pinto Ferreira era comerciante e filho de uma família de comerciantes. Quer dizer, era uma elite muito segregada no meio urbano.

  • REVOLUÇÃO DO HAITI (1791-1808)

Caso único de movimento de lideranças negras nas Américas que resultou na abolição da escravatura e na independência. A guerra foi contra a França de Napoleão.

  • GERVÁSIO PIRES FERREIRA (1765-1838)

Comerciante, um dos líderes da Revolução de 1817.

O militar Emiliano Munducuru, retratado por Moisés Patrício, participou na revolução de 1817 e na Confederação do Equador Foto: Companhia das Letras/Pinacoteca do Estado de São Paulo

Mas ela teve um ramo rural no Ceará...

No Crato, houve a Bárbara de Alencar. Havia esse núcleo revolucionário que fez tanto 1817 quanto 1824. Esses camaradas, no fundo, eram uma minoria, mas tinham uma ideia separatista. Eram ao mesmo tempo federalistas. Você vê o projeto da revolução de 17, que prevê uma assembleia de cada uma dessas capitanias – Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco. Alagoas não existia ainda, era comarca de Pernambuco. É um negócio curioso, porque outro dia vi um ex-governador de Alagoas dizer: “Alagoas é o berço da República”. Acontece que Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto chegaram à presidência não por serem alagoanos, mas por serem militares. Alagoas se opôs à revolução de 17. Aí, quando veio a repressão, D. João VI compensou Alagoas dando-lhe a condição de capitania. E vem o cara dizer que Alagoas é o berço da República.

  • BÁRBARA DE ALENCAR (1760-1832)

Matriarca da família que liderou no Ceará as revoltas de 1817 contra a Coroa Portuguesa e de 1824 contra o Império Brasileiro.

Como avalia os paradoxos de 1817? Revolucionários sugeriram trazer Napoleão para Recife.

Raptá-lo, né? Ele já estava preso lá em Santa Helena. Mas aquilo foi loucura. Já pensou o Napoleão no Recife? Isso, eles eram (republicanos). Mas eles não eram muito definidos, se eram separatistas. Havia um grupo pequeno que era separatista e que queria um Nordeste independente – nessa época ninguém falava em Nordeste, o termo começou a ser usado no começo do Século 20. Chamava-se Norte. Desde a descoberta de ouro em Minas o Nordeste foi sendo crescentemente marginalizado.

  • REVOLUÇÃO DE 1817

Movimento em Pernambuco de características republicana e separatista, reprimido por D. João VI.

O Museu Nacional foi fundado por D. João VI e tinha como um dos atrativos o quarto onde dormia o imperador D. Pedro II, no Palácio de São Cristóvão Foto: Marcos Arcoverde/Estadão

O centralismo de poder, criticado pelos revoltosos de 1817 e 1824, perdura no País?

Ah, sim. Apenas a diferença é que o centro hoje é Brasília. Quer dizer, você não tem muito como reclamar, você tem um centro, vamos dizer, que responde a nação toda, enquanto que o Rio de Janeiro era um negócio...

  • CONFEDERAÇÃO DO EQUADOR DE 1824

Movimento iniciado em Pernambuco e que atingiu o Rio Grande do Norte, a Paraíba e o Ceará após a Constituição daquele ano dar amplos poderes a D. Pedro.

Os movimentos da Cabanagem no Pará e da Balaiada no Maranhão foram demandas ainda da Independência?

Ninguém falava desses movimentos. No fundo, eles estavam marginalizados pela Corte no Rio. Estavam estreitamente ligados comercialmente a Portugal, muito mais do que com o Rio de Janeiro ou com o resto do Brasil, e a coisa da aversão aos portugueses também acabou prevalecendo ali.

  • CABANAGEM E BALAIADA

Revoltas populares ocorridas respectivamente no Pará e Amazonas, entre 1835 e 1840, e no Maranhão, 1838 a 1841, que tinham demandas sociais não atendidas pelo processo da Independência.

Exposição do Museu do Ipiranga na estação República do Metrô traz reprodução de obra clássica sobre a Independência do Brasil Foto: Taba Benedicto/Estadão

A questão da escravidão rachou os movimentos nativistas em Pernambuco...

A escravidão estava implantada entre o pessoal do dinheiro. Esse negócio de ser republicano e revolucionário ficou reduzido ao Recife, liberais que tinham se formado em Portugal, e eram uma elite urbana, não tinha nada a ver com a elite rural. É um negócio curioso, você vê, a contestação passa a ser quase que exclusivamente urbana.

Os mais pobres do Recife nunca tiveram espaço nesses movimentos?

O sentimento antiportuguês era sobretudo plebeu. Na cidade, o sujeito que era passado para trás na concorrência pelos empregos pelo português que vinha pobre de Portugal. A quantidade de portugueses que continua vindo para o Brasil mesmo depois da Independência é impressionante. E aqui havia um processo de concorrência que era altamente desfavorável para o mestiço já abrasileirado, vamos dizer assim.

Escravas negras de diferentes nações, entre 1834 e 1839: a partir do século 18, era cada vez mais forte a influência da escravidão no cotidiano brasileiro Foto: Jean-Baptiste Debret/Acervo Estadão

Em 'O Nome e o Sangue', o senhor mostra uma elite tentado recriar o passado.

Ela acreditava naquilo. É um negócio curioso. Depois que escrevi aquele livro, fiquei lembrando que papai era amigo de um sujeito chamado Mário de Albuquerque Melo, um homem de negócios no Recife, rico esnobe. Ele descendia de cristãos novos. Fiquei cá pensando: ele ia ficar espantado que um filho de um amigo fosse escrever a história da empulhação que a família dele inventou no século 17 para esconder a origem.

Foi natural a opção do senhor em focar boa parte de seu trabalho no período colonial no Nordeste, um período bem distante?

Espontânea, instintiva. Eu detesto História recente, porque você não vê com nitidez as coisas. Se fosse europeu, teria sido medievalista, a maneira de me separar mais longe possível da história recente. É muito difícil você escrever um livro que fique, porque vem logo o revisionismo. A história recente é a pátria do revisionismo. Veja o caso da Independência. A história recente é um negócio perigoso. E ninguém estava interessado em Pernambuco. Mas eu não teria motivação para me dedicar a escrever sobre um lugar que não estivesse sentimentalmente ligado.

Por que ser historiador?

Eu fui ser historiador porque o Itamaraty não me ocupava full time, sobretudo quando eu estava no exterior. Tinha a vantagem de fácil acesso a arquivos, sobretudo em Portugal. Quando era menino pequeno ainda fiquei muito impressionado com um livro do José Lins do Rego. Fogo Morto foi o primeiro livro de adulto que eu li, escondido. Meu pai não deixaria porque não era leitura para jovem. Toda minha família tinha sido de engenho, mas eu não. De modo que eu só conhecia da vida rural o que eu via num sítio que meu pai tinha, a 70 km do Recife. Eu tinha 12, 13 anos, ele abriu uma conta para mim numa livraria do Recife para eu chegar lá e pegar o livro que eu quisesse. 

E por que investigar a guerra holandesa?

Eu tinha um primo, José Antônio, 19 anos mais velho, autor de Tempo dos Flamengos. Ele me disse: “Se você quiser se interessar por período holandês tem que ler em holandês”. Depois, entrei para o Itamaraty. Em Genebra, eu fui a uma professora, que era funcionária da ONU. “Eu não quero falar nem escrever holandês, quero apenas ler de preferência holandês do Século 17’. É um holandês mais fácil para a gente, do que o do Século 20. Tenho a impressão que se eu não tivesse sido diplomata não teria sido historiador, não. 

Quais foram suas leituras decisivas?

Ah, tem outra coisa que me levou a ser historiador. Um dia, em Washington, lendo o New York Times, aparece a notícia do lançamento da segunda edição de Méditerranée (O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de Filipe II), de Fernand Braudel. Os livros decisivos na minha vida foram Fogo Morto e o de Braudel. Eu vi em Fogo Morto a vida rural que eu não havia alcançado e, em Braudel, a capacidade de estocagem de conhecimento e de dar sentido a esse conhecimento numa escala impressionante para o ser humano. 

O senhor critica a historiografia que deixou de querer entender o País no geral.

É pelo fato de que eu não pertenço à universidade. Eu saí direto do Braudel para escrever história. A história da universidade é muito particularizada, agarrada a temas, um negócio estranho, não são temas amplos. Repare, não há nenhum grande livro de história no Brasil que tenha vindo da universidade. Você vai me dizer Sérgio Buarque. Ele foi para a Universidade de São Paulo aos cinquenta e tantos anos de idade. A obra dele não deve nada à USP. Aspectos institucionais empobreceram a universidade.

O historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda Foto: Acervo pessoal

Historiadores não gostam de fazer comparações, mas quando a gente pega os trabalhos do senhor sobre a sociedade açucareira e analisa a violência política brasileira no período democrático atual vê que Pernambuco e Alagoas são justamente os estados mais violentos.

Paraíba também. Depois da guerra holandesa, aquele negócio ficou uma bagunça, há um livro meu que eu trato do assunto, chamado A Fronda dos Mazombos, que vai da expulsão dos holandeses até a Guerra dos Mascates. A violência em Pernambuco é um negócio impressionante. Alagoas também, muito mais do que Pernambuco. Havia uma cultura da violência, vamos dizer, embotada na população.

  • GUERRA HOLANDESA (1604-1654)

Com a unificação dos tronos de Portugal e Espanha, em 1570, a Holanda, inimiga de Madri, invadiu o atual Nordeste brasileiro, região produtora de açúcar.

O senhor sempre soube escolher os títulos dos seus livros.

O título é fundamental para você imaginar o que você está fazendo.

O título surge antes de iniciar o livro ou quando está escrevendo?

Não, ao longo da escrita eu vou lá no título. Você tem um tema sem necessariamente ter um título. O Negócio do Brasil surgiu quando eu trabalhava no livro. O título saiu de uma frase do embaixador português em Haia: “Minha missão aqui é o negócio do Brasil, não sei se Portugal terá outro tão importante”.

Chegou a escrever ficção?

Cheguei a escrever um conto passado no engenho do meu avô que eu não conheci, o Engenho Poço, em São Lourenço da Mata. Pra você ver que foi uma coisa... Ou melhor, eu só conheci depois, quando já não era mais engenho. Tinha sido comprado pela usina Tiúma. O título era O Poço do Aleixo, acho que é isso. Eu tinha 14, 15 anos.

O senhor guardou esse conto?

E eu ia guardar conto de adolescente? Não sou de guardar papel.

Depois, o senhor foi atraído definitivamente pela História?

História é bem melhor, você não tem que imaginar, o prato já vem feito.

Mas a obra do senhor é um trabalho de elaboração narrativa.

É exatamente o que falta na historiografia das universidades. As pessoas não querem mais saber de narrar, querem fazer da história uma ciência social à margem, como a antropologia ou a sociologia. A história é, na verdade, uma forma de apreensão da realidade que vem da antiguidade clássica. A sociologia e a antropologia são criações do século 19. Você não pode por a história no mesmo lugar das ciências sociais, porque inclusive a história não é uma ciência. É uma forma de apreensão da realidade como as outras que na antiguidade clássica apareceram. É por isso também que a universidade não se importa, por exemplo, com uma coisa fundamental para o historiador, que é o estilo. Escrevem mal, não sabem escrever, como sociólogos e antropólogos. Os grandes historiadores do passado eram grandes escritores. E isso já na Grécia e em Roma. Ainda hoje eles são lidos e traduzidos no Ocidente. 

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