'Passagens', de Luis Sérgio Krausz, analisa visão judaica a partir da Alemanha


Livro mostra como o encontro com a cultura alemã influenciou o ponto de vista judaico

Por Marcio Seligmann-Silva

Passagens: Literatura Judaico-Alemã entre Gueto e Metrópole

, de Luis S. Krausz, é um livro surpreendente. Ele é um tratado erudito e muito informativo sobre a história da literatura judaico-alemã dos séculos 19 e 20. Mas o leitor também vai perceber que sua própria visão da história do pensamento estará alterada após essa leitura.

Krausz consegue, em seu trabalho, além de apresentar obras-chave de autores fundamentais da literatura dessa tradição, expor traços característicos da visão de mundo judaica. Mostra como ela se altera, estratifica e é tensionada pelo processo histórico dos séculos 19 e 20. Essa tradição judaico-alemã revela, na verdade, o pano de fundo de boa parte dos pensadores modernos. Lendo esse livro, teoremas fundamentais de pensadores como Marx, Freud, Aby Warburg, Walter Benjamin, Lévinas, Derrida e Flusser ficam, se não mais claros, ao menos mais passíveis de aproximação. O autor descortina os dilemas históricos que interpelaram esses autores e tantos outros pensadores e deram o norte para suas preocupações. Eles buscaram respostas para questões que também estão narradas na literatura. Filosofia e literatura, de modo talvez involuntário ao autor desse livro, aparecem como irmãs gêmeas, companheiras de geração nas tentativas de elaborar os mesmos dilemas.

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Em seus 20 capítulos, que são apresentados em ordem cronológica, enfocando de Heine a Agnon, passando, entre outros, por Berthold Auerbach, Aron Bernstein, Leopold Kompert, Karl E. Franzos, Arthur Schnitzler, Alfred Döblin, Joseph Roth, Elias Canetti e Israel J. Singer, o autor cria ao mesmo tempo uma longa narrativa da história judaico-alemã (e europeia), como também em cada capítulo (que pode ser lido de maneira autônoma), abre-nos a porta de entrada para o universo dos autores que aborda.

Eles tratam da situação dos judeus da Europa oriental, que ao longo do século 19 migraram das pequenas cidades orientais para cidades como Berlim e Viena. No século 20 esse percurso se desdobra em direção à América ou a Israel.

O leitmotiv dos romances estudados é essa passagem, o deslocamento e o tornar-se deslocado. Trata-se de uma série de narrativas sobre uma perda originária, comparável à destruição do Segundo Templo, ocorrida em 72. Essa destruição e posterior dispersão determinou a história judaica e sua teologia. A "galut", exílio judaico, conforme essa expressão bíblica, é a palavra-chave dessa história e do livro de Krausz. A "galut" foi reatualizada no século 19 tanto por conta dos "pogroms" (assassinatos em massa dos judeus, ocorridos sobretudo na Rússia) como pelo avanço do progresso. A expansão das linhas de trem reduziu centenas de milhares de judeus, que eram mercadores ambulantes, a desempregados e imigrantes que foram engrossar o "exército industrial de reserva", na expressão de Marx.

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Nos romances analisados, dessa situação de exílio deriva-se tanto as ideias nostálgicas com relação à pátria perdida que, no caso dos judeus orientais (os ostjuden), eram as pequenas aldeias (shtetl, cidadezinha, em ídiche), como também o desejo de inserção na modernidade, seja pela via da assimilação na cultura germânica (com seu acento no refinamento sensorial e abandono da religiosidade), seja pelo socialismo, seja ainda via sionismo. Do ponto de vista do judaísmo tradicional, que era cultivado na Europa oriental, a história era apenas um detalhe que seria superado com a vinda do Messias. Essa redenção é agora, com a Modernidade, secularizada.

Os romances mostram esse percurso de vários modos, quer enfatizando o elemento positivo do progresso e do iluminismo (que teve na Haskalá a sua versão judaica), quer pintando com as cores da nostalgia a vida derivada de uma tradição ética e espiritual milenar na shtetl, visão compartilhada por Martin Buber.

No século 20, os autores, confrontados com o fracasso espetacular do projeto da assimilação judaica à cultura alemã e ocidental, vão cada vez mais ressaltar a figura do judeu como aquele condenado a não ter mais pátria, Heimat, expressão consagrada pelo romantismo alemão. Revelando uma alienação atávica (que também explica a ironia e o humor judaicos), esses romances apontam também para uma situação que transcende a população judaica e apresenta a Modernidade em sua face mais sombria.

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O último capítulo, dedicado ao romance de Agnon que ficou inconcluso, Shira, retrata o percurso de Manfred Herbst em seu exílio em Israel. Ele, um autêntico judeu alemão, recusa integrar-se em seu novo lar e aí permanece como se ainda estivesse na Alemanha. Seus colegas, todos professores de origem também judaico-alemã, vivem em uma redoma, alienados dos conflitos com os árabes, com os ingleses e do morticínio dos judeus que então acontecia na Europa sob o nazismo. Herbst vive um paradoxal "desterro na terra da redenção". O romance ficou inconcluso e não resolve essa situação de Herbst. Na medida em que Krausz termina seu livro com essa obra de Agnon, podemos concluir, nós leitores, que o livro se fecha com um delicado porém enfático non liquet. O "pairar" que caracteriza a vida de Herbst, ao que parece, para o bem e para o mal, tornou-se nossa segunda natureza.

MARCIO SELIGMANN-SILVA É PROFESSOR DE TEORIA LITERÁRIA NA UNICAMP E AUTOR DE A ATUALIDADE DE WALTER BENJAMIN E DE THEODOR W. ADORNO (CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA)

 

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PASSAGENS: LITERATURA JUDAICO-ALEMÃ ENTRE GUETO E METRÓPOLE Autor: Luis S. KrauszEditoras: Edusp/Fapesp(460 págs., R$ 64)

Passagens: Literatura Judaico-Alemã entre Gueto e Metrópole

, de Luis S. Krausz, é um livro surpreendente. Ele é um tratado erudito e muito informativo sobre a história da literatura judaico-alemã dos séculos 19 e 20. Mas o leitor também vai perceber que sua própria visão da história do pensamento estará alterada após essa leitura.

Krausz consegue, em seu trabalho, além de apresentar obras-chave de autores fundamentais da literatura dessa tradição, expor traços característicos da visão de mundo judaica. Mostra como ela se altera, estratifica e é tensionada pelo processo histórico dos séculos 19 e 20. Essa tradição judaico-alemã revela, na verdade, o pano de fundo de boa parte dos pensadores modernos. Lendo esse livro, teoremas fundamentais de pensadores como Marx, Freud, Aby Warburg, Walter Benjamin, Lévinas, Derrida e Flusser ficam, se não mais claros, ao menos mais passíveis de aproximação. O autor descortina os dilemas históricos que interpelaram esses autores e tantos outros pensadores e deram o norte para suas preocupações. Eles buscaram respostas para questões que também estão narradas na literatura. Filosofia e literatura, de modo talvez involuntário ao autor desse livro, aparecem como irmãs gêmeas, companheiras de geração nas tentativas de elaborar os mesmos dilemas.

Em seus 20 capítulos, que são apresentados em ordem cronológica, enfocando de Heine a Agnon, passando, entre outros, por Berthold Auerbach, Aron Bernstein, Leopold Kompert, Karl E. Franzos, Arthur Schnitzler, Alfred Döblin, Joseph Roth, Elias Canetti e Israel J. Singer, o autor cria ao mesmo tempo uma longa narrativa da história judaico-alemã (e europeia), como também em cada capítulo (que pode ser lido de maneira autônoma), abre-nos a porta de entrada para o universo dos autores que aborda.

Eles tratam da situação dos judeus da Europa oriental, que ao longo do século 19 migraram das pequenas cidades orientais para cidades como Berlim e Viena. No século 20 esse percurso se desdobra em direção à América ou a Israel.

O leitmotiv dos romances estudados é essa passagem, o deslocamento e o tornar-se deslocado. Trata-se de uma série de narrativas sobre uma perda originária, comparável à destruição do Segundo Templo, ocorrida em 72. Essa destruição e posterior dispersão determinou a história judaica e sua teologia. A "galut", exílio judaico, conforme essa expressão bíblica, é a palavra-chave dessa história e do livro de Krausz. A "galut" foi reatualizada no século 19 tanto por conta dos "pogroms" (assassinatos em massa dos judeus, ocorridos sobretudo na Rússia) como pelo avanço do progresso. A expansão das linhas de trem reduziu centenas de milhares de judeus, que eram mercadores ambulantes, a desempregados e imigrantes que foram engrossar o "exército industrial de reserva", na expressão de Marx.

Nos romances analisados, dessa situação de exílio deriva-se tanto as ideias nostálgicas com relação à pátria perdida que, no caso dos judeus orientais (os ostjuden), eram as pequenas aldeias (shtetl, cidadezinha, em ídiche), como também o desejo de inserção na modernidade, seja pela via da assimilação na cultura germânica (com seu acento no refinamento sensorial e abandono da religiosidade), seja pelo socialismo, seja ainda via sionismo. Do ponto de vista do judaísmo tradicional, que era cultivado na Europa oriental, a história era apenas um detalhe que seria superado com a vinda do Messias. Essa redenção é agora, com a Modernidade, secularizada.

Os romances mostram esse percurso de vários modos, quer enfatizando o elemento positivo do progresso e do iluminismo (que teve na Haskalá a sua versão judaica), quer pintando com as cores da nostalgia a vida derivada de uma tradição ética e espiritual milenar na shtetl, visão compartilhada por Martin Buber.

No século 20, os autores, confrontados com o fracasso espetacular do projeto da assimilação judaica à cultura alemã e ocidental, vão cada vez mais ressaltar a figura do judeu como aquele condenado a não ter mais pátria, Heimat, expressão consagrada pelo romantismo alemão. Revelando uma alienação atávica (que também explica a ironia e o humor judaicos), esses romances apontam também para uma situação que transcende a população judaica e apresenta a Modernidade em sua face mais sombria.

O último capítulo, dedicado ao romance de Agnon que ficou inconcluso, Shira, retrata o percurso de Manfred Herbst em seu exílio em Israel. Ele, um autêntico judeu alemão, recusa integrar-se em seu novo lar e aí permanece como se ainda estivesse na Alemanha. Seus colegas, todos professores de origem também judaico-alemã, vivem em uma redoma, alienados dos conflitos com os árabes, com os ingleses e do morticínio dos judeus que então acontecia na Europa sob o nazismo. Herbst vive um paradoxal "desterro na terra da redenção". O romance ficou inconcluso e não resolve essa situação de Herbst. Na medida em que Krausz termina seu livro com essa obra de Agnon, podemos concluir, nós leitores, que o livro se fecha com um delicado porém enfático non liquet. O "pairar" que caracteriza a vida de Herbst, ao que parece, para o bem e para o mal, tornou-se nossa segunda natureza.

MARCIO SELIGMANN-SILVA É PROFESSOR DE TEORIA LITERÁRIA NA UNICAMP E AUTOR DE A ATUALIDADE DE WALTER BENJAMIN E DE THEODOR W. ADORNO (CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA)

 

PASSAGENS: LITERATURA JUDAICO-ALEMÃ ENTRE GUETO E METRÓPOLE Autor: Luis S. KrauszEditoras: Edusp/Fapesp(460 págs., R$ 64)

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, de Luis S. Krausz, é um livro surpreendente. Ele é um tratado erudito e muito informativo sobre a história da literatura judaico-alemã dos séculos 19 e 20. Mas o leitor também vai perceber que sua própria visão da história do pensamento estará alterada após essa leitura.

Krausz consegue, em seu trabalho, além de apresentar obras-chave de autores fundamentais da literatura dessa tradição, expor traços característicos da visão de mundo judaica. Mostra como ela se altera, estratifica e é tensionada pelo processo histórico dos séculos 19 e 20. Essa tradição judaico-alemã revela, na verdade, o pano de fundo de boa parte dos pensadores modernos. Lendo esse livro, teoremas fundamentais de pensadores como Marx, Freud, Aby Warburg, Walter Benjamin, Lévinas, Derrida e Flusser ficam, se não mais claros, ao menos mais passíveis de aproximação. O autor descortina os dilemas históricos que interpelaram esses autores e tantos outros pensadores e deram o norte para suas preocupações. Eles buscaram respostas para questões que também estão narradas na literatura. Filosofia e literatura, de modo talvez involuntário ao autor desse livro, aparecem como irmãs gêmeas, companheiras de geração nas tentativas de elaborar os mesmos dilemas.

Em seus 20 capítulos, que são apresentados em ordem cronológica, enfocando de Heine a Agnon, passando, entre outros, por Berthold Auerbach, Aron Bernstein, Leopold Kompert, Karl E. Franzos, Arthur Schnitzler, Alfred Döblin, Joseph Roth, Elias Canetti e Israel J. Singer, o autor cria ao mesmo tempo uma longa narrativa da história judaico-alemã (e europeia), como também em cada capítulo (que pode ser lido de maneira autônoma), abre-nos a porta de entrada para o universo dos autores que aborda.

Eles tratam da situação dos judeus da Europa oriental, que ao longo do século 19 migraram das pequenas cidades orientais para cidades como Berlim e Viena. No século 20 esse percurso se desdobra em direção à América ou a Israel.

O leitmotiv dos romances estudados é essa passagem, o deslocamento e o tornar-se deslocado. Trata-se de uma série de narrativas sobre uma perda originária, comparável à destruição do Segundo Templo, ocorrida em 72. Essa destruição e posterior dispersão determinou a história judaica e sua teologia. A "galut", exílio judaico, conforme essa expressão bíblica, é a palavra-chave dessa história e do livro de Krausz. A "galut" foi reatualizada no século 19 tanto por conta dos "pogroms" (assassinatos em massa dos judeus, ocorridos sobretudo na Rússia) como pelo avanço do progresso. A expansão das linhas de trem reduziu centenas de milhares de judeus, que eram mercadores ambulantes, a desempregados e imigrantes que foram engrossar o "exército industrial de reserva", na expressão de Marx.

Nos romances analisados, dessa situação de exílio deriva-se tanto as ideias nostálgicas com relação à pátria perdida que, no caso dos judeus orientais (os ostjuden), eram as pequenas aldeias (shtetl, cidadezinha, em ídiche), como também o desejo de inserção na modernidade, seja pela via da assimilação na cultura germânica (com seu acento no refinamento sensorial e abandono da religiosidade), seja pelo socialismo, seja ainda via sionismo. Do ponto de vista do judaísmo tradicional, que era cultivado na Europa oriental, a história era apenas um detalhe que seria superado com a vinda do Messias. Essa redenção é agora, com a Modernidade, secularizada.

Os romances mostram esse percurso de vários modos, quer enfatizando o elemento positivo do progresso e do iluminismo (que teve na Haskalá a sua versão judaica), quer pintando com as cores da nostalgia a vida derivada de uma tradição ética e espiritual milenar na shtetl, visão compartilhada por Martin Buber.

No século 20, os autores, confrontados com o fracasso espetacular do projeto da assimilação judaica à cultura alemã e ocidental, vão cada vez mais ressaltar a figura do judeu como aquele condenado a não ter mais pátria, Heimat, expressão consagrada pelo romantismo alemão. Revelando uma alienação atávica (que também explica a ironia e o humor judaicos), esses romances apontam também para uma situação que transcende a população judaica e apresenta a Modernidade em sua face mais sombria.

O último capítulo, dedicado ao romance de Agnon que ficou inconcluso, Shira, retrata o percurso de Manfred Herbst em seu exílio em Israel. Ele, um autêntico judeu alemão, recusa integrar-se em seu novo lar e aí permanece como se ainda estivesse na Alemanha. Seus colegas, todos professores de origem também judaico-alemã, vivem em uma redoma, alienados dos conflitos com os árabes, com os ingleses e do morticínio dos judeus que então acontecia na Europa sob o nazismo. Herbst vive um paradoxal "desterro na terra da redenção". O romance ficou inconcluso e não resolve essa situação de Herbst. Na medida em que Krausz termina seu livro com essa obra de Agnon, podemos concluir, nós leitores, que o livro se fecha com um delicado porém enfático non liquet. O "pairar" que caracteriza a vida de Herbst, ao que parece, para o bem e para o mal, tornou-se nossa segunda natureza.

MARCIO SELIGMANN-SILVA É PROFESSOR DE TEORIA LITERÁRIA NA UNICAMP E AUTOR DE A ATUALIDADE DE WALTER BENJAMIN E DE THEODOR W. ADORNO (CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA)

 

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, de Luis S. Krausz, é um livro surpreendente. Ele é um tratado erudito e muito informativo sobre a história da literatura judaico-alemã dos séculos 19 e 20. Mas o leitor também vai perceber que sua própria visão da história do pensamento estará alterada após essa leitura.

Krausz consegue, em seu trabalho, além de apresentar obras-chave de autores fundamentais da literatura dessa tradição, expor traços característicos da visão de mundo judaica. Mostra como ela se altera, estratifica e é tensionada pelo processo histórico dos séculos 19 e 20. Essa tradição judaico-alemã revela, na verdade, o pano de fundo de boa parte dos pensadores modernos. Lendo esse livro, teoremas fundamentais de pensadores como Marx, Freud, Aby Warburg, Walter Benjamin, Lévinas, Derrida e Flusser ficam, se não mais claros, ao menos mais passíveis de aproximação. O autor descortina os dilemas históricos que interpelaram esses autores e tantos outros pensadores e deram o norte para suas preocupações. Eles buscaram respostas para questões que também estão narradas na literatura. Filosofia e literatura, de modo talvez involuntário ao autor desse livro, aparecem como irmãs gêmeas, companheiras de geração nas tentativas de elaborar os mesmos dilemas.

Em seus 20 capítulos, que são apresentados em ordem cronológica, enfocando de Heine a Agnon, passando, entre outros, por Berthold Auerbach, Aron Bernstein, Leopold Kompert, Karl E. Franzos, Arthur Schnitzler, Alfred Döblin, Joseph Roth, Elias Canetti e Israel J. Singer, o autor cria ao mesmo tempo uma longa narrativa da história judaico-alemã (e europeia), como também em cada capítulo (que pode ser lido de maneira autônoma), abre-nos a porta de entrada para o universo dos autores que aborda.

Eles tratam da situação dos judeus da Europa oriental, que ao longo do século 19 migraram das pequenas cidades orientais para cidades como Berlim e Viena. No século 20 esse percurso se desdobra em direção à América ou a Israel.

O leitmotiv dos romances estudados é essa passagem, o deslocamento e o tornar-se deslocado. Trata-se de uma série de narrativas sobre uma perda originária, comparável à destruição do Segundo Templo, ocorrida em 72. Essa destruição e posterior dispersão determinou a história judaica e sua teologia. A "galut", exílio judaico, conforme essa expressão bíblica, é a palavra-chave dessa história e do livro de Krausz. A "galut" foi reatualizada no século 19 tanto por conta dos "pogroms" (assassinatos em massa dos judeus, ocorridos sobretudo na Rússia) como pelo avanço do progresso. A expansão das linhas de trem reduziu centenas de milhares de judeus, que eram mercadores ambulantes, a desempregados e imigrantes que foram engrossar o "exército industrial de reserva", na expressão de Marx.

Nos romances analisados, dessa situação de exílio deriva-se tanto as ideias nostálgicas com relação à pátria perdida que, no caso dos judeus orientais (os ostjuden), eram as pequenas aldeias (shtetl, cidadezinha, em ídiche), como também o desejo de inserção na modernidade, seja pela via da assimilação na cultura germânica (com seu acento no refinamento sensorial e abandono da religiosidade), seja pelo socialismo, seja ainda via sionismo. Do ponto de vista do judaísmo tradicional, que era cultivado na Europa oriental, a história era apenas um detalhe que seria superado com a vinda do Messias. Essa redenção é agora, com a Modernidade, secularizada.

Os romances mostram esse percurso de vários modos, quer enfatizando o elemento positivo do progresso e do iluminismo (que teve na Haskalá a sua versão judaica), quer pintando com as cores da nostalgia a vida derivada de uma tradição ética e espiritual milenar na shtetl, visão compartilhada por Martin Buber.

No século 20, os autores, confrontados com o fracasso espetacular do projeto da assimilação judaica à cultura alemã e ocidental, vão cada vez mais ressaltar a figura do judeu como aquele condenado a não ter mais pátria, Heimat, expressão consagrada pelo romantismo alemão. Revelando uma alienação atávica (que também explica a ironia e o humor judaicos), esses romances apontam também para uma situação que transcende a população judaica e apresenta a Modernidade em sua face mais sombria.

O último capítulo, dedicado ao romance de Agnon que ficou inconcluso, Shira, retrata o percurso de Manfred Herbst em seu exílio em Israel. Ele, um autêntico judeu alemão, recusa integrar-se em seu novo lar e aí permanece como se ainda estivesse na Alemanha. Seus colegas, todos professores de origem também judaico-alemã, vivem em uma redoma, alienados dos conflitos com os árabes, com os ingleses e do morticínio dos judeus que então acontecia na Europa sob o nazismo. Herbst vive um paradoxal "desterro na terra da redenção". O romance ficou inconcluso e não resolve essa situação de Herbst. Na medida em que Krausz termina seu livro com essa obra de Agnon, podemos concluir, nós leitores, que o livro se fecha com um delicado porém enfático non liquet. O "pairar" que caracteriza a vida de Herbst, ao que parece, para o bem e para o mal, tornou-se nossa segunda natureza.

MARCIO SELIGMANN-SILVA É PROFESSOR DE TEORIA LITERÁRIA NA UNICAMP E AUTOR DE A ATUALIDADE DE WALTER BENJAMIN E DE THEODOR W. ADORNO (CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA)

 

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, de Luis S. Krausz, é um livro surpreendente. Ele é um tratado erudito e muito informativo sobre a história da literatura judaico-alemã dos séculos 19 e 20. Mas o leitor também vai perceber que sua própria visão da história do pensamento estará alterada após essa leitura.

Krausz consegue, em seu trabalho, além de apresentar obras-chave de autores fundamentais da literatura dessa tradição, expor traços característicos da visão de mundo judaica. Mostra como ela se altera, estratifica e é tensionada pelo processo histórico dos séculos 19 e 20. Essa tradição judaico-alemã revela, na verdade, o pano de fundo de boa parte dos pensadores modernos. Lendo esse livro, teoremas fundamentais de pensadores como Marx, Freud, Aby Warburg, Walter Benjamin, Lévinas, Derrida e Flusser ficam, se não mais claros, ao menos mais passíveis de aproximação. O autor descortina os dilemas históricos que interpelaram esses autores e tantos outros pensadores e deram o norte para suas preocupações. Eles buscaram respostas para questões que também estão narradas na literatura. Filosofia e literatura, de modo talvez involuntário ao autor desse livro, aparecem como irmãs gêmeas, companheiras de geração nas tentativas de elaborar os mesmos dilemas.

Em seus 20 capítulos, que são apresentados em ordem cronológica, enfocando de Heine a Agnon, passando, entre outros, por Berthold Auerbach, Aron Bernstein, Leopold Kompert, Karl E. Franzos, Arthur Schnitzler, Alfred Döblin, Joseph Roth, Elias Canetti e Israel J. Singer, o autor cria ao mesmo tempo uma longa narrativa da história judaico-alemã (e europeia), como também em cada capítulo (que pode ser lido de maneira autônoma), abre-nos a porta de entrada para o universo dos autores que aborda.

Eles tratam da situação dos judeus da Europa oriental, que ao longo do século 19 migraram das pequenas cidades orientais para cidades como Berlim e Viena. No século 20 esse percurso se desdobra em direção à América ou a Israel.

O leitmotiv dos romances estudados é essa passagem, o deslocamento e o tornar-se deslocado. Trata-se de uma série de narrativas sobre uma perda originária, comparável à destruição do Segundo Templo, ocorrida em 72. Essa destruição e posterior dispersão determinou a história judaica e sua teologia. A "galut", exílio judaico, conforme essa expressão bíblica, é a palavra-chave dessa história e do livro de Krausz. A "galut" foi reatualizada no século 19 tanto por conta dos "pogroms" (assassinatos em massa dos judeus, ocorridos sobretudo na Rússia) como pelo avanço do progresso. A expansão das linhas de trem reduziu centenas de milhares de judeus, que eram mercadores ambulantes, a desempregados e imigrantes que foram engrossar o "exército industrial de reserva", na expressão de Marx.

Nos romances analisados, dessa situação de exílio deriva-se tanto as ideias nostálgicas com relação à pátria perdida que, no caso dos judeus orientais (os ostjuden), eram as pequenas aldeias (shtetl, cidadezinha, em ídiche), como também o desejo de inserção na modernidade, seja pela via da assimilação na cultura germânica (com seu acento no refinamento sensorial e abandono da religiosidade), seja pelo socialismo, seja ainda via sionismo. Do ponto de vista do judaísmo tradicional, que era cultivado na Europa oriental, a história era apenas um detalhe que seria superado com a vinda do Messias. Essa redenção é agora, com a Modernidade, secularizada.

Os romances mostram esse percurso de vários modos, quer enfatizando o elemento positivo do progresso e do iluminismo (que teve na Haskalá a sua versão judaica), quer pintando com as cores da nostalgia a vida derivada de uma tradição ética e espiritual milenar na shtetl, visão compartilhada por Martin Buber.

No século 20, os autores, confrontados com o fracasso espetacular do projeto da assimilação judaica à cultura alemã e ocidental, vão cada vez mais ressaltar a figura do judeu como aquele condenado a não ter mais pátria, Heimat, expressão consagrada pelo romantismo alemão. Revelando uma alienação atávica (que também explica a ironia e o humor judaicos), esses romances apontam também para uma situação que transcende a população judaica e apresenta a Modernidade em sua face mais sombria.

O último capítulo, dedicado ao romance de Agnon que ficou inconcluso, Shira, retrata o percurso de Manfred Herbst em seu exílio em Israel. Ele, um autêntico judeu alemão, recusa integrar-se em seu novo lar e aí permanece como se ainda estivesse na Alemanha. Seus colegas, todos professores de origem também judaico-alemã, vivem em uma redoma, alienados dos conflitos com os árabes, com os ingleses e do morticínio dos judeus que então acontecia na Europa sob o nazismo. Herbst vive um paradoxal "desterro na terra da redenção". O romance ficou inconcluso e não resolve essa situação de Herbst. Na medida em que Krausz termina seu livro com essa obra de Agnon, podemos concluir, nós leitores, que o livro se fecha com um delicado porém enfático non liquet. O "pairar" que caracteriza a vida de Herbst, ao que parece, para o bem e para o mal, tornou-se nossa segunda natureza.

MARCIO SELIGMANN-SILVA É PROFESSOR DE TEORIA LITERÁRIA NA UNICAMP E AUTOR DE A ATUALIDADE DE WALTER BENJAMIN E DE THEODOR W. ADORNO (CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA)

 

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