Quando certa manhã Paulo Scott acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama sem ideia do que ia lhe acontecer após colocar seu nome na busca do Twitter. É um ritual diário, que ganhou frescor na última quinta-feira, 10, quando se descobriu um dos finalistas do International Booker Prize. Único brasileiro entre 13 concorrentes, ele compete com nomes como Olga Tokarczuk, vencedora do Nobel de Literatura de 2018. “Ver que 'Marrom e Amarelo' é mais bem percebido no exterior mostra como o Brasil não está preparado para se encarar em um espelho”, conta o escritor ao Estadão, em entrevista no dia em que recebeu a notícia da indicação para o prêmio. Publicado em inglês como Phenotypes, o livro foi traduzido por Daniel Hahn e publicado no Reino Unido pela And Other Stories, editora com pouco mais de uma década de funcionamento que aposta em autores fora do eixo do tradicional mercado inglês.
Gaúcho, Scott, poeta conhecido por Ainda Orangotangos, teve seu livro Marrom e Amarelo indicado recentemente no suplemento literário do jornal The New York Times. O reconhecimento, ele diz, é fruto de uma caminhada árdua que autores estrangeiros enfrentam falando sobre o colorismo, tema ocultado na literatura brasileira canônica durante anos, mesmo com escritores como Lima Barreto e Machado de Assis trazendo o tema em suas obras. “O colorismo não é percebido pelas pessoas, mesmo as vitimizadas, por fazer parte de um mar de tabus nacionais, como o racismo e o machismo, que nos condenou a não funcionar como sociedade.” Segundo o escritor, leitores brasileiros têm dificuldade em lidar com literatura que não projeta esperança, solução, redenção. Seus livros anteciparam, no começo dos anos 2000, discussões sobre as agruras sociais que estouraram nos últimos anos, como o premiado Habitante Irreal, que levou Scott às páginas do britânico The Guardian, em 2014, por tratar de temas e tabus caros não só à literatura brasileira, mas ao próprio País. “O estrangeiro lê melhor meus livros porque não está afetado pelos traumas imediatos e coletivos que são elemento cênico essencial e incontornável dos meus livros.”
Marrom e Amarelo narra a história dos irmãos Federico e Lourenço. O primeiro, “gente boa”, é claro; o segundo, é negro. Ambos lidam com a discriminação racial, perante a qual Lourenço tenta agir de maneira natural, ao contrário do irmão, que se torna ativista. De certa forma, Scott antecipou a discussão de Marrom e Amarelo em Voláteis, de 2005, que a Alfaguara acaba de lançar em nova edição. Nele, Ângela encontra Fausto. Como na história de Goethe, ela vende sua alma em um momento de dificuldade; e Fausto, por sua vez, vê na jovem resquícios de um passado de prazeres insanos. Voláteis é um livro de paixões platônicas em um mundo vertiginoso em torno do qual orbitam personagens como a fotógrafa Lucimar e Machadinho, fiel escudeiro de Fausto, que abre o livro em direção à discussão racial. Sobre sua obra e sobre Marrom e Amarelo, Scott falou ao Estadão.'Marrom e Amarelo'foi um sucesso, sendo indicado para o Prêmio Jabuti. Como foi lidar com a escrita e a expectativa dos leitores? Não sei se o termo sucesso se aplica ao Marrom e Amarelo, penso que no lugar se pode aplicar incômodo, apresentado de uma forma que não foi possível contornar. Hoje entendo melhor o quanto a história dos dois irmãos de fenótipos tão diferentes trouxe desconforto. O racismo e o colorismo ainda são tabus imensos para os brasileiros, os de pele clara e os de pele escura.E como surgiu 'Voláteis'? Tinha uma história no meu bairro sobre uma menina que vendia as próprias motos anunciando nos classificados do jornal local e depois dava um jeito de furtá-las para vender as peças a um ferro velho. Ângela é inspirada nessa lenda urbana, funciona como o fio condutor, e acelerador, aos desesperos das outras personagens. Eu queria uma história que não tivesse apenas uma presença protagonista. Mas você falou em repercussão. Voláteis é o meu segundo livro de prosa publicado. Sucedeu a Ainda Orangotangos, que teve uma forte repercussão, mas também recebeu a crítica de que os contos tinham linguagem demasiadamente poética e hermética. Então, com Voláteis eu procurei uma linguagem direta, menos ousada em termos de sintaxe, e uma estrutura mais tradicional – propósito que abandonei de vez nos romances que se seguiram.Você aplicou algum filtro que realçasse as questões identitárias ao escrever? Não. Imagino que não seria muito honesto comigo mesmo fazer esse tipo de mudança. Basicamente o que fiz foi adequar a história às presenças, ao olhar e à sensibilidade condutoras da narrativa, das duas personagens de idade mais avançada: Lucimar e Fausto. Porque hoje entendo melhor o que é o envelhecer e o que pode ser esse lugar, esse longo momento, no quadro geral da existência.
O mundo do crime é um tema que particularmente costuma ser visto com glamour tanto no cinema como na literatura. Como foi criar o seu “mundo do crime” em Voláteis? Como me disse Daniel Galera, que, junto com o Daniel Pellizzari, foi o editor de Ainda Orangotangos, Voláteis é uma novela policial de vampiros porque são pessoas vivendo em situações-limite que acabam vampirizando a existência uma das outras. Quando você olha a história, é possível perceber um clima lisérgico no ar, uma incerteza de pesadelo. Imagino que essa ambientação tenha sido fundamental para caracterizar, sem soluções óbvias ou panfletárias, a condição marginal daquelas quatro pessoas. É como se elas estivessem num palco, e, como em uma peça do Ibsen, não fosse possível encontrar quem delas estivesse ocupando o papel de títere e quem estivesse no papel da presença titereira. Muitas questões sociais do meu bairro e figuras marginais que conheci ou de que tive notícia em Porto Alegre estão na história, mas em momento algum a tensão de romance de suspense é jogada para segundo plano ou se desfaz. Depois do rótulo de escrita complexa que foi atribuído ao Ainda Orangotangos, eu queria mostrar que podia contar uma história pop, bem pulp fiction, brasileira mesmo. Fausto, seu protagonista, não perde as estribeiras, mesmo estando no limite. Em que ele se parece com Paulo Scott? Fausto tem uma frieza que admiro, de uma maneira quase romantizada, em certas pessoas, um controle de quem já se autoiludiu com a vida e depois perdeu para sempre a ilusão. Tenho uma indiferença em relação às coisas e às pessoas que, às vezes, é acionada, na minha cabeça, quando me pergunto o que naquele momento, geralmente um momento crítico, é realmente o mais importante a ser feito. E isso até poderia ser comparado ao comportamento de Fausto. Mas Fausto não é circunstancialmente indiferente, ele é um cara que perdeu a paixão. Eu ainda consigo me manter apaixonado pelas ideias, pelas pessoas próximas, pela vida. Minha relação com a poesia é parte desse processo vital; muito do me manter vivo tem relação com a leitura e a escrita de poesia. Tem uma coisa do meu pai que eu acabei herdando, que é o conseguir funcionar com naturalidade em situações extremas, mas não vejo qualquer ligação entre essa percepção e a composição da personagem Fausto. Posso dizer é que talvez tenha, sim, um pouco de mim em cada uma das quatro personagens. E Machadinho, bem, ele é antessala para o que eu viria a ampliar e problematizar com mais profundidade depois, por meio da personagem Federico, no Marrom e Amarelo.O que você está lendo atualmente? Quais são os seus projetos futuros? O romance que sucederá a Marrom e Amarelo será o Ainda Rondonópolis, um policial de fronteira. Estou cursando o doutorado em Psicologia na Universidade Federal Fluminense, que é uma instituição muito questionadora e bastante aberta às interdisciplinaridades: no projeto que apresentei na seleção, relaciono Direito e Literatura. Tenho lido sobre ética e desigualdade socioeconômica no Brasil. No momento, estou terminando de escrever o Direito Antifascismo Brasileiro, um livro híbrido, uma experiência nova, que sairá pela Companhia das Letras, com edição do Marcelo Ferroni, ainda este ano.