Antes de se tornar a estrela pop do pensamento politicamente incorreto – algo que nunca desejou –, o psicólogo canadense Jordan B. Peterson publicou, em 1999, uma obra-prima extremamente perturbadora: Mapas do Significado – A Arquitetura da Crença. Lançado agora no Brasil pela É Realizações (trad. Augusto Cesar, 695 págs, R$ 164,90), este volumoso tratado seria posteriormente reescrito de forma mais acessível pelo próprio autor naquilo que se tornou um best-seller mundial, 12 Regras Para a Vida – Um Antídoto Contra o Caos. Seu sucesso lhe deu não só notoriedade como também impulsionou ainda mais uma série de polêmicas ocorrida nos meses anteriores, entre elas a oposição que Peterson fez contra a Lei C-16 – uma emenda do primeiro-ministro Justin Trudeau ao Estatuto Canadense de Direitos Humanos que adiciona as pessoas transgêneros aos seus grupos de proteção, com a alegação de que, assim, evitar-se-ia o incentivo ao “discurso de ódio”.
Mas ele não faz isso pela simples razão de querer praticar a discordância inócua. Há uma fundamentação psicológica e metafísica para este tipo de atitude, desenvolvida em minúcias neste Mapas do Significado. Para o “doutor Peterson” – que, independentemente das suas brigas com a academia possuída pela tirania do secularismo, é um exímio pesquisador na sua área, com passagem pelas universidades de Harvard e Toronto, além de um impressionante registro de 10.781 citações, segundo o Google Scholar –, tudo isso é resultado do ser humano não conseguir, como diria Blaise Pascal, suportar o horror de ficar quieto e sozinho em um quarto escuro.
A partir deste princípio existencial tácito, Peterson se apropria com brilhantismo das obras do psicólogo suíço C.G. Jung e do filósofo alemão Friedrich Nietzsche para elaborar a sua “arquitetura da crença”. Ela tem dois pressupostos. O primeiro é que o mundo é um lugar de ação, um palco onde, para termos uma performance minimamente adequada, é fundamental encontrarmos a unidade de significado entre o valor objetivo que nós observamos nas coisas e nas pessoas, e a subjetividade que o interesse pessoal incide sobre os fatos que surgem diante dos nossos olhos; e o segundo é que, apesar dos avanços do progresso tecnológico e filosófico, como a neurociência, a biologia, a fenomenologia e a psicologia comportamental, nós sempre teremos de recorrer à hierarquia intrínseca das histórias para encontrar sentido nas nossas vidas – em especial, as que chamamos mitos.
Os mitos são a única forma de conhecimento do mundo, suspensa na fronteira do que conhecemos e do que não conhecemos, no qual o homem terá três opções simbólicas para agir ao encarar o sofrimento inevitável em qualquer empreendimento humano. Um é o “eterno desconhecido – a natureza, metaforicamente falando, criativa e destrutiva, fonte e destino de todas as coisas determinantes – caráter feminino afetivamente ambivalente (como a ‘mãe’ e eventual ‘devoradora’ de tudo e de todos)”; o segundo é o “eterno conhecido”, que é o contrário do primeiro, pois representa a “cultura e o território definido”, sendo por isso mesmo “tirânico e protetor, disciplinado e restritivo, consequência cumulativa do comportamento heroico ou exploratório”, considerado tipicamente “masculino (em oposição à ‘mãe’ natureza)”. E por fim, “o conhecido eterno – o processo que medeia entre o conhecido e o desconhecido é o cavaleiro que mata o dragão do caos, o herói que substitui desordem e confusão por clareza e certeza, o deus sol que eternamente mata as forças da escuridão, a ‘palavra’ que engendra a criação cósmica”.
A intersecção dessas três representações – e também o detalhe essencial que diferencia a obra de Peterson das outras bobagens esotéricas ou perenialistas que se apropriam da mesma estrutura mítica, como percebemos nos escritos de Joseph Campbell, Frithjof Schuon, René Guénon, Julius Evola, entre outros – é que a solução no encontro com o desconhecido não se dá por meio de axiomas geométricos e racionalistas que usam e abusam do vocábulo filosófico para enganar os incautos. O ponto comum observado por Peterson é que a adaptação ao conhecimento perturbador de quem lida com as trevas só será efetiva se o caos da condição humana for plenamente aceito pelo que ele é de fato: uma forma de recriar a ordem da alma para que esta última restaure a ordem da sociedade.
O próprio Mapas do Significado é o registro idiossincrático desta “descida aos infernos”. Mesmo mantendo a objetividade científica, Peterson se vê como um “herói revolucionário”, que seria um “terceiro modo” de adaptação – a alternativa às ideologias individualistas e coletivistas da decadência pessoal e do fascismo social –, ao incorporar as rupturas na sociedade provocadas pelo caos em uma nova perspectiva que levará o curso histórico do Estado a uma reconfiguração do papel de cada cidadão. É claro que a revolução, aqui, ocorre sempre na vida interior do indivíduo, uma vez que Peterson é um ardoroso opositor tanto do comunismo como do nazismo. Politicamente, ele se classifica como um “liberal clássico”, sempre em defesa do ser humano concreto, jamais dos discursos políticos que o transformam ora em uma abstração conceitual, ora em uma estatística de pesquisa.
Contudo, nada disso acontecerá se o significado não for explorado em um território de desordem onde o caos deve ser aceito como parte integrante (e fundamental) de todos nós. E aqui está o desenlace realmente inquietante de Mapas: o que Peterson propõe é um método ativo para confrontar e resolver o único problema que importa em nossas vidas – o problema do Mal. Todos nós podemos imitar o herói revolucionário – cujo arquétipo próximo da perfeição foi, segundo sua conclusão, Jesus Cristo. Ao seguirmos este exemplo, teremos de enfrentar a tragédia da nossa morte (e dos nossos próximos), lidar com o inesperado que nos angustia – e dali conseguir ressuscitar contra todos os obstáculos. O herói é o verdadeiro criador porque transforma o Mal e o sofrimento naquilo que Platão chamava de “a soberania do Bem”.
Esta é a razão pela qual não se pode reduzir a obra de Jordan Peterson apenas como um libelo contra o “marxismo cultural” ou o pós-modernismo, segundo seus opositores e seus (pasmem) admiradores. Ela é muito mais do que isso. Trata-se de uma meditação profunda sobre as estruturas essenciais da existência humana – e não seria um exagero afirmar que, com Mapas do Significado e 12 Regras Para a Vida, ele tentou realizar algo que, por exemplo, um René Girard quis fazer com a sua teoria do “desejo mimético”: revelar as “coisas ocultas desde a fundação do mundo” que nos atormentam porque não queremos percebê-las na sua beleza e no seu terror.
O combate de Peterson contra os ditames do politicamente correto é a consequência direta de um pensador que busca uma coerência entre sua biografia e seus escritos. Se o caos é o que reina neste mundo, tentar sufocá-lo com leis e regras que minam a liberdade de expressão, mesmo que esta seja arriscada e ofenda uma minoria, criará uma catástrofe sem precedentes para as próximas gerações. Portanto, na recusa de lidar com a incerteza, o ser humano se refugia em qualquer comportamento de manada, no rebanho de gado que melhor lhe convenha – o qual, atualmente, exibe suas piores características, seja nas manifestações da esquerda militante que sufocam o pensamento na academia, seja nas revoltas virtuais dos neointegralistas que assaltaram o poder federal brasileiro.
A escritora norte-americana Flannery O’Connor adorava repetir a famosa frase de São Cirilo de Jerusalém: “O dragão senta-se ao largo da estrada, olhando aqueles que passam. Tenha cuidado para que ele não o devore. Nós caminhamos ao Pai, mas antes é preciso passar pelo dragão.” Tal como a autora de Sangue Sábio, Jordan Peterson nos presenteia com um manual repleto de instruções áridas, sem dúvida, mas sempre eficazes, para agirmos corretamente quando enfim nos depararmos com a serpente do caos. Em um mundo tão insano como nosso, é uma tarefa hercúlea nos libertarmos desses grilhões do espírito que fazem da nossa vida um inferno. Descer até as profundezas deste lugar é para poucos – e retornar íntegro dele é o mistério definitivo para o qual, por enquanto, nem o bom doutor canadense conseguiu encontrar alguma explicação. *MARTIM VASQUES DA CUNHA É AUTOR DOS LIVROS ‘CRISE E UTOPIA – O DILEMA DE THOMAS MORE’ (VIDE EDITORIAL, 2012) E ‘A POEIRA DA GLÓRIA – UMA (INESPERADA) HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA’ (RECORD, 2015); PESQUISADOR PELA FGV