'Pensar um Brasil que não esteja ao lado dos povos indígenas é suicídio', diz Micheliny Verunschk


Seu novo romance, 'O Som do Rugido da Onça', parte da história de uma menina do povo miranha levada para a Alemanha por dois cientistas no século 19

Por Bruna Meneguetti

"Empresta-se para Iñe-e essa voz e essa língua, e mesmo essas letras, todas muito bem-arrumadas, dispostas umas atrás das outras, como um colar de formigas pelo chão, porque agora esse é o único meio disponível. (...) Usa-se essa voz e essa língua porque é com ela que se faz possível ferir melhor”, escreve a pernambucana Micheliny Verunschk em seu novo livro O Som do Rugido da Onça. A narrativa parte da perspectiva de uma menina indígena do povo miranha, que foi levada para a Alemanha por dois cientistas depois de ter sido dada como presente por seu pai no século 19. Antes de ser raptada e após se perder na mata, a garota havia sido “onçada” ainda pequena. Ou seja, fora encontrada ilesa à margem de um rio e resguardada por Tipai uu, uma enorme onça. Para o pai, isso queria dizer que a menina havia se juntado em um pacto com a inimiga: “Ela um dia se transforma e nos devora a todos”. No entanto, não é isso o que ocorre, pois quando o zoólogo Johann Baptist von Spix e o botânico Carl Friedrich von Martius a colocam em uma embarcação junto com plantas, animais e outras sete crianças indígenas, Iñe-e se vê desprotegida.

Aescritora Micheliny Verunschk, autora de 'O Som do Rugido da Onça' Foto: SERGIO CASTRO/ESTADÃO.

Durante a viagem no oceano, a menina se depara com a taxidermia de animais (que soam a ela como um desencantamento), teme que sua alma seja roubada quando gravam seu retrato sobre uma pedra e vê as crianças morrerem até sobrarem apenas ela e o menino Juri, que “teria sucedido ao pai na liderança” de seu povo caso “sua família não tivesse caído em desgraça na guerra contra os miranhas”, e, é claro, caso não tivesse sido trocado por dois machados. Enquanto tenta chamar a onça, Iñe-e “sentia que morria em cada morte que testemunhava” e percebe as crianças atadas aos cientistas, que “sem saber, arrastavam os fios daquelas almas aonde quer que fossem ou estivessem”. O livro de Verunschk, que começou a ser escrito em 2017, é bem-sucedido exatamente no ato de colocar o leitor sob a perspectiva dos sofrimentos e impotência da criança miranha, de forma a trazer humanidade e chamar a atenção para esse episódio até então visto como sem importância ou corriqueiro no passado brasileiro. Segundo a autora, tudo começou justamente quando ela viu as litografias denominadas Miranha e Juri na exposição Coleção Brasiliana Itaú. “Eu já conhecia essas imagens de algum lugar, mas o impacto de vê-las pessoalmente no original foi o mesmo de quando você encontra alguém que já conhece”, explica em entrevista ao Aliás.

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Os meninos indígenas levados por cientista para a Alemanha Foto: Coleção Brasiliana Itaú

Quando questionada sobre o motivo de ter escolhido esse animal para selar o pacto com Iñe-e, a escritora responde que no Brasil há todo “um sistema cultural que gira em torno da onça” e que se faz presente no vestiário feminino, mas também no artesanato; na Banda de Pífanos de Caruaru, “que tem a briga do cachorro com a onça”; no amigo da onça ou quando dizemos que alguém “virou onça”. “Essa figura surge como um signo acessível de poder, de afirmação, de resistência e de luta”, informa. Nesse sentido, associar Iñe-e a uma onça talvez seja a forma de Verunschk de finalmente lhe dar força e voz, embora na maior parte da narrativa o leitor se ressinta pelo fato de uma figura tão forte não ter os meios de impedir as atrocidades do homem branco ou de dar poder a Iñe-e.  Sem dúvidas, a maior marca da obra são as vozes potentes que se apresentam durante a história e que dão margens para o surgimento da narradora da última parte do livro: uma onça cujo rugido atravessa os tempos. Nesse sentido, a capa do livro também merece atenção. A ilustração é do roraimense Jaider Esbell, um artista, escritor e produtor cultural indígena da etnia Makuxi. De acordo com a escritora, em uma de suas mirações durante o uso da ayahuasca, ela viu uma árvore que “estava cheia de onças de várias pelagens”. Dessa forma, a capa se torna a expressão da polifonia na narrativa de Verunschk, atributo também presente no seu livro Nossa Teresa: Vida e Morte de uma Santa Suicida (Patuá, 2014), que ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura em 2015.  O som do rugido da onça é, por fim, o som da leitura deste livro: “Quando tu precisar, me chama e eu chegarei, quente, vinda pelo cheiro do teu suor, e te pego e te levo pra longe do que te amofina. Tu há de me chamar no escuro dentro de tu, me chamando assim, Tai-tipai uu, repetindo assim, Tai-tipai uu, eu-Onça Grande. (...) Tipai uu, eu venho. Venho e te dou o que é teu por direito, tua roupa de onça". Leia trechos da entrevista com a autora ao Aliás

Micheliny, como foi a pesquisa e o ato de se colocar no lugar de Iñe-e para contar essa história?  O ponto de partida inicial da pesquisa foi um livro de uma professora chamadaKaren Macknow Lisboa, A nova Atlântida de Spix e Martius, no qual ela fala rapidamente dessas crianças. Procurei também o livro que os cientistas escreveram a quatro mãos, Viagem pelo Brasil 1817-1820, que é uma das grandes obras que resulta na exposição. Quando eu comecei a escrever esse livro era outro completamente, porque parti de um determinado lugar. Era [no começo] do ponto de vista dos naturalistas e eu já tinha inclusive avançado bastante, mas sempre insatisfeita com o que estava escrevendo. E uma amiga achou alguns documentos [em Munique, Alemanha] que foram importantíssimos. A partir daí, comecei a entender que não era exatamente aquela a história que eu queria contar e joguei fora o que tinha feito. Quando comecei de novo, me deparei com a dificuldade muito real de saber quem era minha narradora. Eu tinha a sensação de que ela fugia de mim; que toda vez que eu tentava me acercar dessa narradora, ela me escapava. E a minha dificuldade eu atribuía ao fato de ela ser uma criança do século 19, de um povo da Amazônia e de ela não falar o português, o nheengatu ou alemão. Ela estava num lugar de silenciamento muito profundo e não adiantava eu querer falar por ela. Eu acho que um dos grandes problemas da literatura é esse falar pelo outro. Eu não acredito em falar pelo outro, acredito em escutar o que o outro tem a dizer. E naquele momento eu não conseguia escutar a minha narradora.Como ocorreu a investigação histórica a partir desse ponto? Eu tive que fazer uma pesquisa exaustiva, mas também não nos moldes clássicos. Tive que subverter essa noção da pesquisa histórica. Então, fui para narradores indígenas e escutar os diferentes povos indígenas — como eles se colocam, o que eles têm a dizer. E me pareceu que para encontrar essa narradora de uma forma mais honesta eu precisaria entrar em um outro mundo, em uma outra lógica e forma de compreensão da vida, não essa na qual eu e vocês estamos inseridas, que é a lógica ocidental e racional. Eu nunca havia experimentado a ayahuasca, nunca havia tomado o chá. Fui numa situação de ritual muitíssimo respeitosa, e o mestre que conduzia o ritual me disse que eu poderia ter duas perguntas para fazer ao chá. Eu perguntei: “Quem é a minha narradora e que relação eu posso estabelecer com ela?”. Por conta dessa aproximação que o chá permitiu, me sinto muito próxima da narradora de forma a dizer que é meu livro mais autobiográfico.

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A obra trabalha muito com a voz: a voz com que Iñe-e nasceu, a voz da menina morta, a voz da onça, a voz do rio e da natureza de modo geral. Inclusive, no começo e no fim a narradora se ressente de pegar emprestada a nossa língua para contar essa história. Por que existem essas diferentes vozes no livro e de que forma elas conversam com o distanciamento que se faz entre o leitor e a narrativa? Eu acredito que na vida somos continuamente atravessados pelas vozes do mundo. E eu acredito que a gente vive realmente imerso nessa polifonia. Algumas pessoas têm o ouvido mais atento e eu acho que o mundo está continuamente respondendo a você, mas não necessariamente com esse modo de interlocução ao qual nos acostumamos. Então, quando eu coloco essas diferentes vozes no som do rugido da onça é porque acredito que é assim que o mundo é. Da mesma forma, acredito que os diferentes tempos se cruzam, se atravessam, se friccionam sempre. E sobre o sentido no qual você pergunta, entre leitor e narrador, essa narradora está ali como um psicopompo, alguém que guia você por um outro mundo, nesse caso o mundo da narrativa. E ela estabelece bem os limites: “você está aí e eu estou aqui, me siga!”.

No começo do livro, você fala do processo de desencantamento dos bichos e Iñe-e se pergunta se a viagem é um processo de desencantamento dela. Já em outro momento, vemos o captor de seu retrato “muito pronto para roubar a sua alma”. Pensando nisso, você acha que a escrita também é um processo de desencantamento? Eu acho que a escrita pode ser. Se eu tivesse escrito aquele primeiro livro que não dava voz a todos esses seres e dava voz apenas aos captores, a escrita serviria, sim, como um instrumento de desencantamento. Mas eu acredito que a escrita, assim como a fala, como a oralidade — e talvez a oralidade ainda mais do que a escrita —, ela tem o poder de reorganizar ou de organizar o mundo a partir do caos, ou de dar outro sentido a um mundo que está extremamente frágil e em dissolução. Nesse sentido, acho que a poesia e a prosa (mas acho que a poesia em maior grau) nos tiram desse estado de desencantamento. Elas nos devolvem a capacidade de resistência e de insurgência. Quando a palavra não serve a isso, é muito triste. 

No final do livro, a narradora relata vários massacres que os povos indígenas sofreram ao longo dos anos, até mesmo durante a pandemia. Qual a importância de falar sobre o tema do seu livro? Esse tema nunca deixou de ser urgente. Com o aprofundamento da crise política no Brasil e a pandemia, esses povos mais do que nunca se veem ameaçados… E a circularidade cruel dessa história de genocídio, de povos que são continuamente dizimados, ela nos diz que não é um assunto para deixar para depois. Que não é um assunto para a gente pensar quando as coisas melhorarem, porque está intrinsecamente ligado à crise que vivemos já há algum tempo. Pensar na transposição das águas sem pensar nos povos e sistemas ecológicos que vão ser afetados, é uma grande estupidez. Pensar um Brasil que não esteja ao lado dos inúmeros povos com suas histórias, cosmologias e necessidades, é suicídio. Também não adianta só pensar. A gente precisa agir. Como agir, não sei dizer, mas acho que a história dá inúmeros exemplos do que deve ser feito e, principalmente, do que não deve ser feito. 

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*Bruna Meneguetti é jornalista e escritora, autora de 'O Último Tiro da Guanabara' (Reformatório) e co-autora de 'Corações de Asfalto' (Patuá)

"Empresta-se para Iñe-e essa voz e essa língua, e mesmo essas letras, todas muito bem-arrumadas, dispostas umas atrás das outras, como um colar de formigas pelo chão, porque agora esse é o único meio disponível. (...) Usa-se essa voz e essa língua porque é com ela que se faz possível ferir melhor”, escreve a pernambucana Micheliny Verunschk em seu novo livro O Som do Rugido da Onça. A narrativa parte da perspectiva de uma menina indígena do povo miranha, que foi levada para a Alemanha por dois cientistas depois de ter sido dada como presente por seu pai no século 19. Antes de ser raptada e após se perder na mata, a garota havia sido “onçada” ainda pequena. Ou seja, fora encontrada ilesa à margem de um rio e resguardada por Tipai uu, uma enorme onça. Para o pai, isso queria dizer que a menina havia se juntado em um pacto com a inimiga: “Ela um dia se transforma e nos devora a todos”. No entanto, não é isso o que ocorre, pois quando o zoólogo Johann Baptist von Spix e o botânico Carl Friedrich von Martius a colocam em uma embarcação junto com plantas, animais e outras sete crianças indígenas, Iñe-e se vê desprotegida.

Aescritora Micheliny Verunschk, autora de 'O Som do Rugido da Onça' Foto: SERGIO CASTRO/ESTADÃO.

Durante a viagem no oceano, a menina se depara com a taxidermia de animais (que soam a ela como um desencantamento), teme que sua alma seja roubada quando gravam seu retrato sobre uma pedra e vê as crianças morrerem até sobrarem apenas ela e o menino Juri, que “teria sucedido ao pai na liderança” de seu povo caso “sua família não tivesse caído em desgraça na guerra contra os miranhas”, e, é claro, caso não tivesse sido trocado por dois machados. Enquanto tenta chamar a onça, Iñe-e “sentia que morria em cada morte que testemunhava” e percebe as crianças atadas aos cientistas, que “sem saber, arrastavam os fios daquelas almas aonde quer que fossem ou estivessem”. O livro de Verunschk, que começou a ser escrito em 2017, é bem-sucedido exatamente no ato de colocar o leitor sob a perspectiva dos sofrimentos e impotência da criança miranha, de forma a trazer humanidade e chamar a atenção para esse episódio até então visto como sem importância ou corriqueiro no passado brasileiro. Segundo a autora, tudo começou justamente quando ela viu as litografias denominadas Miranha e Juri na exposição Coleção Brasiliana Itaú. “Eu já conhecia essas imagens de algum lugar, mas o impacto de vê-las pessoalmente no original foi o mesmo de quando você encontra alguém que já conhece”, explica em entrevista ao Aliás.

Os meninos indígenas levados por cientista para a Alemanha Foto: Coleção Brasiliana Itaú

Quando questionada sobre o motivo de ter escolhido esse animal para selar o pacto com Iñe-e, a escritora responde que no Brasil há todo “um sistema cultural que gira em torno da onça” e que se faz presente no vestiário feminino, mas também no artesanato; na Banda de Pífanos de Caruaru, “que tem a briga do cachorro com a onça”; no amigo da onça ou quando dizemos que alguém “virou onça”. “Essa figura surge como um signo acessível de poder, de afirmação, de resistência e de luta”, informa. Nesse sentido, associar Iñe-e a uma onça talvez seja a forma de Verunschk de finalmente lhe dar força e voz, embora na maior parte da narrativa o leitor se ressinta pelo fato de uma figura tão forte não ter os meios de impedir as atrocidades do homem branco ou de dar poder a Iñe-e.  Sem dúvidas, a maior marca da obra são as vozes potentes que se apresentam durante a história e que dão margens para o surgimento da narradora da última parte do livro: uma onça cujo rugido atravessa os tempos. Nesse sentido, a capa do livro também merece atenção. A ilustração é do roraimense Jaider Esbell, um artista, escritor e produtor cultural indígena da etnia Makuxi. De acordo com a escritora, em uma de suas mirações durante o uso da ayahuasca, ela viu uma árvore que “estava cheia de onças de várias pelagens”. Dessa forma, a capa se torna a expressão da polifonia na narrativa de Verunschk, atributo também presente no seu livro Nossa Teresa: Vida e Morte de uma Santa Suicida (Patuá, 2014), que ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura em 2015.  O som do rugido da onça é, por fim, o som da leitura deste livro: “Quando tu precisar, me chama e eu chegarei, quente, vinda pelo cheiro do teu suor, e te pego e te levo pra longe do que te amofina. Tu há de me chamar no escuro dentro de tu, me chamando assim, Tai-tipai uu, repetindo assim, Tai-tipai uu, eu-Onça Grande. (...) Tipai uu, eu venho. Venho e te dou o que é teu por direito, tua roupa de onça". Leia trechos da entrevista com a autora ao Aliás

Micheliny, como foi a pesquisa e o ato de se colocar no lugar de Iñe-e para contar essa história?  O ponto de partida inicial da pesquisa foi um livro de uma professora chamadaKaren Macknow Lisboa, A nova Atlântida de Spix e Martius, no qual ela fala rapidamente dessas crianças. Procurei também o livro que os cientistas escreveram a quatro mãos, Viagem pelo Brasil 1817-1820, que é uma das grandes obras que resulta na exposição. Quando eu comecei a escrever esse livro era outro completamente, porque parti de um determinado lugar. Era [no começo] do ponto de vista dos naturalistas e eu já tinha inclusive avançado bastante, mas sempre insatisfeita com o que estava escrevendo. E uma amiga achou alguns documentos [em Munique, Alemanha] que foram importantíssimos. A partir daí, comecei a entender que não era exatamente aquela a história que eu queria contar e joguei fora o que tinha feito. Quando comecei de novo, me deparei com a dificuldade muito real de saber quem era minha narradora. Eu tinha a sensação de que ela fugia de mim; que toda vez que eu tentava me acercar dessa narradora, ela me escapava. E a minha dificuldade eu atribuía ao fato de ela ser uma criança do século 19, de um povo da Amazônia e de ela não falar o português, o nheengatu ou alemão. Ela estava num lugar de silenciamento muito profundo e não adiantava eu querer falar por ela. Eu acho que um dos grandes problemas da literatura é esse falar pelo outro. Eu não acredito em falar pelo outro, acredito em escutar o que o outro tem a dizer. E naquele momento eu não conseguia escutar a minha narradora.Como ocorreu a investigação histórica a partir desse ponto? Eu tive que fazer uma pesquisa exaustiva, mas também não nos moldes clássicos. Tive que subverter essa noção da pesquisa histórica. Então, fui para narradores indígenas e escutar os diferentes povos indígenas — como eles se colocam, o que eles têm a dizer. E me pareceu que para encontrar essa narradora de uma forma mais honesta eu precisaria entrar em um outro mundo, em uma outra lógica e forma de compreensão da vida, não essa na qual eu e vocês estamos inseridas, que é a lógica ocidental e racional. Eu nunca havia experimentado a ayahuasca, nunca havia tomado o chá. Fui numa situação de ritual muitíssimo respeitosa, e o mestre que conduzia o ritual me disse que eu poderia ter duas perguntas para fazer ao chá. Eu perguntei: “Quem é a minha narradora e que relação eu posso estabelecer com ela?”. Por conta dessa aproximação que o chá permitiu, me sinto muito próxima da narradora de forma a dizer que é meu livro mais autobiográfico.

A obra trabalha muito com a voz: a voz com que Iñe-e nasceu, a voz da menina morta, a voz da onça, a voz do rio e da natureza de modo geral. Inclusive, no começo e no fim a narradora se ressente de pegar emprestada a nossa língua para contar essa história. Por que existem essas diferentes vozes no livro e de que forma elas conversam com o distanciamento que se faz entre o leitor e a narrativa? Eu acredito que na vida somos continuamente atravessados pelas vozes do mundo. E eu acredito que a gente vive realmente imerso nessa polifonia. Algumas pessoas têm o ouvido mais atento e eu acho que o mundo está continuamente respondendo a você, mas não necessariamente com esse modo de interlocução ao qual nos acostumamos. Então, quando eu coloco essas diferentes vozes no som do rugido da onça é porque acredito que é assim que o mundo é. Da mesma forma, acredito que os diferentes tempos se cruzam, se atravessam, se friccionam sempre. E sobre o sentido no qual você pergunta, entre leitor e narrador, essa narradora está ali como um psicopompo, alguém que guia você por um outro mundo, nesse caso o mundo da narrativa. E ela estabelece bem os limites: “você está aí e eu estou aqui, me siga!”.

No começo do livro, você fala do processo de desencantamento dos bichos e Iñe-e se pergunta se a viagem é um processo de desencantamento dela. Já em outro momento, vemos o captor de seu retrato “muito pronto para roubar a sua alma”. Pensando nisso, você acha que a escrita também é um processo de desencantamento? Eu acho que a escrita pode ser. Se eu tivesse escrito aquele primeiro livro que não dava voz a todos esses seres e dava voz apenas aos captores, a escrita serviria, sim, como um instrumento de desencantamento. Mas eu acredito que a escrita, assim como a fala, como a oralidade — e talvez a oralidade ainda mais do que a escrita —, ela tem o poder de reorganizar ou de organizar o mundo a partir do caos, ou de dar outro sentido a um mundo que está extremamente frágil e em dissolução. Nesse sentido, acho que a poesia e a prosa (mas acho que a poesia em maior grau) nos tiram desse estado de desencantamento. Elas nos devolvem a capacidade de resistência e de insurgência. Quando a palavra não serve a isso, é muito triste. 

No final do livro, a narradora relata vários massacres que os povos indígenas sofreram ao longo dos anos, até mesmo durante a pandemia. Qual a importância de falar sobre o tema do seu livro? Esse tema nunca deixou de ser urgente. Com o aprofundamento da crise política no Brasil e a pandemia, esses povos mais do que nunca se veem ameaçados… E a circularidade cruel dessa história de genocídio, de povos que são continuamente dizimados, ela nos diz que não é um assunto para deixar para depois. Que não é um assunto para a gente pensar quando as coisas melhorarem, porque está intrinsecamente ligado à crise que vivemos já há algum tempo. Pensar na transposição das águas sem pensar nos povos e sistemas ecológicos que vão ser afetados, é uma grande estupidez. Pensar um Brasil que não esteja ao lado dos inúmeros povos com suas histórias, cosmologias e necessidades, é suicídio. Também não adianta só pensar. A gente precisa agir. Como agir, não sei dizer, mas acho que a história dá inúmeros exemplos do que deve ser feito e, principalmente, do que não deve ser feito. 

*Bruna Meneguetti é jornalista e escritora, autora de 'O Último Tiro da Guanabara' (Reformatório) e co-autora de 'Corações de Asfalto' (Patuá)

"Empresta-se para Iñe-e essa voz e essa língua, e mesmo essas letras, todas muito bem-arrumadas, dispostas umas atrás das outras, como um colar de formigas pelo chão, porque agora esse é o único meio disponível. (...) Usa-se essa voz e essa língua porque é com ela que se faz possível ferir melhor”, escreve a pernambucana Micheliny Verunschk em seu novo livro O Som do Rugido da Onça. A narrativa parte da perspectiva de uma menina indígena do povo miranha, que foi levada para a Alemanha por dois cientistas depois de ter sido dada como presente por seu pai no século 19. Antes de ser raptada e após se perder na mata, a garota havia sido “onçada” ainda pequena. Ou seja, fora encontrada ilesa à margem de um rio e resguardada por Tipai uu, uma enorme onça. Para o pai, isso queria dizer que a menina havia se juntado em um pacto com a inimiga: “Ela um dia se transforma e nos devora a todos”. No entanto, não é isso o que ocorre, pois quando o zoólogo Johann Baptist von Spix e o botânico Carl Friedrich von Martius a colocam em uma embarcação junto com plantas, animais e outras sete crianças indígenas, Iñe-e se vê desprotegida.

Aescritora Micheliny Verunschk, autora de 'O Som do Rugido da Onça' Foto: SERGIO CASTRO/ESTADÃO.

Durante a viagem no oceano, a menina se depara com a taxidermia de animais (que soam a ela como um desencantamento), teme que sua alma seja roubada quando gravam seu retrato sobre uma pedra e vê as crianças morrerem até sobrarem apenas ela e o menino Juri, que “teria sucedido ao pai na liderança” de seu povo caso “sua família não tivesse caído em desgraça na guerra contra os miranhas”, e, é claro, caso não tivesse sido trocado por dois machados. Enquanto tenta chamar a onça, Iñe-e “sentia que morria em cada morte que testemunhava” e percebe as crianças atadas aos cientistas, que “sem saber, arrastavam os fios daquelas almas aonde quer que fossem ou estivessem”. O livro de Verunschk, que começou a ser escrito em 2017, é bem-sucedido exatamente no ato de colocar o leitor sob a perspectiva dos sofrimentos e impotência da criança miranha, de forma a trazer humanidade e chamar a atenção para esse episódio até então visto como sem importância ou corriqueiro no passado brasileiro. Segundo a autora, tudo começou justamente quando ela viu as litografias denominadas Miranha e Juri na exposição Coleção Brasiliana Itaú. “Eu já conhecia essas imagens de algum lugar, mas o impacto de vê-las pessoalmente no original foi o mesmo de quando você encontra alguém que já conhece”, explica em entrevista ao Aliás.

Os meninos indígenas levados por cientista para a Alemanha Foto: Coleção Brasiliana Itaú

Quando questionada sobre o motivo de ter escolhido esse animal para selar o pacto com Iñe-e, a escritora responde que no Brasil há todo “um sistema cultural que gira em torno da onça” e que se faz presente no vestiário feminino, mas também no artesanato; na Banda de Pífanos de Caruaru, “que tem a briga do cachorro com a onça”; no amigo da onça ou quando dizemos que alguém “virou onça”. “Essa figura surge como um signo acessível de poder, de afirmação, de resistência e de luta”, informa. Nesse sentido, associar Iñe-e a uma onça talvez seja a forma de Verunschk de finalmente lhe dar força e voz, embora na maior parte da narrativa o leitor se ressinta pelo fato de uma figura tão forte não ter os meios de impedir as atrocidades do homem branco ou de dar poder a Iñe-e.  Sem dúvidas, a maior marca da obra são as vozes potentes que se apresentam durante a história e que dão margens para o surgimento da narradora da última parte do livro: uma onça cujo rugido atravessa os tempos. Nesse sentido, a capa do livro também merece atenção. A ilustração é do roraimense Jaider Esbell, um artista, escritor e produtor cultural indígena da etnia Makuxi. De acordo com a escritora, em uma de suas mirações durante o uso da ayahuasca, ela viu uma árvore que “estava cheia de onças de várias pelagens”. Dessa forma, a capa se torna a expressão da polifonia na narrativa de Verunschk, atributo também presente no seu livro Nossa Teresa: Vida e Morte de uma Santa Suicida (Patuá, 2014), que ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura em 2015.  O som do rugido da onça é, por fim, o som da leitura deste livro: “Quando tu precisar, me chama e eu chegarei, quente, vinda pelo cheiro do teu suor, e te pego e te levo pra longe do que te amofina. Tu há de me chamar no escuro dentro de tu, me chamando assim, Tai-tipai uu, repetindo assim, Tai-tipai uu, eu-Onça Grande. (...) Tipai uu, eu venho. Venho e te dou o que é teu por direito, tua roupa de onça". Leia trechos da entrevista com a autora ao Aliás

Micheliny, como foi a pesquisa e o ato de se colocar no lugar de Iñe-e para contar essa história?  O ponto de partida inicial da pesquisa foi um livro de uma professora chamadaKaren Macknow Lisboa, A nova Atlântida de Spix e Martius, no qual ela fala rapidamente dessas crianças. Procurei também o livro que os cientistas escreveram a quatro mãos, Viagem pelo Brasil 1817-1820, que é uma das grandes obras que resulta na exposição. Quando eu comecei a escrever esse livro era outro completamente, porque parti de um determinado lugar. Era [no começo] do ponto de vista dos naturalistas e eu já tinha inclusive avançado bastante, mas sempre insatisfeita com o que estava escrevendo. E uma amiga achou alguns documentos [em Munique, Alemanha] que foram importantíssimos. A partir daí, comecei a entender que não era exatamente aquela a história que eu queria contar e joguei fora o que tinha feito. Quando comecei de novo, me deparei com a dificuldade muito real de saber quem era minha narradora. Eu tinha a sensação de que ela fugia de mim; que toda vez que eu tentava me acercar dessa narradora, ela me escapava. E a minha dificuldade eu atribuía ao fato de ela ser uma criança do século 19, de um povo da Amazônia e de ela não falar o português, o nheengatu ou alemão. Ela estava num lugar de silenciamento muito profundo e não adiantava eu querer falar por ela. Eu acho que um dos grandes problemas da literatura é esse falar pelo outro. Eu não acredito em falar pelo outro, acredito em escutar o que o outro tem a dizer. E naquele momento eu não conseguia escutar a minha narradora.Como ocorreu a investigação histórica a partir desse ponto? Eu tive que fazer uma pesquisa exaustiva, mas também não nos moldes clássicos. Tive que subverter essa noção da pesquisa histórica. Então, fui para narradores indígenas e escutar os diferentes povos indígenas — como eles se colocam, o que eles têm a dizer. E me pareceu que para encontrar essa narradora de uma forma mais honesta eu precisaria entrar em um outro mundo, em uma outra lógica e forma de compreensão da vida, não essa na qual eu e vocês estamos inseridas, que é a lógica ocidental e racional. Eu nunca havia experimentado a ayahuasca, nunca havia tomado o chá. Fui numa situação de ritual muitíssimo respeitosa, e o mestre que conduzia o ritual me disse que eu poderia ter duas perguntas para fazer ao chá. Eu perguntei: “Quem é a minha narradora e que relação eu posso estabelecer com ela?”. Por conta dessa aproximação que o chá permitiu, me sinto muito próxima da narradora de forma a dizer que é meu livro mais autobiográfico.

A obra trabalha muito com a voz: a voz com que Iñe-e nasceu, a voz da menina morta, a voz da onça, a voz do rio e da natureza de modo geral. Inclusive, no começo e no fim a narradora se ressente de pegar emprestada a nossa língua para contar essa história. Por que existem essas diferentes vozes no livro e de que forma elas conversam com o distanciamento que se faz entre o leitor e a narrativa? Eu acredito que na vida somos continuamente atravessados pelas vozes do mundo. E eu acredito que a gente vive realmente imerso nessa polifonia. Algumas pessoas têm o ouvido mais atento e eu acho que o mundo está continuamente respondendo a você, mas não necessariamente com esse modo de interlocução ao qual nos acostumamos. Então, quando eu coloco essas diferentes vozes no som do rugido da onça é porque acredito que é assim que o mundo é. Da mesma forma, acredito que os diferentes tempos se cruzam, se atravessam, se friccionam sempre. E sobre o sentido no qual você pergunta, entre leitor e narrador, essa narradora está ali como um psicopompo, alguém que guia você por um outro mundo, nesse caso o mundo da narrativa. E ela estabelece bem os limites: “você está aí e eu estou aqui, me siga!”.

No começo do livro, você fala do processo de desencantamento dos bichos e Iñe-e se pergunta se a viagem é um processo de desencantamento dela. Já em outro momento, vemos o captor de seu retrato “muito pronto para roubar a sua alma”. Pensando nisso, você acha que a escrita também é um processo de desencantamento? Eu acho que a escrita pode ser. Se eu tivesse escrito aquele primeiro livro que não dava voz a todos esses seres e dava voz apenas aos captores, a escrita serviria, sim, como um instrumento de desencantamento. Mas eu acredito que a escrita, assim como a fala, como a oralidade — e talvez a oralidade ainda mais do que a escrita —, ela tem o poder de reorganizar ou de organizar o mundo a partir do caos, ou de dar outro sentido a um mundo que está extremamente frágil e em dissolução. Nesse sentido, acho que a poesia e a prosa (mas acho que a poesia em maior grau) nos tiram desse estado de desencantamento. Elas nos devolvem a capacidade de resistência e de insurgência. Quando a palavra não serve a isso, é muito triste. 

No final do livro, a narradora relata vários massacres que os povos indígenas sofreram ao longo dos anos, até mesmo durante a pandemia. Qual a importância de falar sobre o tema do seu livro? Esse tema nunca deixou de ser urgente. Com o aprofundamento da crise política no Brasil e a pandemia, esses povos mais do que nunca se veem ameaçados… E a circularidade cruel dessa história de genocídio, de povos que são continuamente dizimados, ela nos diz que não é um assunto para deixar para depois. Que não é um assunto para a gente pensar quando as coisas melhorarem, porque está intrinsecamente ligado à crise que vivemos já há algum tempo. Pensar na transposição das águas sem pensar nos povos e sistemas ecológicos que vão ser afetados, é uma grande estupidez. Pensar um Brasil que não esteja ao lado dos inúmeros povos com suas histórias, cosmologias e necessidades, é suicídio. Também não adianta só pensar. A gente precisa agir. Como agir, não sei dizer, mas acho que a história dá inúmeros exemplos do que deve ser feito e, principalmente, do que não deve ser feito. 

*Bruna Meneguetti é jornalista e escritora, autora de 'O Último Tiro da Guanabara' (Reformatório) e co-autora de 'Corações de Asfalto' (Patuá)

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