As mudanças vertiginosas da cena política mundial na última década têm dado ensejo a diversas publicações: Como as Democracias Morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt; Como a Democracia Chega ao Fim, de David Runciman; Ruptura: a Crise da Democracia Liberal, de Manuel Castells; Fascismo: Um Alerta, de Madeleine Albright; O Progressista de Ontem e o de Amanhã: Desafios da Democracia Liberal no Mundo Pós-Políticas Identitárias, de Mark Lilla e Berilo Vargas, dentre outros. A despeito do espectro ideológico e dos diagnósticos de cada autor, identifica-se algumas constantes: a crise do modelo liberal, as contradições da globalização, os paradoxos da sociedade da informação e a insuficiência das democracias, tais como foram entendidas até agora.
Nesse quadro, o teórico das tecnologias Evgeny Morozov tem um lugar de destaque, pois apresenta outro elemento-chave dessa mudança de paradigmas: a morte da política como consequência das novas tecnologias. Essas tecnologias baseiam-se sobretudo nos modelos de negócio e na engenharia da informação criada pelo Vale do Silício. Em Big Tech: a Ascensão dos Dados e a Morte da Política, que acaba de ser publicado pela Ubu, com tradução de Claudio Marcondes e orelha de Ronaldo Lemos, o leitor tem um excelente panorama das ideias de Morozov sobre esse fenômeno.
A tese de Morozov é a seguinte: estamos vivendo a cooptação do cidadão pelo indivíduo, do público pelo privado. E essa cooptação produz um esgotamento do sentido comunitário da política. Um “encolhimento de nossa imaginação política” de graves consequências. Esta tese se desdobra em algumas questões. Primeira: as tecnologias se baseiam em sancionar o neoliberalismo como única alternativa econômica existente. Segunda: mesmo os críticos do Vale do Silício recorrem a alternativas neoliberais. Diante disso, a pergunta que fica é: seria possível fazer uma crítica emancipatória, tanto da tecnologia quanto do Vale do Silício e do modelo neoliberal? O livro não pretende responder a esta pergunta, mas apresentar contradições desses modelos informacional e econômico globais.
Depois da série de grandes corporações farmacêuticas (Big Pharma), alimentícias (Big Food), petroleiras (Big Oil), chegamos enfim à dominação dos dados: o Big Data. Trata-se do “capitalismo dadocêntrico” ou do “dataísmo”, a religião dos dados, como a define Yuval Harari, outro autor-chave para a compreensão desses processos emergentes. As tecnologias da informação criaram essa nova era. A mineração de dados e o extrativismo digital estão para o século 21 assim como a prospecção de petróleo e o extrativismo mineral estavam para o século 20.
Depois do extrativismo de recursos naturais, vivemos hoje o extrativismo de dados. As empresas de informação são escavadoras de nossa psique e de nossa privacidade. Todos os seres humanos do planeta se transformaram em “cofres de dados pessoais” a serviço de sistemas inteligentes capazes de comparar e vender informações pessoais no mercado, no atacado ou no varejo. O aquecimento global é um subproduto do capitalismo fóssil da mesma maneira que as fake news são subprodutos do capitalismo digital. A união de ambos produz a morte da política representativa e a inviabilidade de projetos globais, capazes de reverter a catástrofe climática.
Essa nova realidade veio à tona à medida que as grandes empresas e corporações mundiais perceberam uma mina de ouro imaterial: os algoritmos. Os algoritmos descrevem um vasto leque de padrões comportamentais. Se as empresas conseguirem mapear esses padrões, poderão modelar os consumidores (e os eleitores). E os consumidores, por sua vez, passarão a modelar os algoritmos. Para Morozov, essa estrutura não tem nada de tautológica (circular), mas de tanatológica (mortal).
Trata-se da monetização integral da vida. Nossa privacidade, nossa subjetividade, nosso desejos mais recônditos viram mercadorias, compradas e vendidas à revelia de nossa vontade. A granulidade e a rastreabilidade da informação se tornam armas do controle e da “governamentalidade” (Foucault). A liberdade individual se reduz a uma prestação de serviços, inconsciente e involuntária. Cada compartilhamento de nossos momentos de lazer produz o enriquecimento de alguém que não conhecemos.
A privacidade se transformou no maior ativo econômico do século 21. O problema do modelo criado pelo Vale do Silício é o solucionismo. Ao invés de percebermos as estruturas de causas e efeitos dos problemas mundiais e nacionais, optamos pela solução mais simples oferecida pelas empresas de tecnologia. Por mais distintas que sejam empresas como Airbnb, Uber, Facebook, Google, Apple ou Microsoft todas seguem a regra de ouro do solucionismo, dos algoritmos e da desvinculação entre meios e fins. Como diria Agamben, ficou caro governar as causas. Diante disso, a tecnologia e os Estados decidiram governar os efeitos. Para Morozov, essa é uma inversão radical do sentido da política, que sempre foi uma preocupação com as causas e não forma de gestão dos efeitos. A hegemonia do Vale do Silício teria destruído a possibilidade de imaginarmos outros modelos de gestão e de infraestruturas comunicacionais.
Esse tipo de sociedade guiada pela tecnologia produz bem-estar e governabilidade. E quem disse que a eficiência e bem-estar são as essências da política? Diversos coletivos, povos e países podem viver em estado de bem-estar sem ter noção de que medida o seu bem-estar existe apenas às custas do sacrifício e da miséria de milhões. Marshall McLuhan concebeu as tecnologias digitais como um caminho em direção a uma aldeia global, pós-política e pós-capitalista. Uma aldeia de paz. Os resultados do Big Tech para Morozov são assustadores: extinção da privacidade, governabilidade humana integral, uma sociedade de controle global, reticulada e granulada em todas as esferas da vida e do psiquismo humanos. O Big Tech seria apenas um eufemismo para o Big Brother.
O problema dessa filosofia solucionista é que ela não se propõe apenas a funcionar. Ela de fato funciona. A economia compartilhada, a Internet das Coisas, o capitalismo de plataformas, as cidades inteligentes e outros produtos da Inteligência Artificial seriam totalmente reféns desse modelo solucionista. Nesse sentido, seriam incapazes de evitar seus efeitos colaterais. A questão nuclear do livro é: os cidadãos podem reconquistar a soberania popular sobre a tecnologia? Sim. Mas para tanto seria preciso criar um “consenso algorítmico”. O mundo é dominado por uma assimetria epistêmica: a hipervisibilidade do cidadão comum é proporcional à hiperinvisibilidade dos outros agentes. Apenas o consenso sobre os limites de uso dos algoritmos poderia reverter essa condição. Morozov se apresenta ao leitor como progressista radical, crítico do modelo liberal e do solucionismo tecnológico. Essa perspectiva tem prós e contras. Esta obra é essencial para compreendermos a dinâmica promíscua entre finanças, informação, tecnologia e política neste começo do século 21. Contudo, essa ampliação do aspecto disfuncional das tecnologias disruptivas o impede de considerar a tecnologia em sua natureza e em seus aspectos mais amplos. Em certo sentido, toda técnica é uma mediação. E toda mediação simultaneamente afasta e aproxima os humanos de sua capacidade de autodeterminação. Nesse sentido, as tecnologias digitais não são tão distintas das demais tecnologias produzidas pelo sapiens. Ademais, as democracias liberais são consequencialistas, não causais. Se há uma diferença entre consequência e efeito, entre democracia e eficiência, essa diferença é de grau, não de natureza. Afinal, foram as democracias liberais que produziram a ciência experimental. E esta ciência experimental que produziu as tecnologias disruptivas criticadas por Morozov. Se estas tecnologias estão prestes a aniquilar a democracia que as gerou, apenas o futuro pode responder. *RODRIGO PETRONIO É ESCRITOR E FILÓSOFO, PROFESSOR TITULAR DA FAAP, DESENVOLVE PÓS-DOUTORADO NO CENTRO DE TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL (TIDD/PUC-SP)