O dia 23 de janeiro de 2022 marca vinte anos da morte de Pierre Bourdieu, um dos principais sociólogos e educadores dos nossos tempos. Nascido em uma família de camponeses na cidade de Beguin, ao sul de Paris, dedicou sua vida a decifrar os movimentos sociais com uma obra prolífica que tratou de temas essenciais para o debate público, como a necessidade de uma sociologia da sociologia, a desigualdade social como expressão da dominação de classes e a educação vista a partir da teoria da reprodução, em que faz uma crítica do sistema de ensino utilizado em benefício do poder dominante – em tempos de escola sem partido, é possível encontrar tema mais atual? Entre as construções intelectuais mais marcantes de Bourdieu está a visão da educação e da cultura como algo que pudesse ser acumulado pelo indivíduo no decorrer de sua existência, gerando um capital particular que definiria o tipo de trajetória possível a ser percorrida. Na chamada “era do conhecimento”, é uma ideia que permanece atualíssima e, justamente por isso, vale a pena voltarmos a falar sobre Bourdieu agora.
O acúmulo dessas informações que moldam o indivíduo – ideia lapidada no artigo Os Três Estados do Capital Cultura, em 1979 – se daria desde o seu nascimento, passando por todas as etapas de escolarização, convivência familiar, comunitária etc. Cada pessoa, então, forma inconscientemente o seu próprio capital cultural, aprendendo e incorporando o que viu, traduzindo tudo isso para a sua vida na forma de ações práticas. Isso define o comportamento típico de cada pessoa ao longo de sua existência. Sendo este o conceito de habitus do indivíduo, criado por Bourdieu: porque agimos assim ou assado, com brandura ou violência, falando muito ou nos calando? Para o sociólogo e educador francês, o mundo social nada mais é do que a representação daquilo que o indivíduo faz dele mesmo, a partir do que aprendeu e incorporou e da forma como responde aos estímulos do ambiente ao seu redor. Essa representação passa a ser visível, por exemplo, na expressão das preferências musicais e de leitura (ou não leitura), ou ainda na forma pela qual o indivíduo reage às derrotas e vitórias na vida. Em outras palavras, cada um reproduz suas práticas segundo o capital cultural acumulado, já que, para Bourdieu, ninguém pode dar aquilo que não tem.
Tudo vai aparentemente bem para o indivíduo. Mas aí entra em cena a sutileza perceptiva de Bourdieu, que enxergou nesse processo de formação uma disputa pelo poder. Se o sistema educacional é parte da formação do indivíduo, é lá que haverá a tentativa de influência por parte dos ocupantes do poder, com a finalidade de manter sua hegemonia. Essa dinâmica de perpetuação do poder encontra-se na estratégia chamada por Bourdieu de sociodiceia. Já sociopéia, outro termo cunhado pelo francês, é a narrativa sorrateira usada pelo poder estabelecido para legitimar e reproduzir suas ações, princípios e mecanismos da ordem social. Só essa dinâmica da formação do indivíduo e a disputa pelo poder já seriam suficientes para tornar Bourdieu leitura obrigatória nos dias de hoje. Escrevendo na segunda metade do século 20, ele ilumina muito do que acontece na “era da informação”, quando as mentes bem formadas ganham espaço num mercado de trabalho global, enquanto aqueles que ficam à margem se veem ameaçados.
As ideias de Bourdieu iluminam também as batalhas ideológicas em torno da definição dos currículos escolares. No Brasil, a escolha tem sido a de não ensinar os alunos a aprender a pensar, mas, sim, reproduzir conhecimento – uma forma de legitimar o poder vigente. Cortar recursos para pesquisas acadêmicas? Outra forma de legitimar o poder. Afinal, como planejar um futuro diferente sem que haja pesquisa e produção científica no presente? Bourdieu sabia da força que os veículos de comunicação exercem para o esclarecimento da sociedade. Sabia da importância da comunicação. Foi pensando nisso que lançou em 1975 o periódico Procedimentos de Pesquisa em Ciências Sociais, uma revista multidisciplinar que proporcionou à sociologia se relacionar com diversos campos da sociedade. Passados vinte anos, há muito a ser decifrado sobre os conceitos de capital cultural desse intelectual francês que servem de inspiração para a emancipação da frágil educação, sociologia e sociedade brasileira