Eu sou da Terra de Guilgamesh
A vida não nos quis, esta felicidade difícil, nossas dores
nos mastigam pelo caminho, em nossa nudez, a morte estreita nossa vida.
Puxamos nossas sombras como quem rasga as nuvens, como quem arrasta
os ventos para que lancem sua areia em nossas bocas, para nos cegar,
durante o trajeto, choro a canção do caminho,
choro a vida fácil,
a memória que, das colinas, transparece
com a mão pustulenta
e a visão, que parece um povo sem refúgio, descalço, a alvéola
no ar, em cima de todos.
Sou da terra de Guilgamesh,
minha vida é imperfeita, e meu nome na terra está enterrado:
não tenho mão com que acenar, nem língua ou boca com que falar
Caminho com todos os meus pesos,
Lamento as cidades antigas
e as canções cujas pontas se prenderam em galhos secos;
o vento gelado é minha casa
e tudo o que detenho das ruínas do mundo são estas lembranças.
Quiçá o silêncio se pronuncie
Combates a ti mesmo à noite, e de dia
te levantas para encostar as lembranças num canto.
Onde te extraviaste? E como o tempo te conduziu
tão devagar? Pastoreavas uma vida
que não te pertencia, a janela fechada, a névoa
envolvendo todo o espaço sobre o rio,
a água a escorrer lentamente, e a noite,
dentro de ti, chega de dia, e te desesperas de verdade;
vês a conduta do mundo, já ninguém a compra
por um centavo: vês o que já foi, o que
sucedeu, o que passou e passará, a fumaça...
Em seguida, retornas para dentro de ti mesmo, pois quiçá
a palavra então te ocorra, e quiçá o silêncio se pronuncie
Os dias são cães
Os dias eram cães, e caminhavam por nossa estrada,
latindo contra passantes como nós, correndo
hoje, aqui, e roubando a nossa comida;
continuamos, pois, perplexos diante das memórias que,
de longe, tal e qual miragens, despontam.
Pus-me a pereseguir a vida
Já não penso, a vida me ignora,
Caminho na direção da minha mão, da minha boca,
caminho daqui para lá,
eu, que sempre conheci a alma, vejo
seus entrelaços, e sempre que as memórias somem
eu de novo as encontro, eu que já não
penso, a boca fechada, observando
ao longe o rio, sua água corrente,
madeiras flutuando, e sobre elas aves
construindo, em sonhos, seus ninhos;
porém eu, que sempre penso no que
já esqueci, a vida me amarrava
com uma linha, eu a perseguir as lembranças,
daqui, dali, mas sempre que as encontro
as perco, e me ponho a perseguir a vida.