Precursor da literatura marginal, Antonio Carlos de Brito, o Cacaso, tem poesia reunida


Há anos esgotada no mercado editorial, obra resgata o legado de um dos maiores trovadores do amor no Brasil

Por Matheus Lopes Quirino

Um hiponga dos trópicos. Cabeludo, óculos de aro metálico com lentes grossas arredondadas. Jeans azul Lee, camisa de linho, uma pasta surrada de couro estufada de papéis sempre o acompanhava. Aos seus pés, ponto de fuga para os prepotentes, pasmem: sandálias franciscanas devidamente acolchoadas por meias brancas, do tipo soquete. Esse era o visual de Antônio Carlos de Brito, o Cacaso.

Antonio Carlos de Brito, o poeta Cacaso, no trem Rio-São Paulo Foto: Jaime Schwartz/Companhia das Letras

Nada catedrático, Cacaso foi professor de Literatura Brasileira na PUC do Rio de Janeiro durante uma década. De 1975 a 1985, não era difícil trombar com o aéreo mestre pelos corredores da universidade na Gávea, rodeado de alunos. Um teórico que despejava artigos em jornais e revistas prestigiosos, como Opinião e Movimento, Cacaso não fazia a linha do acadêmico sisudo, embora fosse um intelectual fino, professor titular de Teoria Literária. No fim da vida, ele preferiu compor. Gravou com alguns dos maiores nomes da MPB em um período de ouro para o gênero — falemos disso mais para frente. Chico Alvim, contemporâneo de Cacaso, pinça duas palavras de seu acróstico sentimental para definir a amizade com o “professor”, alcunha dada a ele pelos companheiros de mimeógrafo: sentimento e perfídia — que virou ensaio e está incluso na edição recém-lançada pela Companhia das Letras, Poesia Completa. Sentimento refere-se não a sentimentalismo, que não tinha espaço na poesia do mineiro de Uberaba. Cacaso falava de amor mesmo.  No posfácio de Clara Alvim, na primeira edição de Beijo na Boca (1975), ela expõe com clareza uma das temáticas preferidas do autor: “A poética fundamental de Beijo na Boca é a não escolha face à impossibilidade de opção — entre amores, entre dois poemas. Fiquem as duas namoradas, o passado não se ultrapasse, fique mais de um estilo; sobreponham-se e sucessivamente briguem entre si”, afirma a escritora. Publicado pela editora Brasiliense dois anos antes de sua morte, em 1985, Beijo na Boca e outros poemas só ganhou novos ares em 2002, com um livro aveludado em tecido vermelho, uma edição caprichada com encartes, sucesso de uma parceria entre a editora 7 Letras e a extinta Cosac & Naify: chamava-se Lero Lero, uma antologia dos livros de poemas de Cacaso com acréscimo de inéditos. Edição esgotadíssima, e constantemente procurada. Exemplares em sebos chegavam a custar R$ 500. E em 2012 a Cosac & Naify lançou em edição de bolso de Lero Lero, que novamente se esgotou.

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Esgotar livro de poesia, no Brasil, tratando-se de um poeta “menor” com as devidas aspas é uma proeza só para os grandes. Cacaso volta agora em Poesia Completa, e mostra a que veio. 

Ainda sobre Beijo na Boca, compêndio tão bem fechado quanto gauche sobre uma temática constantemente esgarçada em matéria de poesia: o amor. Cacaso faz troça dele, como sofre! Apaixona-se, tórrido, de ficar em estado febril e reúne suas conclusões em sacadas ligeiras, em que o prosaico pula e bamboleia aquele certo nariz em pé da uma poesia idílica e tórrida, tão bem encerado em poemas de dor de cotovelo e paixão pelos homens apaixonados, como vemos em:

RÉ MENOR

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Fazendo versinho Querendo carinho 

Cacaso vai no miúdo, na contramão das paixões lascivas, amores absolutos e outras grandiloquências. Ele mistura casos, namoradas, amantes, aventuras, aforismos, reminiscências, tira sarro. Beijo na Boca, um dos livros de Lero Lero, é um apanhado de esperança na época em que o homem urbano, já cansado, deixava de ser embalado pelo que havia sobrado da bossa, já imerso nos anos de chumbo.  Cacaso era um escritor compulsivo, que alimentava, voraz, cadernos de anotações, dos quais saíram inéditos que engordam a seleta do volume Poesia Completa. São achados tardios, organizados por Heloísa Jahn. Além de poemas, letras e desenhos, a edição conta com ensaios assinados por amigos do poeta, como os professores Roberto Schwarz, Heloísa Buarque de Hollanda, Vilma Arêas e dos poetas Mariano Marovatto e Francisco Alvim, o Chico, grande parceiro em vida.  Seguindo a ordem cronológica das primeiras publicações artesanais de um poeta que ainda não era Cacaso — ele assinou Antônio Carlos de Brito até 1978, no livro Na Corda Bamba,—, passando por desenhos, poemas inéditos e letras de música, Poesia Completa resgata o legado de um dos maiores trovadores do amor que viveu sob nossos tristes trópicos. Cacaso, injustamente apagado do panteão poético, por ser da escola Marginal (como Ana Cristina César, Chacal, Charles) embora ladeie o poeta Manuel Bandeira, “É da família de Bandeira”, define Chico Alvim, “Cuja linguagem é sem artifícios”. Ele vai direto ao ponto, como vemos em:

JURA

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minha boca sopra no vento: eu te amo eu te amo uma navalha corta em dois meu coração

HAPPY END

o meu amor e eu nascemos um para o outro agora só falta em nos apresente

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Dois de seus poemas mais conhecidos, Jura e Happy End são citações corriqueiras nas telas, quase meio século depois da morre do poeta. Cacaso tem coro virtual puxado não só por apreciadores e contemporâneos de sua obra, como por jovens que recém-descobriram sua poesia, seja por fotocópias de exemplares de biblioteca de Lero Lero, ou agora pelo conteúdo da nova edição.  Um poeta de multidões, Cacaso era arroz de festa. Estava sempre engatado com incontáveis projetos, morreu com vários deles em curso–entre eles o roteiro do filme que faria sobre Canudos. Fazia amigos com facilidade, era querido por escribas (embora existisse uma benigna perfídia entre alguns) e seus alunos da PUC.  Com o mimeógrafo, antes mesmo da colaboração com jornais, Cacaso espalhou sua palavra rapidamente pelas folhas perfumadas pelo cheiro de álcool e tinta que escorriam dos precários aparelhos. Ficou conhecido pelos livros Mar de Mineiro e Grupo Escolar, além das cópias clandestinas que passavam de mão em mão, para apresentar a quem se interessasse uma nova geração de poetas. Estourou mesmo com Beijo na Boca, de 1975, mesmo ano em que a Editora Brasiliense lançou, sob a batuta de Heloísa Buarque de Hollanda, a antologia 26 Poetas Hoje, uma coletânea que reuniu os nomes mais importantes da poesia marginal.  O Rio de Janeiro estava cheio desses jovens marginais. O termo, que provoca polêmica ainda hoje, refere-se a como era feita a distribuição e propagação das obras do período, muitas delas mimeografadas em velocidade recorde, em pequenas tiragens, panfletos e no boca-boca infestavam universidades junto aos diários estudantis e manifestos contra a ditadura militar. Tomando distância do Concretismo, que reverberava em São Paulo, e dialogando com as entrelinhas, sobretudo, autores da Geração Mimeógrafo, como Chacal e Ana Cristina César, eles não eram aceitos logo de cara pelo circuito do cânone literário. Portanto, estavam à margem do metiê.  Teriam eles antecipado a cultura do hype, do imediatismo das redes, se autopublicando com mimeógrafos e fazendo sucesso. Tanto que, cedo ou tarde, entraram para os catálogos das editoras, não sem arranjar desafetos com críticos ortodoxos e professores pardais de literatura, que se prostravam aos pés do cânone, do hermético. Cacaso, que já estava bem estabelecido na Academia, trouxe a Poesia Marginal para discussão em sala de aula. De fala mansa, simpatia e eloquência, Antônio Carlos de Brito buscava um sentido para além da arte, como também um sustento por ela. Tinha o salário da PUC, mas boa parte do orçamento vinha das letras que compunha para grandes nomes como Tom Jobim e João Donato.  Considerado um dos dez maiores poetas da música brasileira pelo jornal The New York Times, Cacaso foi parceiro de artistas de primeiro porte, como Edu Lobo, Djavan, Francis Hime, entre tantos outros. “Sua poesia tinha muito do poema-minuto do Oswald de Andrade, de irreverência, humor, lírica e ao mesmo tempo ácida, especialmente em sua segunda fase poética, na década de 1970. Em suas letras havia aquela preocupação de retratar um Brasil um tanto quanto desconhecido do grande público urbano”, definiu o crítico musical Euclides Amaral.  Falando de música, Chico Alvim ainda completa “[Bandeira e Cacaso] têm um ouvido extraordinário para as modulações da língua e daí escreveram a favor da correnteza e quase nunca a contrapelo”, define Alvim. “Ele queria trazer à luz do dia os podres da conivência literária, que o exasperavam, queria acertar no amor, queria dar seu depoimento sobre o Brasil, queria vencer e, sem dúvida nenhuma queria ganhar dinheiro com o seu trabalho”, escreve Roberto Schwarz. Como lembra o amigo Chico Alvim, que ouviu de Cacaso que ora a poesia dava pé, ora não. “Cada vez se sentia menos próximo da lira e mais acercado do violão”, toca no ponto exato da versatilidade do artista. E Roberto Schwarz confirma, afinal, segundo ele, Cacaso apostava em “Uma certa informalidade de menino”. Um ponto positivo, que o popularizava ainda mais, descendo de um pedestal imaginário, onde estão os poetas cânones.  Afortunado, Antonio Carlos de Brito casou-se duas vezes, a segunda com a cantora Rosa Emília Dias, (junto com Jahn, organizou o volume) e teve dois filhos, Pedro, com a antropóloga Leilah de Brito, e Paula, com Rosa Emília. Começou a trabalhar aos 12, fazendo charges políticas em jornais do interior de São Paulo. Prolífico, publicou centenas de poemas, letras de música e artigos. Morreu aos 43 anos, no Rio de Janeiro, vítima de um infarto fulminante. Logo ele que, segundo os amigos, era a calmaria em pessoa. Nascido em Uberaba, Minas Gerais, no ano de 1944, sob o signo de peixes, Antônio Carlos de Brito herdou uma fazenda dos pais no Mato Grosso do Sul, pode dedicar-se à poesia, sendo a ovelha negra da família de pecuaristas. Hoje, suas músicas podem ser escutadas em gravações pela voz de cantores como Djavan, Maria Bethânia, Chico César, Simone, entre tantos outros que espalham sua palavra. 

Um hiponga dos trópicos. Cabeludo, óculos de aro metálico com lentes grossas arredondadas. Jeans azul Lee, camisa de linho, uma pasta surrada de couro estufada de papéis sempre o acompanhava. Aos seus pés, ponto de fuga para os prepotentes, pasmem: sandálias franciscanas devidamente acolchoadas por meias brancas, do tipo soquete. Esse era o visual de Antônio Carlos de Brito, o Cacaso.

Antonio Carlos de Brito, o poeta Cacaso, no trem Rio-São Paulo Foto: Jaime Schwartz/Companhia das Letras

Nada catedrático, Cacaso foi professor de Literatura Brasileira na PUC do Rio de Janeiro durante uma década. De 1975 a 1985, não era difícil trombar com o aéreo mestre pelos corredores da universidade na Gávea, rodeado de alunos. Um teórico que despejava artigos em jornais e revistas prestigiosos, como Opinião e Movimento, Cacaso não fazia a linha do acadêmico sisudo, embora fosse um intelectual fino, professor titular de Teoria Literária. No fim da vida, ele preferiu compor. Gravou com alguns dos maiores nomes da MPB em um período de ouro para o gênero — falemos disso mais para frente. Chico Alvim, contemporâneo de Cacaso, pinça duas palavras de seu acróstico sentimental para definir a amizade com o “professor”, alcunha dada a ele pelos companheiros de mimeógrafo: sentimento e perfídia — que virou ensaio e está incluso na edição recém-lançada pela Companhia das Letras, Poesia Completa. Sentimento refere-se não a sentimentalismo, que não tinha espaço na poesia do mineiro de Uberaba. Cacaso falava de amor mesmo.  No posfácio de Clara Alvim, na primeira edição de Beijo na Boca (1975), ela expõe com clareza uma das temáticas preferidas do autor: “A poética fundamental de Beijo na Boca é a não escolha face à impossibilidade de opção — entre amores, entre dois poemas. Fiquem as duas namoradas, o passado não se ultrapasse, fique mais de um estilo; sobreponham-se e sucessivamente briguem entre si”, afirma a escritora. Publicado pela editora Brasiliense dois anos antes de sua morte, em 1985, Beijo na Boca e outros poemas só ganhou novos ares em 2002, com um livro aveludado em tecido vermelho, uma edição caprichada com encartes, sucesso de uma parceria entre a editora 7 Letras e a extinta Cosac & Naify: chamava-se Lero Lero, uma antologia dos livros de poemas de Cacaso com acréscimo de inéditos. Edição esgotadíssima, e constantemente procurada. Exemplares em sebos chegavam a custar R$ 500. E em 2012 a Cosac & Naify lançou em edição de bolso de Lero Lero, que novamente se esgotou.

Esgotar livro de poesia, no Brasil, tratando-se de um poeta “menor” com as devidas aspas é uma proeza só para os grandes. Cacaso volta agora em Poesia Completa, e mostra a que veio. 

Ainda sobre Beijo na Boca, compêndio tão bem fechado quanto gauche sobre uma temática constantemente esgarçada em matéria de poesia: o amor. Cacaso faz troça dele, como sofre! Apaixona-se, tórrido, de ficar em estado febril e reúne suas conclusões em sacadas ligeiras, em que o prosaico pula e bamboleia aquele certo nariz em pé da uma poesia idílica e tórrida, tão bem encerado em poemas de dor de cotovelo e paixão pelos homens apaixonados, como vemos em:

RÉ MENOR

Fazendo versinho Querendo carinho 

Cacaso vai no miúdo, na contramão das paixões lascivas, amores absolutos e outras grandiloquências. Ele mistura casos, namoradas, amantes, aventuras, aforismos, reminiscências, tira sarro. Beijo na Boca, um dos livros de Lero Lero, é um apanhado de esperança na época em que o homem urbano, já cansado, deixava de ser embalado pelo que havia sobrado da bossa, já imerso nos anos de chumbo.  Cacaso era um escritor compulsivo, que alimentava, voraz, cadernos de anotações, dos quais saíram inéditos que engordam a seleta do volume Poesia Completa. São achados tardios, organizados por Heloísa Jahn. Além de poemas, letras e desenhos, a edição conta com ensaios assinados por amigos do poeta, como os professores Roberto Schwarz, Heloísa Buarque de Hollanda, Vilma Arêas e dos poetas Mariano Marovatto e Francisco Alvim, o Chico, grande parceiro em vida.  Seguindo a ordem cronológica das primeiras publicações artesanais de um poeta que ainda não era Cacaso — ele assinou Antônio Carlos de Brito até 1978, no livro Na Corda Bamba,—, passando por desenhos, poemas inéditos e letras de música, Poesia Completa resgata o legado de um dos maiores trovadores do amor que viveu sob nossos tristes trópicos. Cacaso, injustamente apagado do panteão poético, por ser da escola Marginal (como Ana Cristina César, Chacal, Charles) embora ladeie o poeta Manuel Bandeira, “É da família de Bandeira”, define Chico Alvim, “Cuja linguagem é sem artifícios”. Ele vai direto ao ponto, como vemos em:

JURA

minha boca sopra no vento: eu te amo eu te amo uma navalha corta em dois meu coração

HAPPY END

o meu amor e eu nascemos um para o outro agora só falta em nos apresente

Dois de seus poemas mais conhecidos, Jura e Happy End são citações corriqueiras nas telas, quase meio século depois da morre do poeta. Cacaso tem coro virtual puxado não só por apreciadores e contemporâneos de sua obra, como por jovens que recém-descobriram sua poesia, seja por fotocópias de exemplares de biblioteca de Lero Lero, ou agora pelo conteúdo da nova edição.  Um poeta de multidões, Cacaso era arroz de festa. Estava sempre engatado com incontáveis projetos, morreu com vários deles em curso–entre eles o roteiro do filme que faria sobre Canudos. Fazia amigos com facilidade, era querido por escribas (embora existisse uma benigna perfídia entre alguns) e seus alunos da PUC.  Com o mimeógrafo, antes mesmo da colaboração com jornais, Cacaso espalhou sua palavra rapidamente pelas folhas perfumadas pelo cheiro de álcool e tinta que escorriam dos precários aparelhos. Ficou conhecido pelos livros Mar de Mineiro e Grupo Escolar, além das cópias clandestinas que passavam de mão em mão, para apresentar a quem se interessasse uma nova geração de poetas. Estourou mesmo com Beijo na Boca, de 1975, mesmo ano em que a Editora Brasiliense lançou, sob a batuta de Heloísa Buarque de Hollanda, a antologia 26 Poetas Hoje, uma coletânea que reuniu os nomes mais importantes da poesia marginal.  O Rio de Janeiro estava cheio desses jovens marginais. O termo, que provoca polêmica ainda hoje, refere-se a como era feita a distribuição e propagação das obras do período, muitas delas mimeografadas em velocidade recorde, em pequenas tiragens, panfletos e no boca-boca infestavam universidades junto aos diários estudantis e manifestos contra a ditadura militar. Tomando distância do Concretismo, que reverberava em São Paulo, e dialogando com as entrelinhas, sobretudo, autores da Geração Mimeógrafo, como Chacal e Ana Cristina César, eles não eram aceitos logo de cara pelo circuito do cânone literário. Portanto, estavam à margem do metiê.  Teriam eles antecipado a cultura do hype, do imediatismo das redes, se autopublicando com mimeógrafos e fazendo sucesso. Tanto que, cedo ou tarde, entraram para os catálogos das editoras, não sem arranjar desafetos com críticos ortodoxos e professores pardais de literatura, que se prostravam aos pés do cânone, do hermético. Cacaso, que já estava bem estabelecido na Academia, trouxe a Poesia Marginal para discussão em sala de aula. De fala mansa, simpatia e eloquência, Antônio Carlos de Brito buscava um sentido para além da arte, como também um sustento por ela. Tinha o salário da PUC, mas boa parte do orçamento vinha das letras que compunha para grandes nomes como Tom Jobim e João Donato.  Considerado um dos dez maiores poetas da música brasileira pelo jornal The New York Times, Cacaso foi parceiro de artistas de primeiro porte, como Edu Lobo, Djavan, Francis Hime, entre tantos outros. “Sua poesia tinha muito do poema-minuto do Oswald de Andrade, de irreverência, humor, lírica e ao mesmo tempo ácida, especialmente em sua segunda fase poética, na década de 1970. Em suas letras havia aquela preocupação de retratar um Brasil um tanto quanto desconhecido do grande público urbano”, definiu o crítico musical Euclides Amaral.  Falando de música, Chico Alvim ainda completa “[Bandeira e Cacaso] têm um ouvido extraordinário para as modulações da língua e daí escreveram a favor da correnteza e quase nunca a contrapelo”, define Alvim. “Ele queria trazer à luz do dia os podres da conivência literária, que o exasperavam, queria acertar no amor, queria dar seu depoimento sobre o Brasil, queria vencer e, sem dúvida nenhuma queria ganhar dinheiro com o seu trabalho”, escreve Roberto Schwarz. Como lembra o amigo Chico Alvim, que ouviu de Cacaso que ora a poesia dava pé, ora não. “Cada vez se sentia menos próximo da lira e mais acercado do violão”, toca no ponto exato da versatilidade do artista. E Roberto Schwarz confirma, afinal, segundo ele, Cacaso apostava em “Uma certa informalidade de menino”. Um ponto positivo, que o popularizava ainda mais, descendo de um pedestal imaginário, onde estão os poetas cânones.  Afortunado, Antonio Carlos de Brito casou-se duas vezes, a segunda com a cantora Rosa Emília Dias, (junto com Jahn, organizou o volume) e teve dois filhos, Pedro, com a antropóloga Leilah de Brito, e Paula, com Rosa Emília. Começou a trabalhar aos 12, fazendo charges políticas em jornais do interior de São Paulo. Prolífico, publicou centenas de poemas, letras de música e artigos. Morreu aos 43 anos, no Rio de Janeiro, vítima de um infarto fulminante. Logo ele que, segundo os amigos, era a calmaria em pessoa. Nascido em Uberaba, Minas Gerais, no ano de 1944, sob o signo de peixes, Antônio Carlos de Brito herdou uma fazenda dos pais no Mato Grosso do Sul, pode dedicar-se à poesia, sendo a ovelha negra da família de pecuaristas. Hoje, suas músicas podem ser escutadas em gravações pela voz de cantores como Djavan, Maria Bethânia, Chico César, Simone, entre tantos outros que espalham sua palavra. 

Um hiponga dos trópicos. Cabeludo, óculos de aro metálico com lentes grossas arredondadas. Jeans azul Lee, camisa de linho, uma pasta surrada de couro estufada de papéis sempre o acompanhava. Aos seus pés, ponto de fuga para os prepotentes, pasmem: sandálias franciscanas devidamente acolchoadas por meias brancas, do tipo soquete. Esse era o visual de Antônio Carlos de Brito, o Cacaso.

Antonio Carlos de Brito, o poeta Cacaso, no trem Rio-São Paulo Foto: Jaime Schwartz/Companhia das Letras

Nada catedrático, Cacaso foi professor de Literatura Brasileira na PUC do Rio de Janeiro durante uma década. De 1975 a 1985, não era difícil trombar com o aéreo mestre pelos corredores da universidade na Gávea, rodeado de alunos. Um teórico que despejava artigos em jornais e revistas prestigiosos, como Opinião e Movimento, Cacaso não fazia a linha do acadêmico sisudo, embora fosse um intelectual fino, professor titular de Teoria Literária. No fim da vida, ele preferiu compor. Gravou com alguns dos maiores nomes da MPB em um período de ouro para o gênero — falemos disso mais para frente. Chico Alvim, contemporâneo de Cacaso, pinça duas palavras de seu acróstico sentimental para definir a amizade com o “professor”, alcunha dada a ele pelos companheiros de mimeógrafo: sentimento e perfídia — que virou ensaio e está incluso na edição recém-lançada pela Companhia das Letras, Poesia Completa. Sentimento refere-se não a sentimentalismo, que não tinha espaço na poesia do mineiro de Uberaba. Cacaso falava de amor mesmo.  No posfácio de Clara Alvim, na primeira edição de Beijo na Boca (1975), ela expõe com clareza uma das temáticas preferidas do autor: “A poética fundamental de Beijo na Boca é a não escolha face à impossibilidade de opção — entre amores, entre dois poemas. Fiquem as duas namoradas, o passado não se ultrapasse, fique mais de um estilo; sobreponham-se e sucessivamente briguem entre si”, afirma a escritora. Publicado pela editora Brasiliense dois anos antes de sua morte, em 1985, Beijo na Boca e outros poemas só ganhou novos ares em 2002, com um livro aveludado em tecido vermelho, uma edição caprichada com encartes, sucesso de uma parceria entre a editora 7 Letras e a extinta Cosac & Naify: chamava-se Lero Lero, uma antologia dos livros de poemas de Cacaso com acréscimo de inéditos. Edição esgotadíssima, e constantemente procurada. Exemplares em sebos chegavam a custar R$ 500. E em 2012 a Cosac & Naify lançou em edição de bolso de Lero Lero, que novamente se esgotou.

Esgotar livro de poesia, no Brasil, tratando-se de um poeta “menor” com as devidas aspas é uma proeza só para os grandes. Cacaso volta agora em Poesia Completa, e mostra a que veio. 

Ainda sobre Beijo na Boca, compêndio tão bem fechado quanto gauche sobre uma temática constantemente esgarçada em matéria de poesia: o amor. Cacaso faz troça dele, como sofre! Apaixona-se, tórrido, de ficar em estado febril e reúne suas conclusões em sacadas ligeiras, em que o prosaico pula e bamboleia aquele certo nariz em pé da uma poesia idílica e tórrida, tão bem encerado em poemas de dor de cotovelo e paixão pelos homens apaixonados, como vemos em:

RÉ MENOR

Fazendo versinho Querendo carinho 

Cacaso vai no miúdo, na contramão das paixões lascivas, amores absolutos e outras grandiloquências. Ele mistura casos, namoradas, amantes, aventuras, aforismos, reminiscências, tira sarro. Beijo na Boca, um dos livros de Lero Lero, é um apanhado de esperança na época em que o homem urbano, já cansado, deixava de ser embalado pelo que havia sobrado da bossa, já imerso nos anos de chumbo.  Cacaso era um escritor compulsivo, que alimentava, voraz, cadernos de anotações, dos quais saíram inéditos que engordam a seleta do volume Poesia Completa. São achados tardios, organizados por Heloísa Jahn. Além de poemas, letras e desenhos, a edição conta com ensaios assinados por amigos do poeta, como os professores Roberto Schwarz, Heloísa Buarque de Hollanda, Vilma Arêas e dos poetas Mariano Marovatto e Francisco Alvim, o Chico, grande parceiro em vida.  Seguindo a ordem cronológica das primeiras publicações artesanais de um poeta que ainda não era Cacaso — ele assinou Antônio Carlos de Brito até 1978, no livro Na Corda Bamba,—, passando por desenhos, poemas inéditos e letras de música, Poesia Completa resgata o legado de um dos maiores trovadores do amor que viveu sob nossos tristes trópicos. Cacaso, injustamente apagado do panteão poético, por ser da escola Marginal (como Ana Cristina César, Chacal, Charles) embora ladeie o poeta Manuel Bandeira, “É da família de Bandeira”, define Chico Alvim, “Cuja linguagem é sem artifícios”. Ele vai direto ao ponto, como vemos em:

JURA

minha boca sopra no vento: eu te amo eu te amo uma navalha corta em dois meu coração

HAPPY END

o meu amor e eu nascemos um para o outro agora só falta em nos apresente

Dois de seus poemas mais conhecidos, Jura e Happy End são citações corriqueiras nas telas, quase meio século depois da morre do poeta. Cacaso tem coro virtual puxado não só por apreciadores e contemporâneos de sua obra, como por jovens que recém-descobriram sua poesia, seja por fotocópias de exemplares de biblioteca de Lero Lero, ou agora pelo conteúdo da nova edição.  Um poeta de multidões, Cacaso era arroz de festa. Estava sempre engatado com incontáveis projetos, morreu com vários deles em curso–entre eles o roteiro do filme que faria sobre Canudos. Fazia amigos com facilidade, era querido por escribas (embora existisse uma benigna perfídia entre alguns) e seus alunos da PUC.  Com o mimeógrafo, antes mesmo da colaboração com jornais, Cacaso espalhou sua palavra rapidamente pelas folhas perfumadas pelo cheiro de álcool e tinta que escorriam dos precários aparelhos. Ficou conhecido pelos livros Mar de Mineiro e Grupo Escolar, além das cópias clandestinas que passavam de mão em mão, para apresentar a quem se interessasse uma nova geração de poetas. Estourou mesmo com Beijo na Boca, de 1975, mesmo ano em que a Editora Brasiliense lançou, sob a batuta de Heloísa Buarque de Hollanda, a antologia 26 Poetas Hoje, uma coletânea que reuniu os nomes mais importantes da poesia marginal.  O Rio de Janeiro estava cheio desses jovens marginais. O termo, que provoca polêmica ainda hoje, refere-se a como era feita a distribuição e propagação das obras do período, muitas delas mimeografadas em velocidade recorde, em pequenas tiragens, panfletos e no boca-boca infestavam universidades junto aos diários estudantis e manifestos contra a ditadura militar. Tomando distância do Concretismo, que reverberava em São Paulo, e dialogando com as entrelinhas, sobretudo, autores da Geração Mimeógrafo, como Chacal e Ana Cristina César, eles não eram aceitos logo de cara pelo circuito do cânone literário. Portanto, estavam à margem do metiê.  Teriam eles antecipado a cultura do hype, do imediatismo das redes, se autopublicando com mimeógrafos e fazendo sucesso. Tanto que, cedo ou tarde, entraram para os catálogos das editoras, não sem arranjar desafetos com críticos ortodoxos e professores pardais de literatura, que se prostravam aos pés do cânone, do hermético. Cacaso, que já estava bem estabelecido na Academia, trouxe a Poesia Marginal para discussão em sala de aula. De fala mansa, simpatia e eloquência, Antônio Carlos de Brito buscava um sentido para além da arte, como também um sustento por ela. Tinha o salário da PUC, mas boa parte do orçamento vinha das letras que compunha para grandes nomes como Tom Jobim e João Donato.  Considerado um dos dez maiores poetas da música brasileira pelo jornal The New York Times, Cacaso foi parceiro de artistas de primeiro porte, como Edu Lobo, Djavan, Francis Hime, entre tantos outros. “Sua poesia tinha muito do poema-minuto do Oswald de Andrade, de irreverência, humor, lírica e ao mesmo tempo ácida, especialmente em sua segunda fase poética, na década de 1970. Em suas letras havia aquela preocupação de retratar um Brasil um tanto quanto desconhecido do grande público urbano”, definiu o crítico musical Euclides Amaral.  Falando de música, Chico Alvim ainda completa “[Bandeira e Cacaso] têm um ouvido extraordinário para as modulações da língua e daí escreveram a favor da correnteza e quase nunca a contrapelo”, define Alvim. “Ele queria trazer à luz do dia os podres da conivência literária, que o exasperavam, queria acertar no amor, queria dar seu depoimento sobre o Brasil, queria vencer e, sem dúvida nenhuma queria ganhar dinheiro com o seu trabalho”, escreve Roberto Schwarz. Como lembra o amigo Chico Alvim, que ouviu de Cacaso que ora a poesia dava pé, ora não. “Cada vez se sentia menos próximo da lira e mais acercado do violão”, toca no ponto exato da versatilidade do artista. E Roberto Schwarz confirma, afinal, segundo ele, Cacaso apostava em “Uma certa informalidade de menino”. Um ponto positivo, que o popularizava ainda mais, descendo de um pedestal imaginário, onde estão os poetas cânones.  Afortunado, Antonio Carlos de Brito casou-se duas vezes, a segunda com a cantora Rosa Emília Dias, (junto com Jahn, organizou o volume) e teve dois filhos, Pedro, com a antropóloga Leilah de Brito, e Paula, com Rosa Emília. Começou a trabalhar aos 12, fazendo charges políticas em jornais do interior de São Paulo. Prolífico, publicou centenas de poemas, letras de música e artigos. Morreu aos 43 anos, no Rio de Janeiro, vítima de um infarto fulminante. Logo ele que, segundo os amigos, era a calmaria em pessoa. Nascido em Uberaba, Minas Gerais, no ano de 1944, sob o signo de peixes, Antônio Carlos de Brito herdou uma fazenda dos pais no Mato Grosso do Sul, pode dedicar-se à poesia, sendo a ovelha negra da família de pecuaristas. Hoje, suas músicas podem ser escutadas em gravações pela voz de cantores como Djavan, Maria Bethânia, Chico César, Simone, entre tantos outros que espalham sua palavra. 

Um hiponga dos trópicos. Cabeludo, óculos de aro metálico com lentes grossas arredondadas. Jeans azul Lee, camisa de linho, uma pasta surrada de couro estufada de papéis sempre o acompanhava. Aos seus pés, ponto de fuga para os prepotentes, pasmem: sandálias franciscanas devidamente acolchoadas por meias brancas, do tipo soquete. Esse era o visual de Antônio Carlos de Brito, o Cacaso.

Antonio Carlos de Brito, o poeta Cacaso, no trem Rio-São Paulo Foto: Jaime Schwartz/Companhia das Letras

Nada catedrático, Cacaso foi professor de Literatura Brasileira na PUC do Rio de Janeiro durante uma década. De 1975 a 1985, não era difícil trombar com o aéreo mestre pelos corredores da universidade na Gávea, rodeado de alunos. Um teórico que despejava artigos em jornais e revistas prestigiosos, como Opinião e Movimento, Cacaso não fazia a linha do acadêmico sisudo, embora fosse um intelectual fino, professor titular de Teoria Literária. No fim da vida, ele preferiu compor. Gravou com alguns dos maiores nomes da MPB em um período de ouro para o gênero — falemos disso mais para frente. Chico Alvim, contemporâneo de Cacaso, pinça duas palavras de seu acróstico sentimental para definir a amizade com o “professor”, alcunha dada a ele pelos companheiros de mimeógrafo: sentimento e perfídia — que virou ensaio e está incluso na edição recém-lançada pela Companhia das Letras, Poesia Completa. Sentimento refere-se não a sentimentalismo, que não tinha espaço na poesia do mineiro de Uberaba. Cacaso falava de amor mesmo.  No posfácio de Clara Alvim, na primeira edição de Beijo na Boca (1975), ela expõe com clareza uma das temáticas preferidas do autor: “A poética fundamental de Beijo na Boca é a não escolha face à impossibilidade de opção — entre amores, entre dois poemas. Fiquem as duas namoradas, o passado não se ultrapasse, fique mais de um estilo; sobreponham-se e sucessivamente briguem entre si”, afirma a escritora. Publicado pela editora Brasiliense dois anos antes de sua morte, em 1985, Beijo na Boca e outros poemas só ganhou novos ares em 2002, com um livro aveludado em tecido vermelho, uma edição caprichada com encartes, sucesso de uma parceria entre a editora 7 Letras e a extinta Cosac & Naify: chamava-se Lero Lero, uma antologia dos livros de poemas de Cacaso com acréscimo de inéditos. Edição esgotadíssima, e constantemente procurada. Exemplares em sebos chegavam a custar R$ 500. E em 2012 a Cosac & Naify lançou em edição de bolso de Lero Lero, que novamente se esgotou.

Esgotar livro de poesia, no Brasil, tratando-se de um poeta “menor” com as devidas aspas é uma proeza só para os grandes. Cacaso volta agora em Poesia Completa, e mostra a que veio. 

Ainda sobre Beijo na Boca, compêndio tão bem fechado quanto gauche sobre uma temática constantemente esgarçada em matéria de poesia: o amor. Cacaso faz troça dele, como sofre! Apaixona-se, tórrido, de ficar em estado febril e reúne suas conclusões em sacadas ligeiras, em que o prosaico pula e bamboleia aquele certo nariz em pé da uma poesia idílica e tórrida, tão bem encerado em poemas de dor de cotovelo e paixão pelos homens apaixonados, como vemos em:

RÉ MENOR

Fazendo versinho Querendo carinho 

Cacaso vai no miúdo, na contramão das paixões lascivas, amores absolutos e outras grandiloquências. Ele mistura casos, namoradas, amantes, aventuras, aforismos, reminiscências, tira sarro. Beijo na Boca, um dos livros de Lero Lero, é um apanhado de esperança na época em que o homem urbano, já cansado, deixava de ser embalado pelo que havia sobrado da bossa, já imerso nos anos de chumbo.  Cacaso era um escritor compulsivo, que alimentava, voraz, cadernos de anotações, dos quais saíram inéditos que engordam a seleta do volume Poesia Completa. São achados tardios, organizados por Heloísa Jahn. Além de poemas, letras e desenhos, a edição conta com ensaios assinados por amigos do poeta, como os professores Roberto Schwarz, Heloísa Buarque de Hollanda, Vilma Arêas e dos poetas Mariano Marovatto e Francisco Alvim, o Chico, grande parceiro em vida.  Seguindo a ordem cronológica das primeiras publicações artesanais de um poeta que ainda não era Cacaso — ele assinou Antônio Carlos de Brito até 1978, no livro Na Corda Bamba,—, passando por desenhos, poemas inéditos e letras de música, Poesia Completa resgata o legado de um dos maiores trovadores do amor que viveu sob nossos tristes trópicos. Cacaso, injustamente apagado do panteão poético, por ser da escola Marginal (como Ana Cristina César, Chacal, Charles) embora ladeie o poeta Manuel Bandeira, “É da família de Bandeira”, define Chico Alvim, “Cuja linguagem é sem artifícios”. Ele vai direto ao ponto, como vemos em:

JURA

minha boca sopra no vento: eu te amo eu te amo uma navalha corta em dois meu coração

HAPPY END

o meu amor e eu nascemos um para o outro agora só falta em nos apresente

Dois de seus poemas mais conhecidos, Jura e Happy End são citações corriqueiras nas telas, quase meio século depois da morre do poeta. Cacaso tem coro virtual puxado não só por apreciadores e contemporâneos de sua obra, como por jovens que recém-descobriram sua poesia, seja por fotocópias de exemplares de biblioteca de Lero Lero, ou agora pelo conteúdo da nova edição.  Um poeta de multidões, Cacaso era arroz de festa. Estava sempre engatado com incontáveis projetos, morreu com vários deles em curso–entre eles o roteiro do filme que faria sobre Canudos. Fazia amigos com facilidade, era querido por escribas (embora existisse uma benigna perfídia entre alguns) e seus alunos da PUC.  Com o mimeógrafo, antes mesmo da colaboração com jornais, Cacaso espalhou sua palavra rapidamente pelas folhas perfumadas pelo cheiro de álcool e tinta que escorriam dos precários aparelhos. Ficou conhecido pelos livros Mar de Mineiro e Grupo Escolar, além das cópias clandestinas que passavam de mão em mão, para apresentar a quem se interessasse uma nova geração de poetas. Estourou mesmo com Beijo na Boca, de 1975, mesmo ano em que a Editora Brasiliense lançou, sob a batuta de Heloísa Buarque de Hollanda, a antologia 26 Poetas Hoje, uma coletânea que reuniu os nomes mais importantes da poesia marginal.  O Rio de Janeiro estava cheio desses jovens marginais. O termo, que provoca polêmica ainda hoje, refere-se a como era feita a distribuição e propagação das obras do período, muitas delas mimeografadas em velocidade recorde, em pequenas tiragens, panfletos e no boca-boca infestavam universidades junto aos diários estudantis e manifestos contra a ditadura militar. Tomando distância do Concretismo, que reverberava em São Paulo, e dialogando com as entrelinhas, sobretudo, autores da Geração Mimeógrafo, como Chacal e Ana Cristina César, eles não eram aceitos logo de cara pelo circuito do cânone literário. Portanto, estavam à margem do metiê.  Teriam eles antecipado a cultura do hype, do imediatismo das redes, se autopublicando com mimeógrafos e fazendo sucesso. Tanto que, cedo ou tarde, entraram para os catálogos das editoras, não sem arranjar desafetos com críticos ortodoxos e professores pardais de literatura, que se prostravam aos pés do cânone, do hermético. Cacaso, que já estava bem estabelecido na Academia, trouxe a Poesia Marginal para discussão em sala de aula. De fala mansa, simpatia e eloquência, Antônio Carlos de Brito buscava um sentido para além da arte, como também um sustento por ela. Tinha o salário da PUC, mas boa parte do orçamento vinha das letras que compunha para grandes nomes como Tom Jobim e João Donato.  Considerado um dos dez maiores poetas da música brasileira pelo jornal The New York Times, Cacaso foi parceiro de artistas de primeiro porte, como Edu Lobo, Djavan, Francis Hime, entre tantos outros. “Sua poesia tinha muito do poema-minuto do Oswald de Andrade, de irreverência, humor, lírica e ao mesmo tempo ácida, especialmente em sua segunda fase poética, na década de 1970. Em suas letras havia aquela preocupação de retratar um Brasil um tanto quanto desconhecido do grande público urbano”, definiu o crítico musical Euclides Amaral.  Falando de música, Chico Alvim ainda completa “[Bandeira e Cacaso] têm um ouvido extraordinário para as modulações da língua e daí escreveram a favor da correnteza e quase nunca a contrapelo”, define Alvim. “Ele queria trazer à luz do dia os podres da conivência literária, que o exasperavam, queria acertar no amor, queria dar seu depoimento sobre o Brasil, queria vencer e, sem dúvida nenhuma queria ganhar dinheiro com o seu trabalho”, escreve Roberto Schwarz. Como lembra o amigo Chico Alvim, que ouviu de Cacaso que ora a poesia dava pé, ora não. “Cada vez se sentia menos próximo da lira e mais acercado do violão”, toca no ponto exato da versatilidade do artista. E Roberto Schwarz confirma, afinal, segundo ele, Cacaso apostava em “Uma certa informalidade de menino”. Um ponto positivo, que o popularizava ainda mais, descendo de um pedestal imaginário, onde estão os poetas cânones.  Afortunado, Antonio Carlos de Brito casou-se duas vezes, a segunda com a cantora Rosa Emília Dias, (junto com Jahn, organizou o volume) e teve dois filhos, Pedro, com a antropóloga Leilah de Brito, e Paula, com Rosa Emília. Começou a trabalhar aos 12, fazendo charges políticas em jornais do interior de São Paulo. Prolífico, publicou centenas de poemas, letras de música e artigos. Morreu aos 43 anos, no Rio de Janeiro, vítima de um infarto fulminante. Logo ele que, segundo os amigos, era a calmaria em pessoa. Nascido em Uberaba, Minas Gerais, no ano de 1944, sob o signo de peixes, Antônio Carlos de Brito herdou uma fazenda dos pais no Mato Grosso do Sul, pode dedicar-se à poesia, sendo a ovelha negra da família de pecuaristas. Hoje, suas músicas podem ser escutadas em gravações pela voz de cantores como Djavan, Maria Bethânia, Chico César, Simone, entre tantos outros que espalham sua palavra. 

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