Em raras ocasiões um best seller combina uma boa história com ambição literária, ainda mais quando se trata de um exercício memorialista. No entanto, A Lebre Com Olhos de Âmbar, livro de estreia do conhecido ceramista inglês Edmund de Waal, conseguiu ao mesmo tempo a consagração do público e da crítica. Além de ganhar o prêmio Costa Book de melhor biografia, o livro foi comprado por editores do mundo todo e publicado em 20 diferentes línguas. De Waal tem sotaque proustiano e sensibilidade sebaldiana. Em outras palavras: como Proust (1871-1922), evoca o passado familiar com notável riqueza de detalhes e, a exemplo do alemão W. G. Sebald (1944-2001), cruza fatos reais e ficção com enorme talento. De Londres, onde mora com a família, o herdeiro da família Ephrussi - os maiores exportadores de trigo do mundo no século 19, além de banqueiros e mecenas de artistas (Renoir, Monet) - concedeu uma entrevista ao Caderno 2, em que anuncia sua intenção de continuar a carreira literária. Seu livro A Lebre Com Olhos de Âmbar conta a história do clã Ephrussi, mas as estrelas são 264 miniaturas japonesas entalhadas em madeira e marfim. Atrás da origem e da história desses netsuquês, que herdou de um tio-avô morador em Tóquio, De Waal, do ramo holandês da família Ephrussi, descobriu que existiam enormes semelhanças entre o antepassado Charles Ephrussi, um primo de seu bisavô, e o Charles Swann de Em Busca do Tempo Perdido, a obra-prima de Proust. Ambos eram judeus, eruditos, milionários e amigos da realeza. Os dois escreveram monografias sobre artistas - o Charles real sobre Dürer e o Charles de Proust, sobre Vermeer. Tanto o antepassado do escritor como o Charles ficcional eram dândis, gostavam de belas mulheres e obras de arte japonesas (bem, todo o 'grand monde' parisiense gostava, na época). Por ter uma amante igualmente fascinada pela onda japonista do fim de século 19, que conquistou pintores impressionistas bancados pelo Charles real (como Monet), o primo do bisavô de De Waal comprou de uma vez só, na galeria dos irmãos Sichel, em Paris, a coleção de netsuquês, que deu de presente à bela Louise, retratada por Proust como a demi-mondaine Odette, amante de Swann, que o recebia de quimono numa sala cheia de biombos e almofadas de seda japoneses. Charles Ephrussi, então, era proprietário da Gazette, amigo de artistas como Renoir, que o retratou na famosa tela O Almoço dos Remadores (leia texto abaixo). Segundo De Waal, ele foi se tornando defensor dos pintores que conhecia, encomendando resenhas e escrevendo ele mesmo, sob pseudônimo, a respeito das bailarinas de Degas. Sem saber mesmo a razão, também o pequeno De Waal foi atraído pelo japonismo. Aos cinco anos, pediu ao pai que o matriculasse num curso de cerâmica. Estudou com o maior dos mestres ingleses, Bernard Leach, homem austero que o ensinou a ter respeito pelo material e pela cultura japonesa. Em 1991, De Waal, então com 27 anos, ganhou uma bolsa para estudar japonês em Tóquio, aproveitando o tempo livre para pesquisar nos arquivos e bibliotecas locais. Queria escrever um livro cujo tema seria exatamente a maneira como o Ocidente interpreta de maneira equivocada o Japão. Uma tarde, porém, ao visitar o tio-avô Iggie, de 84 anos, viu sua vitrine de netsuquês e este contou ao sobrinho a história do pai e da mãe, que ganharam de presente de casamento a coleção de miniaturas de Charles Ephrussi. Fascinado, De Waal percebeu que essas miniaturas de animais e pessoas contavam não só a história da família como dos principais eventos dos séculos 19 e 20. Enquanto os japoneses eram extremamente raros na Paris de 1870, todos colecionavam japonaiseries. Tornou-se hábito entre os ricos correr a Rue Martel, onde eram vendidos objetos do Extremo Oriente. Charles e sua amante Louise, neojaponistas, não fugiam à regra. De Waal desconfia que, por trás da cobiça dos netsuquês, havia uma compulsão mal disfarçada de pilhar ou violar o Japão, que só existia para a França como possibilidade de satisfação em vários níveis (artístico, comercial e sexual). "É difícil falar de um objeto sem romantizá-lo, ainda mais quando se trata de netsuquês, mas, claro, eles carregam a energia dos artistas que o fizeram e também a dos ex-proprietários", diz De Waal, concluindo que seu livro "é uma maneira de procurar entender, afinal, o que significa um objeto". No caso, essas 264 miniaturas, que retratam lebres, tartatrugas, tigres, toneleiros e um monge dormindo sobre sua cuia de esmola (seu preferido), passaram pela elegante mansão de Charles e Louise em Paris, foram salvos dos nazistas em Viena e voltaram ao Japão quando o tio-avô do escritor, Iggie, ao término da Segunda Guerra, entrou no país como militar e conheceu um japonês, Jiro, filho de uma familia de fabricantes de tamancos, por quem se apaixonou. Eles viveram 41 anos juntos. Quando morreu, o companheiro do tio deu a coleção de presente ao escritor. Cada uma dessas miniaturas, diz De Waal no livro, "é uma resistência ao sangramento da memória". Eles foram, por exemplo, escondidos dentro de um colchão para escapar da pilhagem empreendida pelos nazistas nas casas dos judeus, em 1938. A própria história dessas peças revelou passagens obscuras da trajetória da família Ephrussi. "De qualquer forma, não tinha como modelo a escrita proustiana", garante o escritor. "Não era a nostalgia que me movia, mas um desejo sincero de recontar essa história em que os netsuquês deixam de ser simples objetos de consumo no Ocidente e perdem o exotismo quando voltam ao Japão". Nesse ponto, a escrita de De Waal troca o memorialismo proustiano pela abordagem de Sebald ao tratar da memória pessoal e histórica como forma de reconciliação. "Leio os escritores franceses e ingleses, mas prefiro os de língua alemã, como Sebald e Musil", diz, assumindo o primeiro como modelo. Ele levou anos preparando o livro e seu primeiro crítico foi o pai. "Mostrei a ele e pedi que fosse rígido, adiantando que só publicaria se desse sua aprovação". Caso contrário, garante, "teria destruído os manuscritos". Felizmente, para os leitores, o pai de De Waal deu sua benção.