A guerra da Ucrânia não se trava apenas no campo de batalha. Ela também é um conflito em torno de visões da História. Todo soldado russo enviado à Ucrânia, além de armas e munição, deve carregar também um ensaio de 5 mil palavras publicado em julho de 2021 por Vladimir Putin e intitulado “Sobre a unidade histórica de russos e ucranianos”. No tratado, Putin diz que russos, ucranianos e belarussos formam um único povo, todos descendentes do Rus ( um império que se estabeleceu na Idade Média em terras entre os mares Negro e Báltico) e unidos pela língua, pela religião cristã ortodoxa e por um território comum. Na interpretação de Putin, a Ucrânia nunca foi um país soberano, a não ser por breves interlúdios – e a invasão do país pelas tropas russas teria, portanto, uma justificativa histórica.
“Estamos percebendo de novo como as ideias são importantes”, diz a historiadora canadense Margaret MacMillan, professora emérita das Universidades de Toronto (Canadá) e Oxford (Reino Unido), em entrevista ao Estadão. MacMillan é especialista em história internacional e se dedicou principalmente a escrever sobre os conflitos dos séculos 19 e 20. Seus livros sobre a Primeira Guerra Mundial e a Conferência de Paz de Paris, em 1919, que culminou com o Tratado de Versalhes, se tornaram best-sellers internacionais. Combinam reconstituições históricas vívidas com perfis superbos dos protagonistas dos eventos.
Seu último livro foi publicado em 2020, antes da guerra da Ucrânia, e explica como as guerras moldaram a Humanidade (War - How Conflict Shaped Us, sem tradução no Brasil). Em 2021, MacMillan recebeu o Prêmio do Museu e Biblioteca Pritzker de História Militar, de Chicago, nos EUA, pelo conjunto de sua obra.
O seu último livro começa com uma citação da Prêmio Nobel de Literatura Svetlana Aleksiévitch, para quem a guerra sempre será um mistério aterrorizante para os seres humanos. Após mais de seis meses da invasão da Ucrânia pela Rússia, o que é possível entender dessa guerra?
Esse conflito nos lembrou, mais uma vez, que a guerra é uma possibilidade em nossas vidas. Ela pode parecer remota para muito de nós, mas, às vezes, pode se tornar muito próxima e acontecer de forma repentina ou surpreendente. Essa guerra também nos fez lembrar o que leva as pessoas a ir à guerra: nacionalismo, ambição ou simplesmente a vontade de alguns indivíduos, como é o caso de Vladimir Putin. De outro lado, ela nos mostra também por que as pessoas estão preparadas para morrer por uma causa, quando se trata de defender suas famílias ou sua terra natal, como os ucranianos estão fazendo. Está claro hoje como esses fatores emocionais e relativos à moral são extremamente importantes. Nós também estamos de novo nos conscientizando de que a guerra teve e pode ter consequências muito importantes para a Humanidade. As consequências dessa guerra extrapolaram o Leste da Europa, estão atingindo as pessoas em todas as partes do mundo, por causa da crise energética e alimentar em muitos países, por causa da possibilidade de que outros países sigam o exemplo de Putin e provoquem uma guerra.
Essa é a guerra de Putin, um homem que a senhora descrevia como perigoso antes mesmo desse conflito. Mas Putin era visto também como um homem racional, um estrategista, uma espécie de jogador de xadrez. A decisão de Putin de invadir a Ucrânia a surpreendeu ou era presumível?
Eu me surpreendi. Olhando em retrospecto, eu não deveria ter me surpreendido, se tivesse examinado com mais cuidado o que ele vinha dizendo e o que já havia feito. Eu achava que ele se contentaria em deixar congelados alguns conflitos na Ucrânia, minando o governo ucraniano, tentando fazê-lo mais subserviente a Moscou. Ele já havia tomado a Crimeia, colocado forças de ocupação no Leste da Ucrânia e parecia que já estava atingindo seus objetivos de manter o governo ucraniano fraco e dividido e manter a sociedade ucraniana fora de um ponto de equilíbrio. Falhei em reconhecer, porém, a importância do desejo de vingança pelo fato de que ele acha que a Rússia foi humilhada após o fim da Guerra Fria, seu anseio de voltar ao que ele vê como é devido à Rússia. Era preciso ver o que Putin diz sobre a história da Rússia e como ele vê a Ucrânia como parte inseparável da Rússia. Nós deveríamos ter visto também o que ele havia feito, usando a força, em outros lugares: na Tchetchênia, na Geórgia, na Crimeia, na Síria. Também penso que é importante ver que Putin está sofrendo o que frequentemente acontece a ditadores: assim que eles se afastam mais e mais de princípios morais, eles se mostram também menos capazes de fazer escolhas racionais.
O que essa guerra revelou sobre o caráter de Putin?
Ainda estou tentando entender o caráter de Putin, porque, como você disse antes, essa é a guerra de Putin. Ele tem algum senso da destruição que está causando? Ele se preocupa com as vidas que estão sendo perdidas em ambos os lados? Me parece que as mortes não atrapalham seus cálculos políticos. Trata-se de alguém que saiu dos serviços de segurança e que já mostrou, em suas ações prévias, que a morte é incidental, não o “toca”, não o afeta. É muito possível que uma série de explosões na Rússia no passado recente e que mataram russos tenham sido preparadas pelo serviço de segurança, a FSB, de modo a criar uma desculpa para justificar ações do governo russo para desestabilizar seus vizinhos. E é muito provável que Putin esteja por trás da série de mortes suspeitas de oligarcas russos que o criticaram, ainda que apenas levemente, por causa da guerra na Ucrânia.
A justificativa de Putin para a invasão da Ucrânia é baseada numa versão histórica. Nas mãos de ditadores, a Historia é sempre uma arma na guerra?
A História pode ser usada tanto para o bem como para o mal. E é frequentemente usada como uma arma. Você vê isso nas mãos dos movimentos nacionalistas, que criam o mito da nação eterna. Em nome desse mito, criado em grande parte pela História, coisas terríveis podem ser feitas, porque vidas individuais seriam menos importantes do que a causa. Você vê a mesma coisa em guerras religiosas, que também em parte são produtos da História. Putin frequentemente fala sobre História- então, é algo que ele deve levar muito a sério. Eu acho surpreendente que nas áreas da Ucrânia ocupadas hoje pela Rússia, onde os russos deveriam, presumivelmente, estar mais preocupados com outras coisas, que eles estejam ocupados em trazer professores para ensinar nas escolas aos ucranianos o que seria a versão correta da História. Putin e as pessoas em torno dele usam a História, mas acham também que a História pode ser usada também contra eles. Por isso, querem controlá-la. A única coisa que a História pode fazer, para o bem, é desafiar esses mitos e tentar desfazê-los.
Há uma desconexão entre a forma como os russos e os ocidentais veem a História? Há mentalidades completamente diferentes e mundos totalmente afastados?
Estamos percebendo de novo como as ideias podem ser importantes. É evidente que a economia, a sociologia, a política, a competição por recursos, tudo isso é muito importante. Mas o que faz as pessoas tomarem certas atitudes e não outras para atingir seus objetivos? Por isso, a História e as ideias são muito importantes. Putin já estava atingindo o que queria em relação à Ucrânia. A Ucrânia não iria fazer parte da OTAN. Mas ele tem essa ideia de que a Ucrânia pertence à Rússia. Então, ele só ficará contente quando a sua ideia sobre a Rússia encontrar sua expressão completa. E acho que você está certo. Pessoas muito diferentes têm conceitos muito diferentes sobre a História e as usam de modo muito diferente. As democracias têm se preocupar com isso. Vemos isso também no Ocidente, como na Hungria. Victor Orbán tem a visão da história da Hungria como a de uma nação cristã, em permanente luta contra judeus e os muçulmanos - o que é uma visão muito distorcida. Nós estamos vendo isso nos Estados Unidos, onde há verdadeiras guerras sobre a história americana e uma facção política vê a história do país como a de uma nação branca e cristã, o que nunca foi verdade.
Como a senhora acha que a História deveria ser ensinada nas salas de aula de modo a evitar que ela seja instrumentalizada? Há uma tendência de parte da esquerda em enfatizar, no ensino da História, a crítica à colonização, o que tem gerado também muita polêmica.
Acho preocupante essa tendência de jogar a culpa por tudo na colonização. A ideia, por exemplo, de que, nos Estados Unidos, a única força que moveu o país foi o racismo desde o começo, me parece uma explicação muito rasa para as complexidades da história americana. Não há uma única explicação sobre o que aconteceu no passado e o que criou as nossas sociedades. Essa ideia também tira a capacidade de ação das pessoas sobre o presente. Meu país, o Canadá, veio do Império Britânico, mas nós temos algo a dizer sobre a sociedade em que nós vivemos. Nós não estamos seguindo cegamente coisas que foram colocadas em marcha no passado. Essa visão teológica sobre o passado de que tudo foi dirigido para um fim específico realmente me preocupa. O que eu acho que a História deveria fazer, ao tentar explicar às crianças o que fizemos para chegar aonde estamos no presente, é não dar respostas fáceis. Como o Brasil se tornou um país de língua portuguesa na América do Sul? Que forças o criaram, entendendo que não somos prisioneiros dessas forças? Nós temos também de perceber que, quando olhamos o passado, há muitas maneiras de fazê-lo – e devemos estar abertos a essas diferentes maneiras e às perguntas que fazemos o tempo todo sobre o passado e as questões que nos preocupam no presente. Espero que a História não seja usada para nos dividir ainda mais. Ela deveria tentar nos lembrar das nossas diferenças, de onde viemos, de nossos erros no passado.
Há uma grande discussão sobre se os Estados Unidos e os outros países ocidentais deveriam ter feito mais para se aproximar da Rússia depois do fim da União Soviética. Qual é sua visão a respeito disso?
Acho que perdemos oportunidades nos anos 1990. Havia um triunfalismo com a ideia de que o Ocidente havia ganhado a longa luta da Guerra Fria contra a União Soviética. Naqueles momentos, teria sido melhor ter sido mais generoso com os que foram derrotados. Os anos 90 foram especialmente difíceis para os russos, com colapso econômico, inflação, corrupção. Foi um período horroroso e o Ocidente não ajudou a Rússia de forma suficiente. Foi infeliz que esse período tenha coincidido com o triunfo do neoliberalismo e da ideia de que as forças dos mercados podem cuidar de tudo. Havia a crença de que a Rússia, com uma terapia de choque, poderia subitamente virar uma economia capitalista e uma democracia funcional. O Ocidente não foi realista e teve uma visão de curto prazo. Apesar desses enganos, nada disso é desculpa ou justificativa para o que Putin está fazendo hoje na Ucrânia.
A expansão da OTAN foi um erro?
É fácil dizer isso agora – apesar de George Kennan (diplomata americano que inspirou a política de contenção da União Soviética pelos EUA durante a Guerra Fria) ter alertado sobre isso na época. Mas o que o Ocidente poderia ter dito àqueles países que haviam saído da órbita do Império Soviético e estavam desesperados para entrar na OTAN, como a Polônia, a Hungria e a Thecoslováquia? Eles estavam implorando para serem admitidos. A Polônia disse que, se não fosse admitida, iria atrás de armas nucleares. Nós podemos ficar fazendo suposições a respeito dessas decisões, mas a expansão da OTAN, a princípio, era mais um arranjo para garantir a estabilidade e a paz na Europa do que uma busca de confronto com a Rússia. Desafortunadamente, acabou tomando outros caminhos. Provavelmente, os líderes ocidentais poderiam ter sido mais cautelosos, mas devemos entender o que eles estavam buscando e quais eram as pressões na época. A OTAN era uma aliança defensiva, mas, com certeza, mais uma vez, não entendemos como os russos a viam - e eles não a encaravam dessa forma.
A senhora vislumbra um desfecho para essa guerra? É uma pergunta difícil para uma historiadora, mas alguns especialistas creem que a Rússia já perdeu a guerra porque, independentemente do resultado militar, ela se limitará, no futuro, a ser uma espécie de país-satélite na órbita de uma China emergente como grande potência mundial.
Guerras sempre chegam a um fim, mais cedo ou mais tarde, porque ou os dois lados ficam tão exaustos ou porque um fica tão exausto que o outro lado ganha no terreno. Como essa guerra vai acabar vai depender do que está acontecendo agora no terreno e antes da chegada do inverno. Nós temos de esperar para ver o que vai acontecer. Pode terminar com a Ucrânia cedendo território, mas os ucranianos estão cada vez menos dispostos a fazer isso. Chegar a um acordo de paz será realmente muito difícil. O que pode significar para a Rússia é o que você sugeriu: Putin provocou sérios danos à economia russa, sobretudo porque a Rússia perdeu muitas pessoas, bem-educadas, que podem ajudar a promover o crescimento e o desenvolvimento do país, e vai ser difícil substituí-las. Sim, a Rússia se tornou muito mais dependente da China, e não é apenas em termos de apoio nas questões internacionais e de fornecimento de armas, mas também porque a China é uma potência muito mais populosa, principalmente no Extremo-Oriente. Muitas daquelas terras da Rússia no Extremo-Oriente foram adquiridas apenas no século 19. Se você é chinês vai se lembrar que muitas daquelas terras tradicionalmente pertenceram, no passado, ao antigo Império da China ou estavam na sua órbita de influência. Acredito que os russos vão descobrir, à medida que a dependência da Rússia em relação à China aumentar, que os chineses vão colocar um monte de pressão no Extremo-Oriente.
A guerra na Ucrânia pode levar a uma total reformulação da ordem internacional?
Talvez seja muito cedo para dizer. Meu sentimento, no momento, é que essa é uma guerra realmente muito importante, que forçou o Ocidente a olhar de novo para quais são os seus valores, como deve trabalhar junto, e qual é o significado da OTAN, que estava esvaziada. De forma surpreendente, o Ocidente tem mostrado determinação - e os EUA têm mostrado liderança. O que deveria estar preocupando o Ocidente é que muitos países - na África e na América Latina, por exemplo – não querem escolher lados nesse conflito. A influência do Ocidente no mundo não-ocidental tem se mostrado muito menor. Penso também que alguns ditadores podem ver o exemplo de Putin e pensar: “eu também posso invadir meu vizinho e tomar territórios”. As pessoas acreditavam que o mundo tinha guerras civis, insurreições, mas que a guerra entre Estados tinha virado uma coisa do passado. A guerra na Ucrânia nos faz lembrar que há outras partes do mundo em que guerras entre Estados são muito possíveis. E não apenas entre EUA e China - e é por isso que Taiwan representa, de fato, uma situação muito perigosa. Veja a Índia e a China, que já tiveram conflitos armados em sua fronteira comum. Temos vários pontos inflamáveis no mundo.
A senhora escreveu livros sobre a 1ª Guerra Mundial e a Conferência de Paris de 1919. Há muitas comparações entre aquele período e o atual. Fazem sentido?
O mundo atual é muito diferente. Mas se você olha para 1914, há de fato algumas semelhanças: uma situação internacional instável, competição entre diferentes potências, a ameaça colocada por potências emergentes às potências estabelecidas, dificuldades internas que algumas lideranças achavam que poderiam ser resolvidas indo à guerra e unindo a nação, rivalidades econômicas, nacionalismos. O que sempre me chamou a atenção na 1ª Guerra Mundial foi a falha das lideranças nos momentos cruciais. Nós temos que esperar que, quando uma crise ocorrer, teremos lideranças capazes de dar um passo para trás quando estiverem à beira do abismo, e não se precipitar em direção a ele. Outro aspecto a ressaltar também em 1914 foi o papel do acidente. A maioria das pessoas não esperava ir a uma guerra, até que houve o assassinato do arquiduque Francisco Fernando (do Império Austro-Húngaro) em Saravejo. O que pode acontecer se houver um acidente no Mar do Sul da China, se um avião americano colidir com um chinês? Enfim, acho que temos que nos preocupar. Nenhum período é igual a outro, mas acho que a História serve como advertência.
O que a senhora pensa da atuação de Joe Biden como presidente dos EUA?
Sua atuação tem sido uma surpresa, porque havia a expectativa de que sua presidência seria fraca. O que surpreendeu talvez os aliados e os encorajou é que Biden mandou uma mensagem muito clara. Os Estados Unidos têm mostrado uma liderança real. Odeio pensar no que poderia estar ocorrendo se Trump estivesse agora na presidência. Suspeito que ele não faria nada para conter a Rússia porque Trump gostava de Putin.
E como analisa Xi Jinping, o líder chinês, que gostaria de recuperar o papel que a China já ocupou e se ressente da humilhação que teria sido imposta à China pelo Ocidente no século 19?
Acho que a História é muito importante para ele, porque ele fala muito sobre esse passado. As autoridades chinesas enfatizam o que eles chamam de educação patriótica nas escolas, onde gerações de crianças são ensinadas sobre a humilhação secular da China. Percebo também que toda vez que as autoridades chinesas se expressam, quando se defendem de críticas, elas fazem questão de dizer que as autoridades imperiais não têm o direito de dizer o que eles devem fazer. Xi é muito consciente do poder da China e o que ele pensa importa porque ele está no cume de um sistema de poder autoritário. Obviamente, ele tem de levar em conta a opinião pública e as diferentes forças que existem dentro da sociedade chinesa, mas, mais e mais, ele tenta exercer controle sobre ela. O perigo para ele é que, quanto mais acumula poderes e controles, mais ele será culpado pelo que acontecer de errado. E este ano não tem sido muito bom para ele. Os chineses não estão lidando bem com a pandemia de covid, ao contrário do que estavam achando; há muita resistência popular às medidas de lockdown; a economia chinesa está sofrendo. Ele também é absolutamente categórico em dizer que Taiwan faz parte da China e, ao contrário de seus predecessores, já disse que recorrerá à força, se necessário. Isso é muito preocupante.