Qual é a influência das artes visuais para o cinema?


Sempre se questiona se o cinema é a soma de todas as artes ou uma arte em si mesma

Por Donny Correia
David Lynch, diretor de 'Eraserhead', 'Twin Peaks' e 'Duna' 

A questão é perene e os debates, sempre polêmicos. Cinema é a soma de todas as artes, ou uma arte em si mesma? Não existe resposta para isso, aparentemente. Haverá aqueles que defenderão o filme como a arte genuína nascida da revolução antropológica da modernidade. Outros defenderão que é apenas uma soma da literatura, do teatro e da fotografia. Em tempos de filmes tão escancaradamente voltados ao consumo do entretenimento, com produções incensadas, em que a última coisa é, ou a narrativa, ou a estética, seria interessante pensar como o cinema se coloca diante das artes visuais, sobretudo quando ainda chegam ao agonizante mercado de home video relançamentos caprichados como as que nos disponibilizam distribuidoras do calibre da Versátil e da Obras-Primas do Cinema, que acaba de recolocar em circulação uma bela caixa de filmes expressionistas alemães.

Foi Jacques Aumont quem chamou os irmãos Lumière de “os últimos impressionistas”, alegando que a criação do cinematógrafo aleijou a arte figurativa do grupo de pintores encabeçado por Monet, Renoir, Degas. Para o escritor, já não havia mais sentido na pesquisa da passagem das horas por meio da luz e dos movimentos sugeridos pelas pinceladas impressionistas, já que o cinema deu ao público o real movimento das coisas. Este fenômeno não pode ser analisado de forma isolada. A modernidade colocou abaixo muitas das convicções sociais e artísticas dos velhos séculos iluministas. O século 20 viu as melhores expectativas positivistas ruírem com a guerra. Como bem observa Giulio Carlo Argan, a fuga dos pintores para uma poética da subjetividade, como os “fauve”, na França, e os integrantes do Die Brücke, na Alemanha, cunhariam o que conhecemos como expressionismo.

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Por outro lado, ainda estamos em tempo de celebrar os cem anos do surgimento do dadaísmo, forjado em meio a uma Europa esfacelada, um movimento cujos membros fundadores enxergariam o potencial da cinematografia para efeitos estéticos. Se a América podia se comover com um novato Chaplin, o mundo poderia pensar a partir da ruptura. Portanto, figuras como Hans Richter, Viking Eggelin, Man Ray e, até mesmo, Duchamp, renderam-se ao filme, abstraindo imagens em movimento tanto quanto o faziam em suas provocativas pinturas, colagens e assemblages.

Verdade que se tratam de filmes um tanto cifrados, como Rythmus 21, Emak Bakia e Anémic Cinéma. Somente no movimento cinematográfico conhecido como expressionismo alemão é que a narrativa se reconciliaria com a pintura das chamadas vanguardas históricas.

É preciso pensar o filme como resultado direto das rupturas do início do século 20, ao mesmo tempo que é o meio condutor para que o público tome contato com uma análise de seu tempo por meio da arte, fazendo com que ela cumpra seu papel de, também, problematizar e interpretar seu tempo.

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Em 1920, o pesadelo de uma Europa reconfigurada a fórceps se materializou nos cantos oblíquos e escuros das ruas de Holstenwall. O cinema alemão nos mostrou que somos o sonâmbulo Cesare eternamente a mercê de um Dr. Caligari, cuja onipresença opressora está solidamente diluída num Zeitgeist peculiar. Os cenários expressionistas pensados por artistas ligados ao grupo Der Blaue Reiter levaram para o cinema imensas imagens da distopia e do fracasso.

A partir desse momento, as narrativas tortuosas nos quadros de Picasso, Klee, de Chirico e Dalí tornaram-se tomadas experimentais do cinema europeu e, na sequência, do cinema mundial. Não haveria o Limite, de Mário Peixoto, sem os exercícios de câmera de Jean Epstein. Não haveria Cidadão Kane, ou o cinema noir, sem os doutores Mabuse e Caligari. Não haveria Eraserhead, e muito do cinema de David Lynch, sem Um Cão Andaluz. O diálogo estabelecido entre artes plásticas e cinema é tal, que até no Extremo Oriente se fez ressoar na obra-prima de Teinosuke Kinogasa, Uma Página de Loucura, de 1926.

O cinema de entretenimento, para fins utilitários, simplificou a fruição do espectador para que a mensagem final, o ópio da rotina, fosse incisivamente eficaz. Não obstante, todo o trauma psicossocial e histórico permanece no inconsciente coletivo, os fracassos de uma suposta modernidade redentora se acumularam ao ponto de conseguirmos, cada vez mais, nos reconhecer, ainda hoje, em cada grão das imagens distorcidas dos chamados filmes de vanguarda, este fenômeno que, em tempos de mídias cada vez mais efêmeras e dadas às necessidades da liquidez dos tempos, assegurou o espólio de uma história de quase 120 anos de arte.

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*Donny Correia é poeta e ensaísta, mestre e doutorando em estética e história da arte pela USP

David Lynch, diretor de 'Eraserhead', 'Twin Peaks' e 'Duna' 

A questão é perene e os debates, sempre polêmicos. Cinema é a soma de todas as artes, ou uma arte em si mesma? Não existe resposta para isso, aparentemente. Haverá aqueles que defenderão o filme como a arte genuína nascida da revolução antropológica da modernidade. Outros defenderão que é apenas uma soma da literatura, do teatro e da fotografia. Em tempos de filmes tão escancaradamente voltados ao consumo do entretenimento, com produções incensadas, em que a última coisa é, ou a narrativa, ou a estética, seria interessante pensar como o cinema se coloca diante das artes visuais, sobretudo quando ainda chegam ao agonizante mercado de home video relançamentos caprichados como as que nos disponibilizam distribuidoras do calibre da Versátil e da Obras-Primas do Cinema, que acaba de recolocar em circulação uma bela caixa de filmes expressionistas alemães.

Foi Jacques Aumont quem chamou os irmãos Lumière de “os últimos impressionistas”, alegando que a criação do cinematógrafo aleijou a arte figurativa do grupo de pintores encabeçado por Monet, Renoir, Degas. Para o escritor, já não havia mais sentido na pesquisa da passagem das horas por meio da luz e dos movimentos sugeridos pelas pinceladas impressionistas, já que o cinema deu ao público o real movimento das coisas. Este fenômeno não pode ser analisado de forma isolada. A modernidade colocou abaixo muitas das convicções sociais e artísticas dos velhos séculos iluministas. O século 20 viu as melhores expectativas positivistas ruírem com a guerra. Como bem observa Giulio Carlo Argan, a fuga dos pintores para uma poética da subjetividade, como os “fauve”, na França, e os integrantes do Die Brücke, na Alemanha, cunhariam o que conhecemos como expressionismo.

Por outro lado, ainda estamos em tempo de celebrar os cem anos do surgimento do dadaísmo, forjado em meio a uma Europa esfacelada, um movimento cujos membros fundadores enxergariam o potencial da cinematografia para efeitos estéticos. Se a América podia se comover com um novato Chaplin, o mundo poderia pensar a partir da ruptura. Portanto, figuras como Hans Richter, Viking Eggelin, Man Ray e, até mesmo, Duchamp, renderam-se ao filme, abstraindo imagens em movimento tanto quanto o faziam em suas provocativas pinturas, colagens e assemblages.

Verdade que se tratam de filmes um tanto cifrados, como Rythmus 21, Emak Bakia e Anémic Cinéma. Somente no movimento cinematográfico conhecido como expressionismo alemão é que a narrativa se reconciliaria com a pintura das chamadas vanguardas históricas.

É preciso pensar o filme como resultado direto das rupturas do início do século 20, ao mesmo tempo que é o meio condutor para que o público tome contato com uma análise de seu tempo por meio da arte, fazendo com que ela cumpra seu papel de, também, problematizar e interpretar seu tempo.

Em 1920, o pesadelo de uma Europa reconfigurada a fórceps se materializou nos cantos oblíquos e escuros das ruas de Holstenwall. O cinema alemão nos mostrou que somos o sonâmbulo Cesare eternamente a mercê de um Dr. Caligari, cuja onipresença opressora está solidamente diluída num Zeitgeist peculiar. Os cenários expressionistas pensados por artistas ligados ao grupo Der Blaue Reiter levaram para o cinema imensas imagens da distopia e do fracasso.

A partir desse momento, as narrativas tortuosas nos quadros de Picasso, Klee, de Chirico e Dalí tornaram-se tomadas experimentais do cinema europeu e, na sequência, do cinema mundial. Não haveria o Limite, de Mário Peixoto, sem os exercícios de câmera de Jean Epstein. Não haveria Cidadão Kane, ou o cinema noir, sem os doutores Mabuse e Caligari. Não haveria Eraserhead, e muito do cinema de David Lynch, sem Um Cão Andaluz. O diálogo estabelecido entre artes plásticas e cinema é tal, que até no Extremo Oriente se fez ressoar na obra-prima de Teinosuke Kinogasa, Uma Página de Loucura, de 1926.

O cinema de entretenimento, para fins utilitários, simplificou a fruição do espectador para que a mensagem final, o ópio da rotina, fosse incisivamente eficaz. Não obstante, todo o trauma psicossocial e histórico permanece no inconsciente coletivo, os fracassos de uma suposta modernidade redentora se acumularam ao ponto de conseguirmos, cada vez mais, nos reconhecer, ainda hoje, em cada grão das imagens distorcidas dos chamados filmes de vanguarda, este fenômeno que, em tempos de mídias cada vez mais efêmeras e dadas às necessidades da liquidez dos tempos, assegurou o espólio de uma história de quase 120 anos de arte.

*Donny Correia é poeta e ensaísta, mestre e doutorando em estética e história da arte pela USP

David Lynch, diretor de 'Eraserhead', 'Twin Peaks' e 'Duna' 

A questão é perene e os debates, sempre polêmicos. Cinema é a soma de todas as artes, ou uma arte em si mesma? Não existe resposta para isso, aparentemente. Haverá aqueles que defenderão o filme como a arte genuína nascida da revolução antropológica da modernidade. Outros defenderão que é apenas uma soma da literatura, do teatro e da fotografia. Em tempos de filmes tão escancaradamente voltados ao consumo do entretenimento, com produções incensadas, em que a última coisa é, ou a narrativa, ou a estética, seria interessante pensar como o cinema se coloca diante das artes visuais, sobretudo quando ainda chegam ao agonizante mercado de home video relançamentos caprichados como as que nos disponibilizam distribuidoras do calibre da Versátil e da Obras-Primas do Cinema, que acaba de recolocar em circulação uma bela caixa de filmes expressionistas alemães.

Foi Jacques Aumont quem chamou os irmãos Lumière de “os últimos impressionistas”, alegando que a criação do cinematógrafo aleijou a arte figurativa do grupo de pintores encabeçado por Monet, Renoir, Degas. Para o escritor, já não havia mais sentido na pesquisa da passagem das horas por meio da luz e dos movimentos sugeridos pelas pinceladas impressionistas, já que o cinema deu ao público o real movimento das coisas. Este fenômeno não pode ser analisado de forma isolada. A modernidade colocou abaixo muitas das convicções sociais e artísticas dos velhos séculos iluministas. O século 20 viu as melhores expectativas positivistas ruírem com a guerra. Como bem observa Giulio Carlo Argan, a fuga dos pintores para uma poética da subjetividade, como os “fauve”, na França, e os integrantes do Die Brücke, na Alemanha, cunhariam o que conhecemos como expressionismo.

Por outro lado, ainda estamos em tempo de celebrar os cem anos do surgimento do dadaísmo, forjado em meio a uma Europa esfacelada, um movimento cujos membros fundadores enxergariam o potencial da cinematografia para efeitos estéticos. Se a América podia se comover com um novato Chaplin, o mundo poderia pensar a partir da ruptura. Portanto, figuras como Hans Richter, Viking Eggelin, Man Ray e, até mesmo, Duchamp, renderam-se ao filme, abstraindo imagens em movimento tanto quanto o faziam em suas provocativas pinturas, colagens e assemblages.

Verdade que se tratam de filmes um tanto cifrados, como Rythmus 21, Emak Bakia e Anémic Cinéma. Somente no movimento cinematográfico conhecido como expressionismo alemão é que a narrativa se reconciliaria com a pintura das chamadas vanguardas históricas.

É preciso pensar o filme como resultado direto das rupturas do início do século 20, ao mesmo tempo que é o meio condutor para que o público tome contato com uma análise de seu tempo por meio da arte, fazendo com que ela cumpra seu papel de, também, problematizar e interpretar seu tempo.

Em 1920, o pesadelo de uma Europa reconfigurada a fórceps se materializou nos cantos oblíquos e escuros das ruas de Holstenwall. O cinema alemão nos mostrou que somos o sonâmbulo Cesare eternamente a mercê de um Dr. Caligari, cuja onipresença opressora está solidamente diluída num Zeitgeist peculiar. Os cenários expressionistas pensados por artistas ligados ao grupo Der Blaue Reiter levaram para o cinema imensas imagens da distopia e do fracasso.

A partir desse momento, as narrativas tortuosas nos quadros de Picasso, Klee, de Chirico e Dalí tornaram-se tomadas experimentais do cinema europeu e, na sequência, do cinema mundial. Não haveria o Limite, de Mário Peixoto, sem os exercícios de câmera de Jean Epstein. Não haveria Cidadão Kane, ou o cinema noir, sem os doutores Mabuse e Caligari. Não haveria Eraserhead, e muito do cinema de David Lynch, sem Um Cão Andaluz. O diálogo estabelecido entre artes plásticas e cinema é tal, que até no Extremo Oriente se fez ressoar na obra-prima de Teinosuke Kinogasa, Uma Página de Loucura, de 1926.

O cinema de entretenimento, para fins utilitários, simplificou a fruição do espectador para que a mensagem final, o ópio da rotina, fosse incisivamente eficaz. Não obstante, todo o trauma psicossocial e histórico permanece no inconsciente coletivo, os fracassos de uma suposta modernidade redentora se acumularam ao ponto de conseguirmos, cada vez mais, nos reconhecer, ainda hoje, em cada grão das imagens distorcidas dos chamados filmes de vanguarda, este fenômeno que, em tempos de mídias cada vez mais efêmeras e dadas às necessidades da liquidez dos tempos, assegurou o espólio de uma história de quase 120 anos de arte.

*Donny Correia é poeta e ensaísta, mestre e doutorando em estética e história da arte pela USP

David Lynch, diretor de 'Eraserhead', 'Twin Peaks' e 'Duna' 

A questão é perene e os debates, sempre polêmicos. Cinema é a soma de todas as artes, ou uma arte em si mesma? Não existe resposta para isso, aparentemente. Haverá aqueles que defenderão o filme como a arte genuína nascida da revolução antropológica da modernidade. Outros defenderão que é apenas uma soma da literatura, do teatro e da fotografia. Em tempos de filmes tão escancaradamente voltados ao consumo do entretenimento, com produções incensadas, em que a última coisa é, ou a narrativa, ou a estética, seria interessante pensar como o cinema se coloca diante das artes visuais, sobretudo quando ainda chegam ao agonizante mercado de home video relançamentos caprichados como as que nos disponibilizam distribuidoras do calibre da Versátil e da Obras-Primas do Cinema, que acaba de recolocar em circulação uma bela caixa de filmes expressionistas alemães.

Foi Jacques Aumont quem chamou os irmãos Lumière de “os últimos impressionistas”, alegando que a criação do cinematógrafo aleijou a arte figurativa do grupo de pintores encabeçado por Monet, Renoir, Degas. Para o escritor, já não havia mais sentido na pesquisa da passagem das horas por meio da luz e dos movimentos sugeridos pelas pinceladas impressionistas, já que o cinema deu ao público o real movimento das coisas. Este fenômeno não pode ser analisado de forma isolada. A modernidade colocou abaixo muitas das convicções sociais e artísticas dos velhos séculos iluministas. O século 20 viu as melhores expectativas positivistas ruírem com a guerra. Como bem observa Giulio Carlo Argan, a fuga dos pintores para uma poética da subjetividade, como os “fauve”, na França, e os integrantes do Die Brücke, na Alemanha, cunhariam o que conhecemos como expressionismo.

Por outro lado, ainda estamos em tempo de celebrar os cem anos do surgimento do dadaísmo, forjado em meio a uma Europa esfacelada, um movimento cujos membros fundadores enxergariam o potencial da cinematografia para efeitos estéticos. Se a América podia se comover com um novato Chaplin, o mundo poderia pensar a partir da ruptura. Portanto, figuras como Hans Richter, Viking Eggelin, Man Ray e, até mesmo, Duchamp, renderam-se ao filme, abstraindo imagens em movimento tanto quanto o faziam em suas provocativas pinturas, colagens e assemblages.

Verdade que se tratam de filmes um tanto cifrados, como Rythmus 21, Emak Bakia e Anémic Cinéma. Somente no movimento cinematográfico conhecido como expressionismo alemão é que a narrativa se reconciliaria com a pintura das chamadas vanguardas históricas.

É preciso pensar o filme como resultado direto das rupturas do início do século 20, ao mesmo tempo que é o meio condutor para que o público tome contato com uma análise de seu tempo por meio da arte, fazendo com que ela cumpra seu papel de, também, problematizar e interpretar seu tempo.

Em 1920, o pesadelo de uma Europa reconfigurada a fórceps se materializou nos cantos oblíquos e escuros das ruas de Holstenwall. O cinema alemão nos mostrou que somos o sonâmbulo Cesare eternamente a mercê de um Dr. Caligari, cuja onipresença opressora está solidamente diluída num Zeitgeist peculiar. Os cenários expressionistas pensados por artistas ligados ao grupo Der Blaue Reiter levaram para o cinema imensas imagens da distopia e do fracasso.

A partir desse momento, as narrativas tortuosas nos quadros de Picasso, Klee, de Chirico e Dalí tornaram-se tomadas experimentais do cinema europeu e, na sequência, do cinema mundial. Não haveria o Limite, de Mário Peixoto, sem os exercícios de câmera de Jean Epstein. Não haveria Cidadão Kane, ou o cinema noir, sem os doutores Mabuse e Caligari. Não haveria Eraserhead, e muito do cinema de David Lynch, sem Um Cão Andaluz. O diálogo estabelecido entre artes plásticas e cinema é tal, que até no Extremo Oriente se fez ressoar na obra-prima de Teinosuke Kinogasa, Uma Página de Loucura, de 1926.

O cinema de entretenimento, para fins utilitários, simplificou a fruição do espectador para que a mensagem final, o ópio da rotina, fosse incisivamente eficaz. Não obstante, todo o trauma psicossocial e histórico permanece no inconsciente coletivo, os fracassos de uma suposta modernidade redentora se acumularam ao ponto de conseguirmos, cada vez mais, nos reconhecer, ainda hoje, em cada grão das imagens distorcidas dos chamados filmes de vanguarda, este fenômeno que, em tempos de mídias cada vez mais efêmeras e dadas às necessidades da liquidez dos tempos, assegurou o espólio de uma história de quase 120 anos de arte.

*Donny Correia é poeta e ensaísta, mestre e doutorando em estética e história da arte pela USP

David Lynch, diretor de 'Eraserhead', 'Twin Peaks' e 'Duna' 

A questão é perene e os debates, sempre polêmicos. Cinema é a soma de todas as artes, ou uma arte em si mesma? Não existe resposta para isso, aparentemente. Haverá aqueles que defenderão o filme como a arte genuína nascida da revolução antropológica da modernidade. Outros defenderão que é apenas uma soma da literatura, do teatro e da fotografia. Em tempos de filmes tão escancaradamente voltados ao consumo do entretenimento, com produções incensadas, em que a última coisa é, ou a narrativa, ou a estética, seria interessante pensar como o cinema se coloca diante das artes visuais, sobretudo quando ainda chegam ao agonizante mercado de home video relançamentos caprichados como as que nos disponibilizam distribuidoras do calibre da Versátil e da Obras-Primas do Cinema, que acaba de recolocar em circulação uma bela caixa de filmes expressionistas alemães.

Foi Jacques Aumont quem chamou os irmãos Lumière de “os últimos impressionistas”, alegando que a criação do cinematógrafo aleijou a arte figurativa do grupo de pintores encabeçado por Monet, Renoir, Degas. Para o escritor, já não havia mais sentido na pesquisa da passagem das horas por meio da luz e dos movimentos sugeridos pelas pinceladas impressionistas, já que o cinema deu ao público o real movimento das coisas. Este fenômeno não pode ser analisado de forma isolada. A modernidade colocou abaixo muitas das convicções sociais e artísticas dos velhos séculos iluministas. O século 20 viu as melhores expectativas positivistas ruírem com a guerra. Como bem observa Giulio Carlo Argan, a fuga dos pintores para uma poética da subjetividade, como os “fauve”, na França, e os integrantes do Die Brücke, na Alemanha, cunhariam o que conhecemos como expressionismo.

Por outro lado, ainda estamos em tempo de celebrar os cem anos do surgimento do dadaísmo, forjado em meio a uma Europa esfacelada, um movimento cujos membros fundadores enxergariam o potencial da cinematografia para efeitos estéticos. Se a América podia se comover com um novato Chaplin, o mundo poderia pensar a partir da ruptura. Portanto, figuras como Hans Richter, Viking Eggelin, Man Ray e, até mesmo, Duchamp, renderam-se ao filme, abstraindo imagens em movimento tanto quanto o faziam em suas provocativas pinturas, colagens e assemblages.

Verdade que se tratam de filmes um tanto cifrados, como Rythmus 21, Emak Bakia e Anémic Cinéma. Somente no movimento cinematográfico conhecido como expressionismo alemão é que a narrativa se reconciliaria com a pintura das chamadas vanguardas históricas.

É preciso pensar o filme como resultado direto das rupturas do início do século 20, ao mesmo tempo que é o meio condutor para que o público tome contato com uma análise de seu tempo por meio da arte, fazendo com que ela cumpra seu papel de, também, problematizar e interpretar seu tempo.

Em 1920, o pesadelo de uma Europa reconfigurada a fórceps se materializou nos cantos oblíquos e escuros das ruas de Holstenwall. O cinema alemão nos mostrou que somos o sonâmbulo Cesare eternamente a mercê de um Dr. Caligari, cuja onipresença opressora está solidamente diluída num Zeitgeist peculiar. Os cenários expressionistas pensados por artistas ligados ao grupo Der Blaue Reiter levaram para o cinema imensas imagens da distopia e do fracasso.

A partir desse momento, as narrativas tortuosas nos quadros de Picasso, Klee, de Chirico e Dalí tornaram-se tomadas experimentais do cinema europeu e, na sequência, do cinema mundial. Não haveria o Limite, de Mário Peixoto, sem os exercícios de câmera de Jean Epstein. Não haveria Cidadão Kane, ou o cinema noir, sem os doutores Mabuse e Caligari. Não haveria Eraserhead, e muito do cinema de David Lynch, sem Um Cão Andaluz. O diálogo estabelecido entre artes plásticas e cinema é tal, que até no Extremo Oriente se fez ressoar na obra-prima de Teinosuke Kinogasa, Uma Página de Loucura, de 1926.

O cinema de entretenimento, para fins utilitários, simplificou a fruição do espectador para que a mensagem final, o ópio da rotina, fosse incisivamente eficaz. Não obstante, todo o trauma psicossocial e histórico permanece no inconsciente coletivo, os fracassos de uma suposta modernidade redentora se acumularam ao ponto de conseguirmos, cada vez mais, nos reconhecer, ainda hoje, em cada grão das imagens distorcidas dos chamados filmes de vanguarda, este fenômeno que, em tempos de mídias cada vez mais efêmeras e dadas às necessidades da liquidez dos tempos, assegurou o espólio de uma história de quase 120 anos de arte.

*Donny Correia é poeta e ensaísta, mestre e doutorando em estética e história da arte pela USP

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