Em meados dos anos 1990 era de bom tom dizer-se um atento espectador do cinema iraniano entre as rodas de intelectuais e críticos. As principais mostras de cinema e a mídia especializada incensavam o exotismo das imagens do oriente médio capturadas por cineastas como Jafar Panahi, Majid Majidi e Samira Makhmalbaf. A idolatria dissipou-se rapidamente, dando espaço ao que há de realmente importante naquela produção.
Abbas Kiarostami, cineasta, artista visual, fotógrafo e poeta, que se destacou e se consolidou, passada a coqueluche, é dono de uma obra que parece exótica e indulgente demais numa primeira análise, mas se revela extremamente inventiva, de profunda reflexão sobre o papel do cinema como arte. Um box lançado recentemente traz uma seleção de filmes dirigidos por ele nos anos 1990.
Em Close Up (1991), um pobre rapaz, sem futuro, amante do cinema, resolve se passar pelo cineasta Mohsen Makhmalbaf – outro expoente do novo cinema iraniano –, seu ídolo, e engana uma família de classe média, em Teerã, apenas para se sentir mais próximo da arte e do artista que admira e para sentir-se minimamente relevante no contexto de uma capital que acumula desespero e anonimato compulsórios. Ao ser descoberto, o jovem é detido e vai ao tribunal, julgado por fraude. Embora negue que tivesse más intenções, como assaltar a residência da família que confiara nele, Sbzian não nega que fingiu ser seu ídolo, mas o fez por um impulso fortuito de quem almeja ser um alguém. Kiarostami recrutou todos os envolvidos no processo. A família, o jovem, as testemunhas e até mesmo Makhmalbaf, e recriou toda a ação do tribunal, que consome boa parte do filme. Colocou diante da câmera uma história verídica contada por seus próprios protagonistas, não como peça documental, mas como investigação sobre os limites que separam a narrativa cinematográfica convencional da capacidade que tem o cinema para traduzir uma verdade para além da ficção.
Em Através das Oliveiras (1994), um de seus maiores êxitos, Kiarostami narra a visita de uma equipe de filmagens que está realizando uma obra sobre um grande terremoto que assolou uma vila distante no ano de 1993. Entre escombros reais e vastos campos de oliveiras, conhecemos o amor impossível entre Houssein e Tahere. Ambos estão atuando para o diretor, representando a si próprios. O rapaz deseja casar-se com a moça, mas a avó da menina proíbe o matrimônio, dada a pobreza material de Houssen, que não possui nem um teto e nem um emprego. Entre o que ocorre na vida real desses personagens e aquilo que exige o personagem do diretor há um espelhamento da miséria e das rígidas tradições muçulmanas que impedem a realização da felicidade. Quase não há ação, no sentido que conhecemos, ao longo dos quase 100 minutos de projeção. No entanto, com alguma atenção, o espectador irá logo se dar conta do estilo de Kiarostami, que aborda tensões muito mais dramáticas sob a ótica de cada indivíduo que posa diante de sua lente.
Em Gosto de Cereja (1997), Kiarostami discute a legitimidade do suicídio, o sentido de uma vida frustrada e a possibilidade de redenção pela sensibilidade aos bons auspícios que a própria natureza, por mais tirana que seja, oferece. Em meio a uma pedreira, nos arrabaldes de Teerã, Badii, homem de meia idade, amargurado, decide tirar sua vida e perambula pelas cercanias em busca de alguém que o ajude a realizar o último desejo: ser enterrado junto a uma cerejeira. Basicamente, o filme se desenrola a partir de encontros e desencontros de Badii com personagens distintos, que, ao fim, parecem fazê-lo reconsiderar sua decisão ou, ao menos, amadurecer a razão de suas angústias antes do ato derradeiro. O diretor, no entanto, não nos concede o direito de conhecer a decisão de seu personagem.
Tão enigmático quanto esse filme, é O Vento nos Levará (1999), que nos apresenta um forasteiro recém-chegado a um vilarejo remoto, onde passa a ser conhecido como “O engenheiro”, num local de poucos recursos, em que a vida é quase medieval, esse estrangeiro parece preocupado com a saúde de um familiar agonizante, que ali reside, – embora jamais vejamos quem é o moribundo – mas também dispensa bastante interesse em conhecer os meandros do cotidiano simplório dos cidadãos locais. Numa sucessão de sequências repetidas em que o engenheiro sobe a montanha para poder se comunicar por um rudimentar celular com pessoas que nunca saberemos quem são, logo percebemos que não há importância alguma nas razões pelas quais esse personagem está onde está.
O que interessa é assistir ao despertar que lhe arrebata pelo simples convívio deslocado de sua realidade, e à maneira como sua presença afeta a rotina dos habitantes que com ele interagem. Classificar a estética de Abbas Kiarostami é um empenho vão, já que não se trata nem de dramatização nem de documentários. Longe dessa dicotomia de gêneros, o cineasta engendra uma obra que busca na vida comum, nas situações ordinárias, a interação entre a ficção da vida real a documentação visual de uma existência palpável.
Seus atores não são atores, portanto, não atuam. São personagens comuns, que não improvisam falas, mas se expressam naturalmente. O que vivem diante de uma câmera parece ser o que vivem quando ela não está por perto. A diferença está na espécie de reificação de uma história pessoal imaginada, que potencializa a verdade. Os filmes de Kiarostami não têm compromisso com nada além de uma existência que só se pode realizar na tela, na decupagem minimalista dos planos e nas longas sequências, sejam em planos abertos ou em mais próximos, intimistas. Em suma, trata-se de um cinema distante dos ditames e convenções a que nos habituamos. Por isso, muito mais que filmes, as obras de Kiarostami são experiências para serem absorvidas num espectro que o cinema ainda não decifrou por completo.*DONNY CORREIA É DOUTOR EM ESTÉTICA E HISTÓRIA DA ARTE PELA USP, AUTOR DE ‘CINEFILIA CRÔNICA – COMENTÁRIOS SOBRE O FILME DE INVENÇÃO’ (DESCONCERTOS EDITORA, 2019)