Raimundo Carrero retorna aos contos refletindo sobre a violência


Escritor pernambucano volta à ficção breve, formato que lhe rendeu o Jabuti, com o novo livro 'Estão Matando os Meninos'

Por Ney Anderson

Depois de 21 anos do lançamento do seu primeiro (e até então único) e premiado livro de contos As Sombrias Ruínas da Alma, que lhe rendeu o Jabuti, o pernambucano Raimundo Carrero retorna ao formato com Estão Matando os Meninos (Iluminuras) para dar voz aos acossados pela injustiça social que vem destruindo todos os dias meninos e meninas, moradores das periferias brasileiras, que têm o sonho interrompido por mortes prematuras por estarem no meio do fogo cruzado de uma guerra sem fim. 

Viela onde nove jovens morreram pisoteados em ação da PM em baile funk em Paraisópolis Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Nas histórias, acompanhamos vítimas de balas perdidas, pessoas humildes que tentam seguir a rotina, mas que em questão de segundos acabam sendo o alvo, no confronto entre polícia, milicianos, traficantes e bandidos de toda ordem. O título não poderia ser mais cirúrgico, porque nessa guerra, os mais vulneráveis acabam pagando um alto preço. São assassinados dentro das escolas, nos becos dos morros e nas próprias casas. Isso tudo chancelado pelo silêncio das autoridades ou por justificativas que não servem para absolutamente nada.  Nos 14 contos, divididos em três capítulos intitulados Carta ao Mundo, começando pela quarta carta até a sexta, Carrero resgata alguns personagens da sua literatura, atualizando a complexidade do ser humano que, neste caso, não poupa esforços para matar, causando sempre dor e desespero. É uma obra que denuncia um país onde os pobres são meros fragmentos.  Os personagens são pessoas que já pagam o preço da miséria, do enorme buraco social, sem perspectiva de futuro, que precisam conviver, muitas vezes, com a fome. Garotos que tentam o sustento nas ruas para não sucumbir à miséria. A fome que humilha, que se junta ao banho de sangue. “Quem matou minha filha?”, grita uma mãe sufocada pelo vazio da ausência, o silêncio das respostas e a imensa inutilidade do choro. Arcassanta, território fictício da obra, aparece de múltiplas formas neste livro. Sendo um bairro, cidade, rua, estação de trem, beco ou edifício de luxo. Arcassanta é o mistério dentro do mistério na cidade do Recife, mudando o tempo todo, se deslocando pela representação dos fatos narrados.  É um livro fortemente marcado pela desesperança. A lente do autor gira para outras situações, não se prende ao tema único. Estão Matando os Meninos é também sobre o garoto que resolve ajudar um cego artista de rua em troca de algum dinheiro, mas que num ato de desespero come restos de frutas misturadas na lama no final do dia. É a tristeza de Amelinha, de apenas nove anos (mas com o rosto cheio de rugas), em ver os pais assassinados e ter a humilde casa na favela incendiada.  É a passarela de Salatiel, homem que desde cedo conhece as dores do mundo. E a idosa que vive sozinha, e é esfaqueada pelas costas, dentro do próprio apartamento no bairro de classe média alta. E ainda sobre a convivência desarmoniosa de um casal durante a pandemia, tendo que ceder espaços no isolamento social. Ou o casal, em lua de mel, que desfruta da noite de amor, mesmo com o tiroteio na rua, por já estarem acostumados com o absurdo da violência.  Acompanhamos a vida de Judá, o jogador de futebol desprezado por ter perdido um pênalti na final do campeonato. E o protesto contra o racismo depois da morte de George Floyd, nos Estados Unidos. Pessoas perseguidas por serem negras. Além da reflexão sobre o protagonismo de Greta Thunberg e Malala Yousafzai, meninas que lideram movimentos globais, mesmo com pouquíssima idade.  Tudo isso sem deixar o livro confuso, ou tirando o objetivo da obra, porque os elementos fazem parte do mesmo universo trágico. O texto é límpido, solto e as metáforas residem no conjunto cru da tragédia humana, aqui tratada com desdém, por pessoas que não sabem, mas extinguem-se elas próprias, e nem se dão conta disso. Por isso que a morte neste livro poderoso, é um alerta. A força do mal traga para dentro do seu infortúnio as almas que não podem clamar por justiça.  São contos com muitas visões. Todos, claro, pendendo para a tragédia. Mesmo quando não há morte, ela está lá, subentendida. É uma obra aberta e abrangente, mas sem deixar de lado o sombrio, uma das marcas do autor pernambucano.  Produzido durante o isolamento social, principalmente nos meses de julho e agosto, o volume de contos consumiu várias horas do dia do escritor.  “Fiquei trancado em casa escrevendo, escrevendo, escrevendo, com muita emoção sob temas contemporâneos. E a morte desses meninos estava me doendo muito. Eu tinha que escrever este livro, era inevitável. Me exigiu muito esforço físico e mental”, diz o autor. As “cartas ao mundo” que intitulam os capítulos, por exemplo, são uma espécie de repreensão às autoridades em todos os níveis, clamando por harmonia social, solidariedade e paz, denunciando o horror do mundo contemporâneo. O livro é um projeto lítero/sócio/político.  Estão Matando os Meninos deve repercutir entre os leitores de uma forma geral. Porque inquieta profundamente e nos mostra que a realidade não é apenas uma suposição literária.  “Um momento. Só um momento em silêncio. Dois nordestinos extraviados. O filho assassinado. Rasgado de balas de rifle. Mataram Jorge, meu filho. Estão matando os meninos. Os homens chegam atirando e matam. Quem cuida da alma é Deus. Agora eu cuido do corpo… do que resta do corpo. Descobre desalentado que o barulho, os ouvidos, as vozes não veem de fora, estão na alma, encravados no sangue. A intensa crueldade das balas cruzando os dias para se entrincheirar no corpo dos meninos. Sem ter quem os defenda. Nunca. Escutara. Nem mesmo a lei. Nunca esqueceria aquele rosto sangrando. O olho de João atingido. Mesmo no olho, não é assim que se diz? A exposição macabra dos filhos mortos. — Na escola matam logo…  — Basta empurrar o portão da escola e matam. — Matrícula é sentença de morte.  — Como?  — Quando você assina uma matricula, assina a sentença de morte do filho.”

Depois de 21 anos do lançamento do seu primeiro (e até então único) e premiado livro de contos As Sombrias Ruínas da Alma, que lhe rendeu o Jabuti, o pernambucano Raimundo Carrero retorna ao formato com Estão Matando os Meninos (Iluminuras) para dar voz aos acossados pela injustiça social que vem destruindo todos os dias meninos e meninas, moradores das periferias brasileiras, que têm o sonho interrompido por mortes prematuras por estarem no meio do fogo cruzado de uma guerra sem fim. 

Viela onde nove jovens morreram pisoteados em ação da PM em baile funk em Paraisópolis Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Nas histórias, acompanhamos vítimas de balas perdidas, pessoas humildes que tentam seguir a rotina, mas que em questão de segundos acabam sendo o alvo, no confronto entre polícia, milicianos, traficantes e bandidos de toda ordem. O título não poderia ser mais cirúrgico, porque nessa guerra, os mais vulneráveis acabam pagando um alto preço. São assassinados dentro das escolas, nos becos dos morros e nas próprias casas. Isso tudo chancelado pelo silêncio das autoridades ou por justificativas que não servem para absolutamente nada.  Nos 14 contos, divididos em três capítulos intitulados Carta ao Mundo, começando pela quarta carta até a sexta, Carrero resgata alguns personagens da sua literatura, atualizando a complexidade do ser humano que, neste caso, não poupa esforços para matar, causando sempre dor e desespero. É uma obra que denuncia um país onde os pobres são meros fragmentos.  Os personagens são pessoas que já pagam o preço da miséria, do enorme buraco social, sem perspectiva de futuro, que precisam conviver, muitas vezes, com a fome. Garotos que tentam o sustento nas ruas para não sucumbir à miséria. A fome que humilha, que se junta ao banho de sangue. “Quem matou minha filha?”, grita uma mãe sufocada pelo vazio da ausência, o silêncio das respostas e a imensa inutilidade do choro. Arcassanta, território fictício da obra, aparece de múltiplas formas neste livro. Sendo um bairro, cidade, rua, estação de trem, beco ou edifício de luxo. Arcassanta é o mistério dentro do mistério na cidade do Recife, mudando o tempo todo, se deslocando pela representação dos fatos narrados.  É um livro fortemente marcado pela desesperança. A lente do autor gira para outras situações, não se prende ao tema único. Estão Matando os Meninos é também sobre o garoto que resolve ajudar um cego artista de rua em troca de algum dinheiro, mas que num ato de desespero come restos de frutas misturadas na lama no final do dia. É a tristeza de Amelinha, de apenas nove anos (mas com o rosto cheio de rugas), em ver os pais assassinados e ter a humilde casa na favela incendiada.  É a passarela de Salatiel, homem que desde cedo conhece as dores do mundo. E a idosa que vive sozinha, e é esfaqueada pelas costas, dentro do próprio apartamento no bairro de classe média alta. E ainda sobre a convivência desarmoniosa de um casal durante a pandemia, tendo que ceder espaços no isolamento social. Ou o casal, em lua de mel, que desfruta da noite de amor, mesmo com o tiroteio na rua, por já estarem acostumados com o absurdo da violência.  Acompanhamos a vida de Judá, o jogador de futebol desprezado por ter perdido um pênalti na final do campeonato. E o protesto contra o racismo depois da morte de George Floyd, nos Estados Unidos. Pessoas perseguidas por serem negras. Além da reflexão sobre o protagonismo de Greta Thunberg e Malala Yousafzai, meninas que lideram movimentos globais, mesmo com pouquíssima idade.  Tudo isso sem deixar o livro confuso, ou tirando o objetivo da obra, porque os elementos fazem parte do mesmo universo trágico. O texto é límpido, solto e as metáforas residem no conjunto cru da tragédia humana, aqui tratada com desdém, por pessoas que não sabem, mas extinguem-se elas próprias, e nem se dão conta disso. Por isso que a morte neste livro poderoso, é um alerta. A força do mal traga para dentro do seu infortúnio as almas que não podem clamar por justiça.  São contos com muitas visões. Todos, claro, pendendo para a tragédia. Mesmo quando não há morte, ela está lá, subentendida. É uma obra aberta e abrangente, mas sem deixar de lado o sombrio, uma das marcas do autor pernambucano.  Produzido durante o isolamento social, principalmente nos meses de julho e agosto, o volume de contos consumiu várias horas do dia do escritor.  “Fiquei trancado em casa escrevendo, escrevendo, escrevendo, com muita emoção sob temas contemporâneos. E a morte desses meninos estava me doendo muito. Eu tinha que escrever este livro, era inevitável. Me exigiu muito esforço físico e mental”, diz o autor. As “cartas ao mundo” que intitulam os capítulos, por exemplo, são uma espécie de repreensão às autoridades em todos os níveis, clamando por harmonia social, solidariedade e paz, denunciando o horror do mundo contemporâneo. O livro é um projeto lítero/sócio/político.  Estão Matando os Meninos deve repercutir entre os leitores de uma forma geral. Porque inquieta profundamente e nos mostra que a realidade não é apenas uma suposição literária.  “Um momento. Só um momento em silêncio. Dois nordestinos extraviados. O filho assassinado. Rasgado de balas de rifle. Mataram Jorge, meu filho. Estão matando os meninos. Os homens chegam atirando e matam. Quem cuida da alma é Deus. Agora eu cuido do corpo… do que resta do corpo. Descobre desalentado que o barulho, os ouvidos, as vozes não veem de fora, estão na alma, encravados no sangue. A intensa crueldade das balas cruzando os dias para se entrincheirar no corpo dos meninos. Sem ter quem os defenda. Nunca. Escutara. Nem mesmo a lei. Nunca esqueceria aquele rosto sangrando. O olho de João atingido. Mesmo no olho, não é assim que se diz? A exposição macabra dos filhos mortos. — Na escola matam logo…  — Basta empurrar o portão da escola e matam. — Matrícula é sentença de morte.  — Como?  — Quando você assina uma matricula, assina a sentença de morte do filho.”

Depois de 21 anos do lançamento do seu primeiro (e até então único) e premiado livro de contos As Sombrias Ruínas da Alma, que lhe rendeu o Jabuti, o pernambucano Raimundo Carrero retorna ao formato com Estão Matando os Meninos (Iluminuras) para dar voz aos acossados pela injustiça social que vem destruindo todos os dias meninos e meninas, moradores das periferias brasileiras, que têm o sonho interrompido por mortes prematuras por estarem no meio do fogo cruzado de uma guerra sem fim. 

Viela onde nove jovens morreram pisoteados em ação da PM em baile funk em Paraisópolis Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Nas histórias, acompanhamos vítimas de balas perdidas, pessoas humildes que tentam seguir a rotina, mas que em questão de segundos acabam sendo o alvo, no confronto entre polícia, milicianos, traficantes e bandidos de toda ordem. O título não poderia ser mais cirúrgico, porque nessa guerra, os mais vulneráveis acabam pagando um alto preço. São assassinados dentro das escolas, nos becos dos morros e nas próprias casas. Isso tudo chancelado pelo silêncio das autoridades ou por justificativas que não servem para absolutamente nada.  Nos 14 contos, divididos em três capítulos intitulados Carta ao Mundo, começando pela quarta carta até a sexta, Carrero resgata alguns personagens da sua literatura, atualizando a complexidade do ser humano que, neste caso, não poupa esforços para matar, causando sempre dor e desespero. É uma obra que denuncia um país onde os pobres são meros fragmentos.  Os personagens são pessoas que já pagam o preço da miséria, do enorme buraco social, sem perspectiva de futuro, que precisam conviver, muitas vezes, com a fome. Garotos que tentam o sustento nas ruas para não sucumbir à miséria. A fome que humilha, que se junta ao banho de sangue. “Quem matou minha filha?”, grita uma mãe sufocada pelo vazio da ausência, o silêncio das respostas e a imensa inutilidade do choro. Arcassanta, território fictício da obra, aparece de múltiplas formas neste livro. Sendo um bairro, cidade, rua, estação de trem, beco ou edifício de luxo. Arcassanta é o mistério dentro do mistério na cidade do Recife, mudando o tempo todo, se deslocando pela representação dos fatos narrados.  É um livro fortemente marcado pela desesperança. A lente do autor gira para outras situações, não se prende ao tema único. Estão Matando os Meninos é também sobre o garoto que resolve ajudar um cego artista de rua em troca de algum dinheiro, mas que num ato de desespero come restos de frutas misturadas na lama no final do dia. É a tristeza de Amelinha, de apenas nove anos (mas com o rosto cheio de rugas), em ver os pais assassinados e ter a humilde casa na favela incendiada.  É a passarela de Salatiel, homem que desde cedo conhece as dores do mundo. E a idosa que vive sozinha, e é esfaqueada pelas costas, dentro do próprio apartamento no bairro de classe média alta. E ainda sobre a convivência desarmoniosa de um casal durante a pandemia, tendo que ceder espaços no isolamento social. Ou o casal, em lua de mel, que desfruta da noite de amor, mesmo com o tiroteio na rua, por já estarem acostumados com o absurdo da violência.  Acompanhamos a vida de Judá, o jogador de futebol desprezado por ter perdido um pênalti na final do campeonato. E o protesto contra o racismo depois da morte de George Floyd, nos Estados Unidos. Pessoas perseguidas por serem negras. Além da reflexão sobre o protagonismo de Greta Thunberg e Malala Yousafzai, meninas que lideram movimentos globais, mesmo com pouquíssima idade.  Tudo isso sem deixar o livro confuso, ou tirando o objetivo da obra, porque os elementos fazem parte do mesmo universo trágico. O texto é límpido, solto e as metáforas residem no conjunto cru da tragédia humana, aqui tratada com desdém, por pessoas que não sabem, mas extinguem-se elas próprias, e nem se dão conta disso. Por isso que a morte neste livro poderoso, é um alerta. A força do mal traga para dentro do seu infortúnio as almas que não podem clamar por justiça.  São contos com muitas visões. Todos, claro, pendendo para a tragédia. Mesmo quando não há morte, ela está lá, subentendida. É uma obra aberta e abrangente, mas sem deixar de lado o sombrio, uma das marcas do autor pernambucano.  Produzido durante o isolamento social, principalmente nos meses de julho e agosto, o volume de contos consumiu várias horas do dia do escritor.  “Fiquei trancado em casa escrevendo, escrevendo, escrevendo, com muita emoção sob temas contemporâneos. E a morte desses meninos estava me doendo muito. Eu tinha que escrever este livro, era inevitável. Me exigiu muito esforço físico e mental”, diz o autor. As “cartas ao mundo” que intitulam os capítulos, por exemplo, são uma espécie de repreensão às autoridades em todos os níveis, clamando por harmonia social, solidariedade e paz, denunciando o horror do mundo contemporâneo. O livro é um projeto lítero/sócio/político.  Estão Matando os Meninos deve repercutir entre os leitores de uma forma geral. Porque inquieta profundamente e nos mostra que a realidade não é apenas uma suposição literária.  “Um momento. Só um momento em silêncio. Dois nordestinos extraviados. O filho assassinado. Rasgado de balas de rifle. Mataram Jorge, meu filho. Estão matando os meninos. Os homens chegam atirando e matam. Quem cuida da alma é Deus. Agora eu cuido do corpo… do que resta do corpo. Descobre desalentado que o barulho, os ouvidos, as vozes não veem de fora, estão na alma, encravados no sangue. A intensa crueldade das balas cruzando os dias para se entrincheirar no corpo dos meninos. Sem ter quem os defenda. Nunca. Escutara. Nem mesmo a lei. Nunca esqueceria aquele rosto sangrando. O olho de João atingido. Mesmo no olho, não é assim que se diz? A exposição macabra dos filhos mortos. — Na escola matam logo…  — Basta empurrar o portão da escola e matam. — Matrícula é sentença de morte.  — Como?  — Quando você assina uma matricula, assina a sentença de morte do filho.”

Depois de 21 anos do lançamento do seu primeiro (e até então único) e premiado livro de contos As Sombrias Ruínas da Alma, que lhe rendeu o Jabuti, o pernambucano Raimundo Carrero retorna ao formato com Estão Matando os Meninos (Iluminuras) para dar voz aos acossados pela injustiça social que vem destruindo todos os dias meninos e meninas, moradores das periferias brasileiras, que têm o sonho interrompido por mortes prematuras por estarem no meio do fogo cruzado de uma guerra sem fim. 

Viela onde nove jovens morreram pisoteados em ação da PM em baile funk em Paraisópolis Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Nas histórias, acompanhamos vítimas de balas perdidas, pessoas humildes que tentam seguir a rotina, mas que em questão de segundos acabam sendo o alvo, no confronto entre polícia, milicianos, traficantes e bandidos de toda ordem. O título não poderia ser mais cirúrgico, porque nessa guerra, os mais vulneráveis acabam pagando um alto preço. São assassinados dentro das escolas, nos becos dos morros e nas próprias casas. Isso tudo chancelado pelo silêncio das autoridades ou por justificativas que não servem para absolutamente nada.  Nos 14 contos, divididos em três capítulos intitulados Carta ao Mundo, começando pela quarta carta até a sexta, Carrero resgata alguns personagens da sua literatura, atualizando a complexidade do ser humano que, neste caso, não poupa esforços para matar, causando sempre dor e desespero. É uma obra que denuncia um país onde os pobres são meros fragmentos.  Os personagens são pessoas que já pagam o preço da miséria, do enorme buraco social, sem perspectiva de futuro, que precisam conviver, muitas vezes, com a fome. Garotos que tentam o sustento nas ruas para não sucumbir à miséria. A fome que humilha, que se junta ao banho de sangue. “Quem matou minha filha?”, grita uma mãe sufocada pelo vazio da ausência, o silêncio das respostas e a imensa inutilidade do choro. Arcassanta, território fictício da obra, aparece de múltiplas formas neste livro. Sendo um bairro, cidade, rua, estação de trem, beco ou edifício de luxo. Arcassanta é o mistério dentro do mistério na cidade do Recife, mudando o tempo todo, se deslocando pela representação dos fatos narrados.  É um livro fortemente marcado pela desesperança. A lente do autor gira para outras situações, não se prende ao tema único. Estão Matando os Meninos é também sobre o garoto que resolve ajudar um cego artista de rua em troca de algum dinheiro, mas que num ato de desespero come restos de frutas misturadas na lama no final do dia. É a tristeza de Amelinha, de apenas nove anos (mas com o rosto cheio de rugas), em ver os pais assassinados e ter a humilde casa na favela incendiada.  É a passarela de Salatiel, homem que desde cedo conhece as dores do mundo. E a idosa que vive sozinha, e é esfaqueada pelas costas, dentro do próprio apartamento no bairro de classe média alta. E ainda sobre a convivência desarmoniosa de um casal durante a pandemia, tendo que ceder espaços no isolamento social. Ou o casal, em lua de mel, que desfruta da noite de amor, mesmo com o tiroteio na rua, por já estarem acostumados com o absurdo da violência.  Acompanhamos a vida de Judá, o jogador de futebol desprezado por ter perdido um pênalti na final do campeonato. E o protesto contra o racismo depois da morte de George Floyd, nos Estados Unidos. Pessoas perseguidas por serem negras. Além da reflexão sobre o protagonismo de Greta Thunberg e Malala Yousafzai, meninas que lideram movimentos globais, mesmo com pouquíssima idade.  Tudo isso sem deixar o livro confuso, ou tirando o objetivo da obra, porque os elementos fazem parte do mesmo universo trágico. O texto é límpido, solto e as metáforas residem no conjunto cru da tragédia humana, aqui tratada com desdém, por pessoas que não sabem, mas extinguem-se elas próprias, e nem se dão conta disso. Por isso que a morte neste livro poderoso, é um alerta. A força do mal traga para dentro do seu infortúnio as almas que não podem clamar por justiça.  São contos com muitas visões. Todos, claro, pendendo para a tragédia. Mesmo quando não há morte, ela está lá, subentendida. É uma obra aberta e abrangente, mas sem deixar de lado o sombrio, uma das marcas do autor pernambucano.  Produzido durante o isolamento social, principalmente nos meses de julho e agosto, o volume de contos consumiu várias horas do dia do escritor.  “Fiquei trancado em casa escrevendo, escrevendo, escrevendo, com muita emoção sob temas contemporâneos. E a morte desses meninos estava me doendo muito. Eu tinha que escrever este livro, era inevitável. Me exigiu muito esforço físico e mental”, diz o autor. As “cartas ao mundo” que intitulam os capítulos, por exemplo, são uma espécie de repreensão às autoridades em todos os níveis, clamando por harmonia social, solidariedade e paz, denunciando o horror do mundo contemporâneo. O livro é um projeto lítero/sócio/político.  Estão Matando os Meninos deve repercutir entre os leitores de uma forma geral. Porque inquieta profundamente e nos mostra que a realidade não é apenas uma suposição literária.  “Um momento. Só um momento em silêncio. Dois nordestinos extraviados. O filho assassinado. Rasgado de balas de rifle. Mataram Jorge, meu filho. Estão matando os meninos. Os homens chegam atirando e matam. Quem cuida da alma é Deus. Agora eu cuido do corpo… do que resta do corpo. Descobre desalentado que o barulho, os ouvidos, as vozes não veem de fora, estão na alma, encravados no sangue. A intensa crueldade das balas cruzando os dias para se entrincheirar no corpo dos meninos. Sem ter quem os defenda. Nunca. Escutara. Nem mesmo a lei. Nunca esqueceria aquele rosto sangrando. O olho de João atingido. Mesmo no olho, não é assim que se diz? A exposição macabra dos filhos mortos. — Na escola matam logo…  — Basta empurrar o portão da escola e matam. — Matrícula é sentença de morte.  — Como?  — Quando você assina uma matricula, assina a sentença de morte do filho.”

Depois de 21 anos do lançamento do seu primeiro (e até então único) e premiado livro de contos As Sombrias Ruínas da Alma, que lhe rendeu o Jabuti, o pernambucano Raimundo Carrero retorna ao formato com Estão Matando os Meninos (Iluminuras) para dar voz aos acossados pela injustiça social que vem destruindo todos os dias meninos e meninas, moradores das periferias brasileiras, que têm o sonho interrompido por mortes prematuras por estarem no meio do fogo cruzado de uma guerra sem fim. 

Viela onde nove jovens morreram pisoteados em ação da PM em baile funk em Paraisópolis Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Nas histórias, acompanhamos vítimas de balas perdidas, pessoas humildes que tentam seguir a rotina, mas que em questão de segundos acabam sendo o alvo, no confronto entre polícia, milicianos, traficantes e bandidos de toda ordem. O título não poderia ser mais cirúrgico, porque nessa guerra, os mais vulneráveis acabam pagando um alto preço. São assassinados dentro das escolas, nos becos dos morros e nas próprias casas. Isso tudo chancelado pelo silêncio das autoridades ou por justificativas que não servem para absolutamente nada.  Nos 14 contos, divididos em três capítulos intitulados Carta ao Mundo, começando pela quarta carta até a sexta, Carrero resgata alguns personagens da sua literatura, atualizando a complexidade do ser humano que, neste caso, não poupa esforços para matar, causando sempre dor e desespero. É uma obra que denuncia um país onde os pobres são meros fragmentos.  Os personagens são pessoas que já pagam o preço da miséria, do enorme buraco social, sem perspectiva de futuro, que precisam conviver, muitas vezes, com a fome. Garotos que tentam o sustento nas ruas para não sucumbir à miséria. A fome que humilha, que se junta ao banho de sangue. “Quem matou minha filha?”, grita uma mãe sufocada pelo vazio da ausência, o silêncio das respostas e a imensa inutilidade do choro. Arcassanta, território fictício da obra, aparece de múltiplas formas neste livro. Sendo um bairro, cidade, rua, estação de trem, beco ou edifício de luxo. Arcassanta é o mistério dentro do mistério na cidade do Recife, mudando o tempo todo, se deslocando pela representação dos fatos narrados.  É um livro fortemente marcado pela desesperança. A lente do autor gira para outras situações, não se prende ao tema único. Estão Matando os Meninos é também sobre o garoto que resolve ajudar um cego artista de rua em troca de algum dinheiro, mas que num ato de desespero come restos de frutas misturadas na lama no final do dia. É a tristeza de Amelinha, de apenas nove anos (mas com o rosto cheio de rugas), em ver os pais assassinados e ter a humilde casa na favela incendiada.  É a passarela de Salatiel, homem que desde cedo conhece as dores do mundo. E a idosa que vive sozinha, e é esfaqueada pelas costas, dentro do próprio apartamento no bairro de classe média alta. E ainda sobre a convivência desarmoniosa de um casal durante a pandemia, tendo que ceder espaços no isolamento social. Ou o casal, em lua de mel, que desfruta da noite de amor, mesmo com o tiroteio na rua, por já estarem acostumados com o absurdo da violência.  Acompanhamos a vida de Judá, o jogador de futebol desprezado por ter perdido um pênalti na final do campeonato. E o protesto contra o racismo depois da morte de George Floyd, nos Estados Unidos. Pessoas perseguidas por serem negras. Além da reflexão sobre o protagonismo de Greta Thunberg e Malala Yousafzai, meninas que lideram movimentos globais, mesmo com pouquíssima idade.  Tudo isso sem deixar o livro confuso, ou tirando o objetivo da obra, porque os elementos fazem parte do mesmo universo trágico. O texto é límpido, solto e as metáforas residem no conjunto cru da tragédia humana, aqui tratada com desdém, por pessoas que não sabem, mas extinguem-se elas próprias, e nem se dão conta disso. Por isso que a morte neste livro poderoso, é um alerta. A força do mal traga para dentro do seu infortúnio as almas que não podem clamar por justiça.  São contos com muitas visões. Todos, claro, pendendo para a tragédia. Mesmo quando não há morte, ela está lá, subentendida. É uma obra aberta e abrangente, mas sem deixar de lado o sombrio, uma das marcas do autor pernambucano.  Produzido durante o isolamento social, principalmente nos meses de julho e agosto, o volume de contos consumiu várias horas do dia do escritor.  “Fiquei trancado em casa escrevendo, escrevendo, escrevendo, com muita emoção sob temas contemporâneos. E a morte desses meninos estava me doendo muito. Eu tinha que escrever este livro, era inevitável. Me exigiu muito esforço físico e mental”, diz o autor. As “cartas ao mundo” que intitulam os capítulos, por exemplo, são uma espécie de repreensão às autoridades em todos os níveis, clamando por harmonia social, solidariedade e paz, denunciando o horror do mundo contemporâneo. O livro é um projeto lítero/sócio/político.  Estão Matando os Meninos deve repercutir entre os leitores de uma forma geral. Porque inquieta profundamente e nos mostra que a realidade não é apenas uma suposição literária.  “Um momento. Só um momento em silêncio. Dois nordestinos extraviados. O filho assassinado. Rasgado de balas de rifle. Mataram Jorge, meu filho. Estão matando os meninos. Os homens chegam atirando e matam. Quem cuida da alma é Deus. Agora eu cuido do corpo… do que resta do corpo. Descobre desalentado que o barulho, os ouvidos, as vozes não veem de fora, estão na alma, encravados no sangue. A intensa crueldade das balas cruzando os dias para se entrincheirar no corpo dos meninos. Sem ter quem os defenda. Nunca. Escutara. Nem mesmo a lei. Nunca esqueceria aquele rosto sangrando. O olho de João atingido. Mesmo no olho, não é assim que se diz? A exposição macabra dos filhos mortos. — Na escola matam logo…  — Basta empurrar o portão da escola e matam. — Matrícula é sentença de morte.  — Como?  — Quando você assina uma matricula, assina a sentença de morte do filho.”

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