Reconciliação com o passado é ficção


Günter Grass prova, em 'A Caixa', que a retórica literária é a única alternativa para tratar da consciência atormentada

Por Antonio Gonçalves Filho

Famílias disfuncionais são extremamente comuns, mas a do Nobel alemão Günter Grass parece feita sob medida para abrigar como patriarca um ex-combatente da Waffen-SS, o braço forte da tropa de elite nazista. Após surpreender o mundo literário com revelações sobre seu escandaloso passado no autobiográfico Nas Peles da Cebola, publicado aqui em 2007, Grass lançou um ano depois, na Alemanha, A Caixa, vendido como uma espécie de sequência ficcional do livro. Não é. Agora traduzido no Brasil por Marcelo Backes, A Caixa é o que os alemães chamam de Vergangenheitsbewältigung, palavrão para designar um acerto de contas, uma reconciliação com o passado que, no caso do autor de O Tambor, interessa particularmente pela militância de Grass para obrigar a Alemanha a revisitar uma história que preferia ver enterrada.

Na época do lançamento de Nas Peles da Cebola, Grass foi chamado de desonesto e hipócrita. Como, então, um homem que se diz a consciência política da Alemanha, Nobel respeitado, conseguiu esconder por tanto tempo seu passado nazista? Talvez, seguindo a recomendação do filósofo Santayana, o autor não quisesse que seus oito filhos repetissem no futuro seus erros do passado. Mas, para superar a bestialidade nazista, é preciso algo além da reconciliação com o passado. Talvez a memória dos outros ajude mais que a de um escritor autocentrado como Grass. E foi assim que nasceu A Caixa – afinal, um bom livro sobre como os filhos constroem uma imagem paterna sem a interferência de sua retórica literária, como se usassem uma máquina fotográfica.

Na verdade, a máquina que dá título ao livro não pertence a eles, mas a uma amiga e confidente, chamada no livro de Mariechen – na vida real, a fotógrafa Maria Rama, que fotografou Grass e sua família com uma Agfa Box 54, primeira câmera alemã realmente popular e em forma de caixa. Como um retrato cubista construído de fragmentos das memórias dos filhos, o de Grass parece um tanto estranho à primeira vista, visto de ângulos que não favorecem muito o escritor. Pai ausente de oito filhos (alguns legítimos, outros vindos de um segundo casamento), ele evoca pelo intermédio das crianças o passado de uma geração nascida na cínica era Adenauer.

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As reflexões dos garotos parecem conversas na mesa do jantar registradas num gravador caseiro. O livro começa justamente em 1959, quando Grass publica um de seus mais populares livros, O Tambor – não por acaso, a história de um garoto que se recusa a crescer, narrada por um interno de hospício.

O exame moral de Grass não revela nada além do que se leu em Nas Peles da Cebola, mas a escolha do ano de O Tambor como ponto de partida é reveladora. Empenhado numa luta pela reabilitação de sua imagem, arranhada pela publicação da autobiografia, ele ficcionaliza a própria vida, trocando os nomes dos filhos e usando o recurso da terceira pessoa. Essa estratégia apenas reforça a imagem que emerge dos instantâneos de Mariechen, a de um pai distante sempre envolvido na produção de romances e tentando manter os pequenos à distância. A Caixa é para eles, de fato, a única possibilidade de reconciliação com o passado.

A CAIXAAutor: Günter GrassTradutor: Marcelo Backes.Editora: Record (224 págs., R$ 42)

Famílias disfuncionais são extremamente comuns, mas a do Nobel alemão Günter Grass parece feita sob medida para abrigar como patriarca um ex-combatente da Waffen-SS, o braço forte da tropa de elite nazista. Após surpreender o mundo literário com revelações sobre seu escandaloso passado no autobiográfico Nas Peles da Cebola, publicado aqui em 2007, Grass lançou um ano depois, na Alemanha, A Caixa, vendido como uma espécie de sequência ficcional do livro. Não é. Agora traduzido no Brasil por Marcelo Backes, A Caixa é o que os alemães chamam de Vergangenheitsbewältigung, palavrão para designar um acerto de contas, uma reconciliação com o passado que, no caso do autor de O Tambor, interessa particularmente pela militância de Grass para obrigar a Alemanha a revisitar uma história que preferia ver enterrada.

Na época do lançamento de Nas Peles da Cebola, Grass foi chamado de desonesto e hipócrita. Como, então, um homem que se diz a consciência política da Alemanha, Nobel respeitado, conseguiu esconder por tanto tempo seu passado nazista? Talvez, seguindo a recomendação do filósofo Santayana, o autor não quisesse que seus oito filhos repetissem no futuro seus erros do passado. Mas, para superar a bestialidade nazista, é preciso algo além da reconciliação com o passado. Talvez a memória dos outros ajude mais que a de um escritor autocentrado como Grass. E foi assim que nasceu A Caixa – afinal, um bom livro sobre como os filhos constroem uma imagem paterna sem a interferência de sua retórica literária, como se usassem uma máquina fotográfica.

Na verdade, a máquina que dá título ao livro não pertence a eles, mas a uma amiga e confidente, chamada no livro de Mariechen – na vida real, a fotógrafa Maria Rama, que fotografou Grass e sua família com uma Agfa Box 54, primeira câmera alemã realmente popular e em forma de caixa. Como um retrato cubista construído de fragmentos das memórias dos filhos, o de Grass parece um tanto estranho à primeira vista, visto de ângulos que não favorecem muito o escritor. Pai ausente de oito filhos (alguns legítimos, outros vindos de um segundo casamento), ele evoca pelo intermédio das crianças o passado de uma geração nascida na cínica era Adenauer.

As reflexões dos garotos parecem conversas na mesa do jantar registradas num gravador caseiro. O livro começa justamente em 1959, quando Grass publica um de seus mais populares livros, O Tambor – não por acaso, a história de um garoto que se recusa a crescer, narrada por um interno de hospício.

O exame moral de Grass não revela nada além do que se leu em Nas Peles da Cebola, mas a escolha do ano de O Tambor como ponto de partida é reveladora. Empenhado numa luta pela reabilitação de sua imagem, arranhada pela publicação da autobiografia, ele ficcionaliza a própria vida, trocando os nomes dos filhos e usando o recurso da terceira pessoa. Essa estratégia apenas reforça a imagem que emerge dos instantâneos de Mariechen, a de um pai distante sempre envolvido na produção de romances e tentando manter os pequenos à distância. A Caixa é para eles, de fato, a única possibilidade de reconciliação com o passado.

A CAIXAAutor: Günter GrassTradutor: Marcelo Backes.Editora: Record (224 págs., R$ 42)

Famílias disfuncionais são extremamente comuns, mas a do Nobel alemão Günter Grass parece feita sob medida para abrigar como patriarca um ex-combatente da Waffen-SS, o braço forte da tropa de elite nazista. Após surpreender o mundo literário com revelações sobre seu escandaloso passado no autobiográfico Nas Peles da Cebola, publicado aqui em 2007, Grass lançou um ano depois, na Alemanha, A Caixa, vendido como uma espécie de sequência ficcional do livro. Não é. Agora traduzido no Brasil por Marcelo Backes, A Caixa é o que os alemães chamam de Vergangenheitsbewältigung, palavrão para designar um acerto de contas, uma reconciliação com o passado que, no caso do autor de O Tambor, interessa particularmente pela militância de Grass para obrigar a Alemanha a revisitar uma história que preferia ver enterrada.

Na época do lançamento de Nas Peles da Cebola, Grass foi chamado de desonesto e hipócrita. Como, então, um homem que se diz a consciência política da Alemanha, Nobel respeitado, conseguiu esconder por tanto tempo seu passado nazista? Talvez, seguindo a recomendação do filósofo Santayana, o autor não quisesse que seus oito filhos repetissem no futuro seus erros do passado. Mas, para superar a bestialidade nazista, é preciso algo além da reconciliação com o passado. Talvez a memória dos outros ajude mais que a de um escritor autocentrado como Grass. E foi assim que nasceu A Caixa – afinal, um bom livro sobre como os filhos constroem uma imagem paterna sem a interferência de sua retórica literária, como se usassem uma máquina fotográfica.

Na verdade, a máquina que dá título ao livro não pertence a eles, mas a uma amiga e confidente, chamada no livro de Mariechen – na vida real, a fotógrafa Maria Rama, que fotografou Grass e sua família com uma Agfa Box 54, primeira câmera alemã realmente popular e em forma de caixa. Como um retrato cubista construído de fragmentos das memórias dos filhos, o de Grass parece um tanto estranho à primeira vista, visto de ângulos que não favorecem muito o escritor. Pai ausente de oito filhos (alguns legítimos, outros vindos de um segundo casamento), ele evoca pelo intermédio das crianças o passado de uma geração nascida na cínica era Adenauer.

As reflexões dos garotos parecem conversas na mesa do jantar registradas num gravador caseiro. O livro começa justamente em 1959, quando Grass publica um de seus mais populares livros, O Tambor – não por acaso, a história de um garoto que se recusa a crescer, narrada por um interno de hospício.

O exame moral de Grass não revela nada além do que se leu em Nas Peles da Cebola, mas a escolha do ano de O Tambor como ponto de partida é reveladora. Empenhado numa luta pela reabilitação de sua imagem, arranhada pela publicação da autobiografia, ele ficcionaliza a própria vida, trocando os nomes dos filhos e usando o recurso da terceira pessoa. Essa estratégia apenas reforça a imagem que emerge dos instantâneos de Mariechen, a de um pai distante sempre envolvido na produção de romances e tentando manter os pequenos à distância. A Caixa é para eles, de fato, a única possibilidade de reconciliação com o passado.

A CAIXAAutor: Günter GrassTradutor: Marcelo Backes.Editora: Record (224 págs., R$ 42)

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