Fui informado da morte de Philip Roth enquanto assistia à nova versão de Farenheit 451. Simbólica coincidência. Meses antes de morrer, Roth ordenara a destruição de todos os seus papéis pessoais não doados previamente à Biblioteca do Congresso. Imaginei o papelório em chamas, como as que estivera vendo na tela e outras mais ainda veria, pois em Fahrenheit 451 o fogo arde até o fim, queimando livros e outros documentos analógicos.
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Imaginei também o testamenteiro do escritor dando uma de Max Brod, testamenteiro de Kafka, poupando da cremação o que lhe fora destinado; mas logo afastei de mim aquela ideia malsã (cabe afinal ao autor estabelecer os limites do seu legado), além do mais, inadequada, já que seria indiscutivelmente maior, em qualidade e quantidade, o prejuízo infligido a Kafka e sua obra.
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E aí sobreveio outra coincidência: a greve dos caminhoneiros e o desabastecimento de nossos postos de combustíveis.
Mesmo quem não viu a refilmagem de Fahrenheit 451 — telefilme dirigido por Ramin Bahrani e exibido ao longo da semana pelo canal a cabo HBO — mas ao menos tenha visto a versão anterior, dirigida por François Truffaut em 1966, sabe da crucial importância do querosene na distopia imaginada por Ray Bradbury. É com o querosene jorrando com fartura de suas mangueiras que os bombeiros de Fahrenheit 451, ao invés de apagar incêndios, incineram livros e outros artefatos culturais, como filmes, cassetes, DVDs, discos etc. Com mais fanatismo e pertinácia os livros.
Não vi nenhum romance de Roth ardendo nos constantes raides incendiários do filme. Kafka, claro, destaca-se nas fogueiras comandadas pelo capitão Beatty (Michael Shannon) e seu pupilo Guy Montag (Michael B. Jordan). Um de seus aforismos sobre felicidade e liberdade serve de epígrafe ao auto de fé bradburyano revisto por Bahrani. Beatty, diga-se, considera Kafka “pornográfico e sexualmente pervertido”.
O primeiro livro a crepitar na tela é Enquanto Agonizo, de William Faulkner. Ainda veremos Dostoievski, Borges, Steinbeck, Wilde—até páginas de Harry Potter e Minha Luta, de Hitler—virando cinzas lentamente. Ou, na melhor das hipóteses, reduzidos a emojis holográficos e fragmentados em bilhetes que Beatty extrai da memória—Eliot, Plauto, Hobbes, Joseph de Maistre, Maquiavel—para os queimar em seguida.
O capitão os leu no passado, antes de a América emburrecer-se de vez e render-se ao mais dissoluto obscurantismo: um país em que ler é crime, todos pensam igual, e os livros, esses objetos de papel combustível a 451 graus Fahrenheit de temperatura, que guardam e difundem o saber e provocam múltiplas emoções, passaram a ser demonizados como “venenos” para a mente e desagregadores da harmonia social. Num dos sermões aos seus comandados, o novo Torquemada adverte: “Seus netos nem irão saber o que é um livro”.
As três exceções permitidas — a Bíblia, Moby Dick e Ao Farol, de Virginia Woolf—foram reduzidas a pictogramas eletrônicos, num processo seletivo cujos critérios não nos são dados a conhecer. Assim como não se esclarece quando a América institucionalizou as fogueiras da intolerância. Sabe-se que houve uma segunda Guerra Civil (com 8 milhões de mortos) e dela emergiu uma nação corporativizada, cujos líderes exploraram com eficácia o déficit de atenção dos sobreviventes e sua preguiçosa preferência por drágeas noticiosas sob rígido controle de uma entidade chamada “ministro”, o Big Brother ianque.
No romance de Bradbury, publicado em 1953 e com uma tradução, editada pela Biblioteca Azul, ainda nas livrarias, o grande culpado pela destruição espiritual da América era a televisão, de par com a histeria macarthista e demais efeitos colateirais da Guerra Fria. Em sua adaptação,Truffaut acrescentou outro elemento: a paranoia atômica, intensa no início da década de 1960. Na versão da HBO, o medo da tecnologia intrusiva, já presente no romance, ganha nova dimensão. Bradbury e Truffaut não tinham como prever o assomo das mídias sociais como fiadoras da desumanização da sociedade.
Bahrani e Amir Naderi começaram a escrever o roteiro logo depois da eleição de Trump, o que explica não só a ênfase à tecnologia de espionagem, à informação manipulada, à idiotização algoritimizada, mas também a palavra de ordem (ou o slogan) da combustiva tirania: “Time to burn for America again”, ambíguo preito patriótico (“burn” tanto pode significar queimar como expressar um sentimento ardoroso), confessadamente derivado do bordão eleitoral trumpista: “Make America great again” (Torne a América grande novamente).
Guy Montag, o trânsfuga encarnado por Oskar Werner na versão Truffaut, ganhou intérprete negro—escolha bem explorada na cena em que seu mentor justifica as razões para a incineração de “Filho Nativo”, de Richard Wright—, mas perdeu, desta vez, a esposa, Mildred, chapada por uma overdose de realidade paralela, restando-lhe apenas a amante, Clarisse, que irá libertá-lo da evangelização bibliófoba. Em clave diversa da adotada por Julie Christie na versão Truffaut, a argelina Sofia Boutella deu a Clarisse contornos de periguete engajada, de maqui literária, que me fez lembrar da personagem de Halle Berry em Politicamente Incorreto.
Fahrenheit 451 sempre foi o filme mais impessoal e antisséptico de Truffaut. E, paradoxalmente, o mais frio. Sua refilmagem, embora tenha por modelo Blade Runner, é surpreendentemente mais grave, solene, que bombástica. Em sua trilha sonora, no lugar dos intimidantes metais de Bernard Herrmann, o plácido piano minimalista de Erik Satie estabelece um bem sacado contraste com o horror implantado pelos bombeiros do mal, interventores fardados, que um dia voltarão a só usar água em suas mangueiras.