DRESDEN, Alemanha - Após quase três séculos atrás de uma camada de tinta, um Cupido nu apareceu em um dos trabalhos de arte mais amados do mundo, alterando drasticamente o fundo de uma calma cena interior.
O dourado e rechonchudo deus em Moça lendo uma carta à janela, de Johannes Vermeer, foi revelado em um projeto de restauração que Stephan Koja, diretor da Old Masters Picture Gallery em Dresden, na Alemanha, descreveu como “uma história de detetive e uma aventura”
O quadro é o centro de uma exposição na galeria, inaugurada na quinta-feira pela chanceler da Alemanha, Angela Merkel, e pelo primeiro-ministro Mark Rutte, da Holanda, e fica aberta até 02 de janeiro. O quadro é um de apenas 35 trabalhos definitivamente atribuídos a Vermeer: a exposição em Dresden, chamada Johannes Vermeer: On Reflection, reúne dez deles ao lado de trabalhos de contemporâneos com quem Vermeer estudou, incluindo Pieter de Hooch e Gerard ter Borch.
Desde que um raio-x de Moça lendo uma carta à janela foi feito há mais de 40 anos, estudiosos tomaram conhecimento do Cupido, que olha fixamente de uma pintura dentro da pintura. A seção, na parte superior direita da tela, estava escondida sob um retângulo de tinta atrás da cabeça da moça. Mas eles sempre assumiram que o próprio Vermeer havia apagado o deus.
Por conta disso, quando os curadores das Coleções de Arte do Estado de Dresden, que supervisionam a Old Masters Picture Gallery, inicialmente decidiram restaurar o quadro, em 2017, não havia a intenção de expor o Cupido. Mas o retângulo respondeu de forma diferente do resto da pintura a um solvente que os restauradores utilizam para remover o verniz, disse Koja.
Isso sugeria que a tinta continha componentes diferentes daqueles utilizados por Vermeer, levantando a hipótese de que teria sido aplicado por outra mão. A sombra mais escura também sugeria que um artista posterior poderia ter tentado uma aproximação da tinta original após o escurecimento causado pelo tempo.
O museu nomeou um comitê de consultores formado por especialistas em Vermeer e restauradores. O grupo concordou que a remoção de amostras microscópicas da pintura para um teste se justificava - uma decisão, Koja disse, que não poderia ser tomada levianamente. A análise de minúsculos fragmentos forneceu a evidência conclusiva de que o Cupido foi pintado por cima da tela original anos - talvez décadas - após Vermeer terminar o trabalho no final da década de 1650, Koja disse.
“Encontramos uma camada de verniz com sujeira por cima” que deve ter se acumulado mais tarde, Koja acrescentou. “Estava claro que a camada de cima de tinta não era de Vermeer. Era uma distorção feita por outra mão contra a intenção do artista”.
Depois que o comitê de especialistas permitiu, os restauradores colocaram uma tira sobre o retângulo pintado, com cerca de meia polegada de largura. A pincelada no Cupido não apenas era inconfundivelmente de Vermeer, como ainda estava em excelentes condições, disse Koja.
“O resultado dos testes foi tão arrebatador que ficou claro o que tínhamos que fazer”, ele disse. O comitê concordou que Christoph Schölzel, um restaurador de pinturas do museu de Dresden, deveria expor plenamente o Cupido. Schölzel levou um ano e meio, trabalhando polegada por polegada com um bisturi e uma mão firme sob um microscópio.
Koja disse que a pintura ganhou algo, não apenas em termos de composição e equilíbrio nas cores, mas também a respeito de seu conteúdo. Enquanto o rubor nas bochechas da moça previamente deixava claro que ela estava lendo uma carta de amor, o deus do desejo na parede acrescenta uma mensagem sobre o tipo de amor que Vermeer tinha em mente. Seu Cupido é representado pisoteando uma máscara, símbolo do engano, para mostrar que o amor vence o engano e a desonestidade.
A imagem dentro da imagem também conecta o trabalho às cenas intimistas posteriores de Vermeer, muitas das quais retratam figuras em janelas, inundadas de luz. As cenas frequentemente capturam um momento no qual o sujeito está perdido em seus pensamentos, sozinho, às vezes no meio de uma tarefa doméstica. Pinturas ou mapas nas paredes, atrás das pessoas, adicionam uma compreensão da vida interior dos personagens aos espectadores.
Alguns mistérios permanecem. Não está exatamente claro quem pintou por cima do Cupido - nem o porquê, nem quando - embora saibamos que outras pinturas de Vermeer foram alteradas por gerações posteriores para atender a preferências contemporâneas. /TRADUÇÃO DE LÍVIA BUELONI GONÇALVES