Sally Field fez história no Oscar ao agradecer seu segundo prêmio de melhor atriz, atribuído pela Academia de Hollywood. O primeiro foi por Norma Rae, de Martin Ritt, em 1979, no papel de sindicalista - e ela já fora melhor atriz em Cannes, pelo mesmo filme -, o segundo foi por Um Lugar no Coração, de Robert Benton, em 1984. Sally fazia a bisavó do diretor e roteirista, uma mulher destemida que, no reacionário Sul dos EUA, durante a depressão econômica dos anos 1930, tomou as rédeas da família e superou a crise. Duas personagens de mulheres fortes, mas Sally fraquejou no segundo prêmio. Teve um acesso histérico no palco e gritava e chorava - "Vocês me amam! Vocês me amam!". Cada um sabe de suas carências. Sally estourou na TV numa série que virou cult, A Noviça Voadora. Ligou-se a Burt Reynolds, que era um astro na época, e vivia meio que à sombra dele, até a consagração do Oscar - dos Oscars, no plural. Vítima da maldição do prêmio, ela escolheu mal os papéis e a carreira foi decaindo com thrillers vagabundos como Olho por Olho, cujo diretor era o também 'oscarizado' John Schlesinger. A TV deu-lhe uma sobrevida, como a matriarca da família de Brothers & Sisters. Só faltava a ressurreição no cinema. Na metade do ano, era possível arriscar que Sally Field talvez voltasse para o Oscar - e até ganhasse o de coadjuvante por seu papel como a tia de Peter Parker na nova série do Homem-Aranha, de Marc Webb (com Andrew Garfield). Agora, depois do prêmio da Associação dos Críticos de Nova York e do Globo de Ouro, ninguém duvida que Sally será mesmo indicada e poderá ganhar, mas por outro filme. Pelo Lincoln de Steven Spielberg. Ela faz a mulher do político, interpretado por Daniel Day-Lewis, e ele é outra aposta segura no prêmio da Academia para 2012. Entre ambos há uma diferença de 11 anos - Sally é de 1946, tem 66 anos; Day-Lewis, de 1957, e tem portanto 55. Spielberg chegou a desistir dela por causa disso, achando que a diferença seria ressaltada na tela, mas os testes, de interpretação e maquiagem, o levaram a contratar a ex-noviça voadora, convencido de que ela seria perfeita no papel. Spielberg não se enganou. Embora Mary Todd fosse nove anos mais jovem que Abraham, sofria de enxaquecas constantes e o sofrimento, estampando-se no rosto, lhe dava uma idade indefinível. O revival cinematográfico de Sally Fields não é o menor dos acontecimentos do ano que se encerra. Homem-Aranha é um blockbuster estimado pelos críticos, Lincoln é o que se pode chamar de filme de prestígio, e um grande Spielberg. Como artista popular, ele obteve extraordinário reconhecimento na bilheteria, mas durante muito tempo os críticos lhe colaram a etiqueta de Peter Pan. Diziam que Spielberg, com seus filmes de efeitos, sofria da síndrome do homem que não queria crescer e sonhava permanecer menino. Hollywood seria a sua Terra do Nunca. Nada mais equivocado. Com sua trilogia informal formada por O Terminal, Guerra dos Mundos e Munique, ele deu o testemunho mais lúcido sobre os EUA pós-11 de Setembro, sem se referir uma só vez ao ataque de 2001. Com Amistad, de 1997, mirando-se no exemplo de John Quincy Adams (Anthony Hopkins, sublime), já resgatara os ideais dos fundadores da nação norte-americana. Com Lincoln, e Barack Obama na Casa Branca, reporta-se ao período em que o presidente, mesmo sob a ameaças de deflagrar a Guerra Civil, fez campanha pela emancipação dos escravos, convencido de que só assim se iniciaria uma nova fase da história, e os EUA cresceriam como nação. Amistad já era um filme intensamente dialogado, e a cena do tribunal, fundada na palavra, era grandiosa. Lincoln é puro diálogo, com cenas de batalha que retomam as experiência de A Lista de Schindler e, principalmente, O Resgate do Soldado Ryan, que valeram a Spielberg seus dois Oscars de direção (em 1993 e 1998). Spielberg, que sempre reverenciou John Ford, tem vivido à sombra do grande diretor - há ecos dele em Guerra dos Mundos, Cavalo de Guerra e Lincoln. O último encerra uma dupla e prodigiosa lição - de cinema e democracia. Sally Field, como Mary Todd, tem participações pontuais nessa história. Há momentos em que você tem vontade de aplaudi-la em cena, quando ela, como deve ter ocorrido com Mary na realidade, toma consciência do que o marido está fazendo, e do que significam os riscos que assume. O terceiro Oscar seria merecido, mas há a concorrência de Anne Hathaway, no musical Les Misérables, de Tom Hooper. Mesmo se não ganhar, Sally merece que gritemos para ela - sim, nós a amamos.