É estranho ter 49 anos e escrever sobre um autor que se matou aos 49 anos. Ainda mais o autor de um texto que combina tanta leveza e estranheza quanto Richard Brautigan. A gente fica imaginando o que levou ao gesto. “Ninguém nunca deixa de ter um bom motivo para o suicídio”, afirmou Cesare Pavese, ele mesmo um suicida (aos 42). Por que um sujeito tão doce quanto Brautigan teria se matado? Excesso de açúcar no espírito? Paranoia delirante dos anos1980, saudosismo dos mágicos 1960? Pescar Truta na América (José Olympio Editora, trad. José J. Veiga, 207 págs.) é do inventivo 1967 que nos deu Sgt. Pepper’s e os primeiros álbuns de Jimi Hendrix, Doors e Velvet Underground. Não há como não ser levado por este livro àquele tempo, ainda que não seja narrativa datada, e sim uma fábula esparramada por várias épocas – assim como o narrador, sua mulher e a filha bebê deles se esparram por muitos lugares dos EUA, em busca de trutas gostosas, encontros estranhos e epifanias inusitadas.
Pescar Truta na América, no entanto, não é só o moto-contínuo deste livro. Metáfora, lugar, personagem, estado de espírito, figura de linguagem semovente, é um filtro para a realidade. Sempre haverá riachos e lagos e trutas esperando por serem pescadas e comidas, nos murmura esse riocorrente que flui em episódios curtos, frases diretas, ação interrompida quando menos se espera, e quando menos se espera surge uma anedota, um personagem, um diálogo, uma imagem. “Quando limpava as trutas antes de ir para casa já de noite, imaginei que eu ia ao cemitério dos pobres e juntava capim e vidros e latas de conserva e tabuletas e flores murchas e besouros e ervas daninhas e torrões de terra e tocava para casa e pegava um anzol e colocava nele uma isca de todas essas coisas e ia lá fora e lançava tudo para o céu, e via a minha obra flutuar sobre as nuvens até chegar à estrela Vésper.” Jamais há explicação, esqueça a fácil causalidade: Brautigan é da estirpe dos absurdistas, Campos de Carvalho, Raymond Roussel, Eugène Ionesco, Kurt Vonnegut.
Escrevendo nos anos 60 e 70, este pós-beatnik levou o drop out ao extremo – aparentando o pacifismo a preguiça, inércia e entropia. Daí a sensação de liberdade se acasalar ao odor de putrefação, lembrando que a utopia libertária dos 60 despencaria na viagem egóica e autodestrutiva dos 70 e 80. Pescar Truta na América é um espelho: texto poroso, a ser interpretado ao gosto do pescador-leitor. O sentido zen da impermanência e da centralidade do presente perpassa cada ação descrita por este aplicado estudante do budismo, que passou temporadas no Japão – onde influenciou autores como Haruki Murakami e Genichiro Takahashi. Em 1984, não seria mais possível prolongar o presente zen e a mágica pretérita: para mudar a realidade, Brautigan preferiu uma Magnum 44.
Filho de uma errática garçonete, Brautigan nunca conheceu o pai. Tinha 1,94m, usava chapelão e bigodão a homenagear o herói Mark Twain, e na Haigh Street de San Francisco era amigo dos beatniks Michael McClure (a quem é dedicado sua obra-prima, Açúcar de Melancia) e Lawrence Ferlinghetti (que editou trechos de Truta). Mas a escrita singela os afastou – não era sofisticado o bastante para os beats, egressos de universidades. Vivia tão duro que uma vez se apresentou em uma delegacia pedindo pra ser preso, pois estava morrendo de fome. Mais tarde internou-se numa clínica onde, diagnosticado com esquizofrenia e depressão, foi submetido a eletrochoques suficientes “para iluminar um vilarejo”, escreveu. Trabalhava no correio como Charles Bukowski; publicou os primeiros livros de poesia nos anos 50, antes de estrear em prosa com A Confederate General from Big Sur, e vendia-os na rua como Plínio Marcos. Seguindo o transcendentalismo utópico caipira bêbado de autores como Thoreau e London, Truta vendeu 2 milhões de cópias e se tornou o livro de cabeceira de todo hippie. Com a grana, comprou uma mansão à beira-mar no vilarejo Bolinas – reduto de Peter Fonda, Jeff Bridges, Margot Kidder, Harry Dean Stanton e Sam Peckinpah –, sítio tão cercado de árvores que era difícil achar a porta de casa. Tendo como coadjuvantes a esposa Ginnie Alder e a filha Ianthe, a paisagem psicodelicamente ensolarada de Truta lembra outra frase de Pavese: “A única alegria deste mundo é a de começar”. O Aliás conversou com Ianthe Brautigan, professora de escrita criativa e autora de You Can’t Catch Death, que fala da complexa relação com o pai.
De onde vem essa sensação zen de aproveitar o momento, tão forte no livro? A habilidade do meu pai de viver no momento presente vinha de longe. Minha tia Barbara me contou que ele era a primeira pessoa a parar e apontar algo bonito que via. Isso não era muito comum na comunidade em que cresceram. A conexão com o Zen se encaixa nessa prática que ele já cultivava na infância. Meu pai não era de revisitar o passado, só nos livros. Sua vida era sobre o que acontecia no momento presente. Adorava andar e falar; se te chamasse pra passear, haveria uma conversa significativa. Com amigos como os poetas Gary Snyder, Joanne Kyger e Phillip Walen, ele compartilhava essa linguagem comum e escreveu alguns poemas sobre isso. Qual era a sua visão do movimento hippie e dos beatniks? Meu pai era próximo da contracultura, mas, vindo da classe trabalhadora pobre, nunca se identificou como hippie ou beatnik – embora fosse amigo de Michael McClure, Kyger e Bruce Conner. Nos anos setenta, passou muito tempo com os escritores Tom McGuane e Jim Harrison e o artista Russell Chatham, “a gangue de Montana”. Não acreditava em instituições. Mais tarde, se referiu a si mesmo como um digger e participou daqueles happenings [digger, ou “escavador”, era um movimento anarco-artístico de San Francisco]. Tenho a impressão de que meu pai nunca foi tão politizado quanto os beatniks gostariam.
Como muita gente identificada com o ideário hippie, ele era um idealista conservador? Ele tinha o que hoje alguns podem chamar de “valores antiquados”, que passou para mim. Não queria que eu lesse Sombrero Fallout até os dezoito anos, por causa das cenas de sexo e bondage, mas não era de mentir nem de deixar pagar seus impostos; não tinha carro nem cartão de crédito, mas conversava com qualquer tipo de pessoa. Adorava ser famoso. Não tinha medo de alguém que tivesse um ponto de vista diferente, mas, como dizia um colega digger, o ator Peter Coyote, não suportava gente burra. Não era chauvinista, especialmente no contexto da época. Na minha infância, ele reforçava que minha opinião era importante, que eu podia experimentar ideias diferentes e não ser julgada por causa disso, e o melhor de tudo era que eu poderia desafiar a autoridade masculina. Ele também nunca me mandou sorrir, o que eu via como um presente. Mesmo menina, eu sabia o valor de ser um menino na sociedade, então perguntei a ele uma vez se ele queria que eu fosse um menino: ele me convenceu que ser pai de uma garota o fazia muito mais feliz. Dizia o tempo todo como era orgulhoso por eu ser inteligente, o que achava bobo, porque não tinha feito nada pra merecer. Não era uma boa aluna, era supertímida e só gostava de ler e de andar a cavalo. Ele era amigo de muitas mulheres. A esposa de Jim Harrison, Linda, me disse que meu pai era um dos poucos homens que vinham na cozinha conversar com ela. Ele amava mulheres inteligentes!
Seu pai se matou aos 49 anos, idade crítica para todo homem. Como foi isso para você? Esta é uma questão muito interessante, pois é comum examinar nossas vidas por volta dos 49 anos e ter que se reinventar. Como pai, era um artista com A maiúsculo – então sua arte sempre vinha primeiro, e isso não era fácil para uma criança ou adolescente, e até hoje me deixa meio triste. Sabia que ele me amava muito, mas tive que ser realista muito jovem, pra entender o tipo de pai que ele seria capaz de ser. Quando escrevi as memórias, tive de integrar os dois: o pai mágico que, aos 49 anos, tinha realizado muito mais do que a maioria das pessoas em uma vida inteira, com muitos obstáculos para superar, e o pai que tinha alcançado tanto não conseguia descobrir uma razão para viver neste mundo por mais tempo. Hoje finalmente consigo expressar raiva sobre sua escolha. Ele perdeu a chance de conhecer sua neta: teria ficado tão orgulhoso dela! Voltando à ideia do Zen: dá pra dizer que o fim da vida dele é como um koan [uma piada budista]. Escrever You Can’t Catch Death foi como ter uma longa conversa com ele. Quando era menina, ele segurava minha mão quando saíamos para passear em São Francisco – pra que eu andasse mais rápido e pudéssemos chegar ao nosso destino mais cedo, e era uma sensação adorável metade andar e metade voar com meu pai.
O que ele gostava de ler? Foi um leitor e escritor disciplinado até o final de sua vida, quando bebia muito. Escrevia quase todo dia. Encontrei suas anotações do dia em que começou a escrever Truta: "Hoje é o Dia da Independência do México e estou iniciando um livro intitulado Pescar Truta na América". Olhando agora para sua biblioteca, vejo Faulkner, Fitzgerald, Flannery O'Connor, Gógol, Pound, Junichiro Tanizaki, Mishima, Kawabata, Edward Gory, Magritte, Jim Harrison, Tom McGuane, Poe, John Donne, William Blake, Aristófanes e toneladas de revistas e livros de autores de quem ninguém nunca ouviu falar. Não teria se colocado na mesma categoria de Jim Dodge, mas realmente gostava muito de Kurt Vonnegut.
Por que nunca filmaram seus livros, tão visuais? Ele adorava cinema e ficou entusiasmado quando Hal Ashby comprou o western Hawkline Monster e ficou desapontado quando o filme não foi feito. Cineastas estão sempre de olho em seus livros, mas tenho sido muito cautelosa ao defender seu legado. Esta semana nos encontramos com alguém muito interessante que quer adaptar The Abortion, e estamos conversando com dois maravilhosos cineastas sobre Hawkline. Mas Truta sempre intimidou as pessoas: é um livro fora de gêneros, então é difícil levantar o dinheiro para um filme desses. No momento, trabalho em uma adaptação para TV de Dreaming of Babylon, uma história de estilo noir. As coisas parecem promissoras. *Ronaldo Bressane é escritor e jornalista, autor de Escalpo (Reformatório), entre outros livros