Roberto Calasso – o escritor, o intelectual, o scholar e o editor mais do que polivalente morto em 2021, na cidade de Milão, aos 80 anos de idade – era atormentado pelas ruínas da nossa civilização. Sem elas, segundo a sua perspectiva, jamais conseguiríamos construir qualquer possibilidade de futuro. E foi a partir desses mesmos fragmentos que ele ergueu uma obra monumental na qual conseguiu contar a nossa história.
Em um projeto ambicioso, composto por onze livros (seis deles foram lançados no Brasil pela Companhia das Letras, que publica agora em março Como Organizar uma Biblioteca, de 2020), Calasso procurou por um “centro secreto” que unia todas as confusões que moldaram e, ao mesmo tempo, afetaram a modernidade.
No início de tudo, está o primeiro tomo, intitulado apropriadamente A Ruína de Kasch (de 1983, infelizmente inédito por aqui). Nas quatro décadas seguintes, o italiano apenas desenvolveria tudo o que já foi estabelecido ali: a narração aos pedaços; o estilo elíptico e crítico; o panorama que abarca o detalhe e o todo do fluxo histórico; as referências extremamente eruditas, misturadas às piadas com a cultura popular – enfim, um verdadeiro tour de force que se desdobraria em outras análises idiossincráticas, como As Núpcias de Cadmo e Harmonia (1988), K. (2002) A Folie Baudelaire (2008), O Ardor (2010) e os derradeiros O Livro de Todos os Livros (2019) e A Tábua dos Destinos (2020), publicados meses antes da sua morte. Há também as impecáveis coletâneas de ensaios, como o clássico Os 49 Degraus, de 1991.
O uso de superlativos a respeito do empreendimento de Calasso não é uma questão de beletrismo. Nascido em 1940, filho de uma família de intelectuais antifascistas, ele logo compreendeu que o mundo onde habitava, possuído por holocaustos e catástrofes, era completamente ausente de ritos de passagem. Qual teria sido a origem desta lacuna?
Roberto Calasso
Em Kasch, Calasso a localiza na Revolução Francesa – ou melhor, um pouco antes dela, mais precisamente na trajetória do príncipe e bispo Charles de Talleyrand (1754-1838). Este homem, um dos mais importantes do seu tempo, sabia conduzir a lógica oculta do poder de um modo em que as multidões jacobinas o odiavam por puro prazer e a alta sociedade francesa lhe dirigia um desprezo que, na verdade, era um fascínio pleno de ressentimento. Contudo, para Calasso, a força de Talleyrand não vinha somente de sua personalidade enigmática e da sua habilidade para transitar entre os diversos estratos sociais, mas sobretudo de que ele era o último sujeito em toda a Europa que compreendia que a violência política tinha de ser sistematizada em um ritual.
E, quando se fala em violência, entenda-se “sacrifício”. Neste sentido, Calasso é um bardo da expiação que amplia o que foi redescoberto na obra monomaníaca (e genial) de René Girard: o grande evento da cultura ocidental sempre foi e será o surgimento de um bode expiatório, alguém que tomará os pecados da sociedade para si e morrerá por eles, seja de maneira explícita, seja metafórica – e é a partir daí que construímos as nossas instituições e, claro, criamos a nossa fé democrática.
Tanto Calasso como Talleyrand reconhecem que há algo de sagrado e de secreto no ato de assassinar alguém – e, por isso mesmo, a política serve para represar essas forças obscuras. No fim, ela é como bem definiu o americano Henry Adams: “A organização sistemática dos ódios”. E talvez seja por essa razão que Calasso era chamado por seus pares de um sacerdote gnóstico, do conhecimento cifrado e, como se os elogios não bastassem, “a instituição de um homem só”. Ironicamente, ele sabia que era também um Talleyrand da literatura, com uma dose menor de malícia, mas com a pitada certa de sabedoria para ser um escritor reconhecido internacionalmente e, ao mesmo tempo, um dos editores mais poderosos do mercado literário na Itália (comandou com graça e sofisticação a famosa Adelphi, experiência retratada no delicioso A Arte do Editor, de 2013, publicado pela Ayiné).
Essas “tensões cerimoniais” se equilibram com a precisão de um acrobata em A Ruína de Kasch. Além de Talleyrand e da Revolução Francesa, o estilo de Calasso abarca tudo: Goethe, Marx, Max Stirner, organizações secretas, decapitações, René Guénon, terrorismo político – nada escapa à sua pena, que registra vertiginosamente esses eventos silenciosos que criaram a nossa sensibilidade. Porém, ao contrário do sistema total que caracteriza o comportamento dos maiores filósofos surgidos nesses tempos de tormenta (Hegel é o primeiro que vem à mente), o italiano não se preocupa em narrar esses acontecimentos como se fosse possível traduzir tal panorama de maneira unificada. Ele faz o oposto: a narrativa é estilhaçada, em uma digressão progressiva que lembra muito o romance A Vida e As Opiniões de Tristram Shandy de Laurence Sterne e que nos remete à evidência de que o nosso conhecimento da realidade é absolutamente incompleto.
E, assim, pouco a pouco, o leitor é guiado pela mão benevolente de Calasso até chegar ao “centro secreto” de todo o seu projeto: o de que o mundo moderno em que vivemos é sem coerência alguma porque não possuímos mais os rituais de morte e renascimento, os rituais que provam que o ser humano “é alguém que esquece que mata”. Daí o recurso à história fragmentada: o próprio leitor precisa sacrificar o seu intelecto e o seu coração, para depois permitir que o seu corpo seja despedaçado simbolicamente – e só então ser reintegrado de uma forma surpreendente ao chegar no final de qualquer livro escrito pelo demiurgo que foi ninguém menos que o próprio Calasso.
Na ausência de uma “cerimônia da inocência” (como diria Yeats), quem seria o único sobrevivente deste massacre verbal (e talvez carnal)? O nó górdio de A Ruína está na lenda do reinado que nomeia o livro – Kasch. Calasso conta a história de um jovem poeta, Far-li-mas, cujas histórias agradam o rei, os súditos e o povo deste reino. Entretanto, a legitimidade do governo vem do fato de que é fundamental praticar sacrifícios infinitos. Far-li-mas se opõe a este tipo de ritual, mas acrescenta um outro, ainda mais subversivo: a força da fábula. A cada história que cria para o rei, o poeta o convence de que qualquer tipo de sacrifício é inútil, incluindo o do próprio monarca, superando em influência os sacerdotes que defendem tal rito macabro, justamente para continuarem no poder.
A vitória de Far-li-mas é bem-sucedida, porque ele sabe que sua meta não é o poder e sim a permanência de um cosmos que só continuará assim justamente por causa dessas histórias criadas pelo seu talento. E este novo ritual – o da fábula – tem uma única fundação: a consciência individual.
Calasso desamarra o nó górdio civilizacional ao chegar à conclusão de que “a história do reino de Kasch nos ensina como o sacrifício é a causa de toda a ruína e como a ausência do sacrifício é também a causa da ruína. Este par de verdades contraditórias e simultâneas mostra uma verdade ainda mais sombria, a qual se encontra dormente entre nós: a nossa própria sociedade é a ruína em si. E é dessa conclusão obscura que encontramos alguma coisa a mais, vista como pano de fundo: a sociedade é a ruína porque ambas reverberam o som do mundo, o seu ruído incessante e devorador”.
Não à toa, a crença atual das elites intelectuais de que uma consciência coletiva (e, portanto, a favor da sociedade) seria extremamente saudável para o cidadão e se revela como uma ilusão perigosa, que apenas faz crescer o nosso desejo constante por sacrifícios – disfarçados agora em cancelamentos nas redes sociais, tentativas frenéticas de golpes de Estado e, last but not least, levantes em Washington e em Brasília que destroem símbolos e rituais de uma fé democrática a qual também ainda não percebeu que faz parte de um universo corrompido. O antídoto para esse ruído que causa a nossa ruína é o retorno à fábula, à imaginação que recupera o que de fato significa ser uma pessoa, dotada de vida interior, e que faz de tudo para sobreviver neste vale de lágrimas.
Os mitos e os deuses são resultados diretos dessas narrativas fragmentadas que incorporamos em nossas ações, segundo Calasso. Esquecê-los seria o equivalente a uma segunda morte – e sem a possibilidade de ressurreição. Mas são esses rituais da fábula que nos impelem a ir adiante – entre os fragmentos que escoramos contra as nossas ruínas, as vozes que superam o ruído da sociedade e a cerimônia da inocência a ser recuperada (apesar das garras do monstro que caminha na vastidão de Belém), o gênio de Roberto Calasso em sua obra colossal nos faz perceber que o fim de Kasch é o começo da literatura, o começo de uma nova história na qual a sua resistência perpétua contra a morte é a única esperança que nos resta. Sacrificar tudo isso em nome de um mundo sem imaginação é destruir o que criou a nossa verdadeira (e mortal) identidade.