Temos a notável capacidade de banalizar a corrupção e a fraude, que incomodam, mas paradoxalmente são toleradas como esperteza. Como um ato de sobrevivência e, talvez o mais deletério, de realismo sociopolítico. Vale fraudar um fraudador para impedir outro fraudador, criando um poço sem fundo.
O resultado desse costumeiro realismo existencial e político é a institucionalização da desconfiança com as conhecidas dificuldades de se chegar à verdade nua e crua ou ao fundo do poço onde ela espera por quem terá a coragem e o desejo de deslumbrá-la. O resultado é esse patético confiar-desconfiando e legalizar-deslegalizando, algo impossível num mundo entulhado de Sherlocks e dotado de uma implacável memória digital.
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Complementa essa atitude de misturar o possível com o válido para chegar ao poder, um protocolo destinado a relativizar e anular punições. Movidos pela escolha “política” e, obviamente, malandra de não escolher – ou melhor – de relativizar a escolha, o sistema é carente de justiça, mas, ao mesmo tempo, relaciona abraçar a lei ao “bom-mocismo”, ao “caxias”, ao “bom menino que não faz xixi na cama” e à subordinação. Quando, pois, ocorrem falcatruas na esfera da política, que é vista como um campo no qual tudo tem pelo menos três lados, então a desconfiança é estrutural. Aparece no vergonhoso e risível adágio “rouba, mas faz!” consagrador, entre risos malandros da esfera política como uma carteira de enriquecimento fácil e vida tranquila e como uma elite que, mesmo roubando, dorme blindada por prerrogativas.
A desconfiança é mortal numa democracia, pois a vida igualitária é árdua e depende de um sério compromisso com a balança e a venda da impessoalidade na simbolização mais do que apropriada da Justiça. Ela é fruto de um distanciamento dos particularismos que governam o universo da casa. A passagem ou integração da casa com a rua, do Estado com o governo, é crucial para a completa institucionalização da igualdade no Brasil.
Além disso, as fraudes são graduadas. Roubar um celular tem consequências mais severas do que “manipular” ou “maquiar” um orçamento a que ninguém tem acesso. Como os pecados, as fraudes são relativizadas. Feitas por companheiros ou lidas como espertezas são englobadas numa “ética de malandragem” cujo paradigma é Pedro Malasartes e Macunaíma e, assim, perdoadas.
Não é fácil conviver com uma moralidade igualitária, elogiada em discursos, mas esquecida na prática. Também não é tranquilo para quem vive decentemente descobrir que o supremo mandatário da nação embolsou presentes dados ao cargo e ao País. E, em seguida, fraudou, quando tramava um golpe, um certificado de vacina que confirmava seu claro negacionismo relativo à pandemia.
E o pior é observar como a decisão de ocultar e particularizar vai e volta, porque ninguém abre mão desses abusos do poder que ainda tratamos como molecagens, malandragens e espertezas.