No Brasil, é fundamental a diferenciação entre o “sujo” (que tende a se espalhar) e o “limpo” (em guerra perpétua com o seu oposto que lhe dá significado). Ao lado das oposições entre “homem” e “mulher” – que estão aquém e além dos nossos aparelhos genitais – e entre “velho” e “jovem”, que relativamente escapam da idade biológica, essas diferenciações são aprendidas em tenra idade.
Numa pesquisa que realizei há dez anos, descobri como sujeira e limpeza eram cruciais, embora pouco mencionadas pelos nossos “entendidos em Brasil”. Crianças de 4 anos de idade tinham plena consciência de quando estavam sujas ou limpas.
Somos todos tão intolerantes com o sujo quanto com as divisões aparentemente hiperestabelecidas de gênero, idade e etnia. Um dos pontos mais sérios de divisões cósmicas é a sua capacidade de contaminação e criminalização.
Se você “andar” com pessoas de categorias alvo de preconceito, você corre o risco de ser contaminado. No estrangeiro, ou “lá fora”, quando brasileiros se reúnem para comer feijoada, ouvir samba, tomar uma caipirinha e falar mal dos seus anfitriões, um ponto remarcado é o cheiro e a sujeira. Os franceses são elegantes, mas não tomam banho; os ingleses não usam desodorante, os alemães são azedos e os americanos não lavam as mãos depois de “ir ao banheiro”. Nós somos pobres, mas limpos e honestos... Cuidar do corpo e, sobretudo, “ter um bom cheiro” é um importante sintoma de limpeza.
Se as ambiguidades de gênero e de etnia promovem preconceito, acusações e fobia, em certas circunstâncias, contaminam; a oposição entre o sujo e o limpo opera de modo imediato e sutil.
Num rotineiro lanche de domingo, em casa de parentes, um amigo passou com a mão um pedaço de pão a um cunhado. A surpreendente recusa veio na forma de uma rude desculpa: “Não sei onde você botou sua mão!”, ouviu daquele que gentilmente lhe passava o pão. Os indianos se horrorizavam quando os ingleses construíram banheiros públicos nas suas estações ferroviárias: como usar papel para limpar-se? A água e a mão esquerda seria o modo exclusivo para realizar tal ritual de pureza. Um intelectual americano que visitava o Brasil foi devidamente ensinado a tomar banhos e a trocar de camisa diariamente. Na minha pesquisa, há casos de mulheres que recusaram namorados estrangeiros quando viram suas cuecas, e de homens brasileiros que tiveram crises de impotência com o cheiro emanado das partes íntimas das moças com as quais pretendiam amar.
A sujeira – na forma de manchas e, sobretudo, de fedor ou mau cheiro – pode contaminar todo um ambiente, empesteando-o. Um jovem antropologista de passagem por Paris foi convidado a comer um prato tradicional da densa culinária francesa num restaurante – acho que foi no Chez Marcel. O anfitrião ordenou dois andoulliettes: salsichas maturadas de tripa de porco com um recheio inconfessável. A aparência atraía, mas quando o cheiro do prato entrou sem licença pelo meu nariz, senti que estava para comer um fumegante cagalhão. O fedor contaminava o prato.
Sujo e sujeira são categorias sociais fortes no Brasil. Exigem banho ou algum outro ato purificador. “Fazer uma sujeira” define escândalos e, no limite, roubos inconcebíveis cometidos por ex-heróis nacionais. Se o ambiente fede mal quando há uma contaminação por um mísero, mas potente, peixe podre ou um pum fedorento, imagine quando ele é fabricado sistematicamente por um governo.
Aliás, em política, o podre é a soma de mendacidade com incompetência.
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PS: A democracia, queridos leitores, contamina.