Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|Contaminação


Estamos contaminados. Por micróbios, vírus, bacilos, mentiras, ciclo imperativo de favores e milhões de micro-organismos que, para nossa felicidade, o olho e a consciência não alcançam porque se assim ocorresse, teríamos medo de fazer amor num belo tapete persa e jamais pagaríamos impostos. Sem a ignorância como proteção (ou defesa), não dormiríamos na nossa cama que convida ao sono dos justos, liberando nossas mais do que honestas almas para as suas necessárias visitas ao universo ilimitado do inconsciente.

Por Roberto DaMatta
Atualização:

No Brasil, é fundamental a diferenciação entre o “sujo” (que tende a se espalhar) e o “limpo” (em guerra perpétua com o seu oposto que lhe dá significado). Ao lado das oposições entre “homem” e “mulher” – que estão aquém e além dos nossos aparelhos genitais – e entre “velho” e “jovem”, que relativamente escapam da idade biológica, essas diferenciações são aprendidas em tenra idade.

Numa pesquisa que realizei há dez anos, descobri como sujeira e limpeza eram cruciais, embora pouco mencionadas pelos nossos “entendidos em Brasil”. Crianças de 4 anos de idade tinham plena consciência de quando estavam sujas ou limpas.

Somos todos tão intolerantes com o sujo quanto com as divisões aparentemente hiperestabelecidas de gênero, idade e etnia. Um dos pontos mais sérios de divisões cósmicas é a sua capacidade de contaminação e criminalização.

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Se você “andar” com pessoas de categorias alvo de preconceito, você corre o risco de ser contaminado. No estrangeiro, ou “lá fora”, quando brasileiros se reúnem para comer feijoada, ouvir samba, tomar uma caipirinha e falar mal dos seus anfitriões, um ponto remarcado é o cheiro e a sujeira. Os franceses são elegantes, mas não tomam banho; os ingleses não usam desodorante, os alemães são azedos e os americanos não lavam as mãos depois de “ir ao banheiro”. Nós somos pobres, mas limpos e honestos... Cuidar do corpo e, sobretudo, “ter um bom cheiro” é um importante sintoma de limpeza.

Se as ambiguidades de gênero e de etnia promovem preconceito, acusações e fobia, em certas circunstâncias, contaminam; a oposição entre o sujo e o limpo opera de modo imediato e sutil.

Num rotineiro lanche de domingo, em casa de parentes, um amigo passou com a mão um pedaço de pão a um cunhado. A surpreendente recusa veio na forma de uma rude desculpa: “Não sei onde você botou sua mão!”, ouviu daquele que gentilmente lhe passava o pão. Os indianos se horrorizavam quando os ingleses construíram banheiros públicos nas suas estações ferroviárias: como usar papel para limpar-se? A água e a mão esquerda seria o modo exclusivo para realizar tal ritual de pureza. Um intelectual americano que visitava o Brasil foi devidamente ensinado a tomar banhos e a trocar de camisa diariamente. Na minha pesquisa, há casos de mulheres que recusaram namorados estrangeiros quando viram suas cuecas, e de homens brasileiros que tiveram crises de impotência com o cheiro emanado das partes íntimas das moças com as quais pretendiam amar.

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A sujeira – na forma de manchas e, sobretudo, de fedor ou mau cheiro – pode contaminar todo um ambiente, empesteando-o. Um jovem antropologista de passagem por Paris foi convidado a comer um prato tradicional da densa culinária francesa num restaurante – acho que foi no Chez Marcel. O anfitrião ordenou dois andoulliettes: salsichas maturadas de tripa de porco com um recheio inconfessável. A aparência atraía, mas quando o cheiro do prato entrou sem licença pelo meu nariz, senti que estava para comer um fumegante cagalhão. O fedor contaminava o prato.

Sujo e sujeira são categorias sociais fortes no Brasil. Exigem banho ou algum outro ato purificador. “Fazer uma sujeira” define escândalos e, no limite, roubos inconcebíveis cometidos por ex-heróis nacionais. Se o ambiente fede mal quando há uma contaminação por um mísero, mas potente, peixe podre ou um pum fedorento, imagine quando ele é fabricado sistematicamente por um governo.

Aliás, em política, o podre é a soma de mendacidade com incompetência.

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*

PS: A democracia, queridos leitores, contamina.

No Brasil, é fundamental a diferenciação entre o “sujo” (que tende a se espalhar) e o “limpo” (em guerra perpétua com o seu oposto que lhe dá significado). Ao lado das oposições entre “homem” e “mulher” – que estão aquém e além dos nossos aparelhos genitais – e entre “velho” e “jovem”, que relativamente escapam da idade biológica, essas diferenciações são aprendidas em tenra idade.

Numa pesquisa que realizei há dez anos, descobri como sujeira e limpeza eram cruciais, embora pouco mencionadas pelos nossos “entendidos em Brasil”. Crianças de 4 anos de idade tinham plena consciência de quando estavam sujas ou limpas.

Somos todos tão intolerantes com o sujo quanto com as divisões aparentemente hiperestabelecidas de gênero, idade e etnia. Um dos pontos mais sérios de divisões cósmicas é a sua capacidade de contaminação e criminalização.

Se você “andar” com pessoas de categorias alvo de preconceito, você corre o risco de ser contaminado. No estrangeiro, ou “lá fora”, quando brasileiros se reúnem para comer feijoada, ouvir samba, tomar uma caipirinha e falar mal dos seus anfitriões, um ponto remarcado é o cheiro e a sujeira. Os franceses são elegantes, mas não tomam banho; os ingleses não usam desodorante, os alemães são azedos e os americanos não lavam as mãos depois de “ir ao banheiro”. Nós somos pobres, mas limpos e honestos... Cuidar do corpo e, sobretudo, “ter um bom cheiro” é um importante sintoma de limpeza.

Se as ambiguidades de gênero e de etnia promovem preconceito, acusações e fobia, em certas circunstâncias, contaminam; a oposição entre o sujo e o limpo opera de modo imediato e sutil.

Num rotineiro lanche de domingo, em casa de parentes, um amigo passou com a mão um pedaço de pão a um cunhado. A surpreendente recusa veio na forma de uma rude desculpa: “Não sei onde você botou sua mão!”, ouviu daquele que gentilmente lhe passava o pão. Os indianos se horrorizavam quando os ingleses construíram banheiros públicos nas suas estações ferroviárias: como usar papel para limpar-se? A água e a mão esquerda seria o modo exclusivo para realizar tal ritual de pureza. Um intelectual americano que visitava o Brasil foi devidamente ensinado a tomar banhos e a trocar de camisa diariamente. Na minha pesquisa, há casos de mulheres que recusaram namorados estrangeiros quando viram suas cuecas, e de homens brasileiros que tiveram crises de impotência com o cheiro emanado das partes íntimas das moças com as quais pretendiam amar.

A sujeira – na forma de manchas e, sobretudo, de fedor ou mau cheiro – pode contaminar todo um ambiente, empesteando-o. Um jovem antropologista de passagem por Paris foi convidado a comer um prato tradicional da densa culinária francesa num restaurante – acho que foi no Chez Marcel. O anfitrião ordenou dois andoulliettes: salsichas maturadas de tripa de porco com um recheio inconfessável. A aparência atraía, mas quando o cheiro do prato entrou sem licença pelo meu nariz, senti que estava para comer um fumegante cagalhão. O fedor contaminava o prato.

Sujo e sujeira são categorias sociais fortes no Brasil. Exigem banho ou algum outro ato purificador. “Fazer uma sujeira” define escândalos e, no limite, roubos inconcebíveis cometidos por ex-heróis nacionais. Se o ambiente fede mal quando há uma contaminação por um mísero, mas potente, peixe podre ou um pum fedorento, imagine quando ele é fabricado sistematicamente por um governo.

Aliás, em política, o podre é a soma de mendacidade com incompetência.

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PS: A democracia, queridos leitores, contamina.

No Brasil, é fundamental a diferenciação entre o “sujo” (que tende a se espalhar) e o “limpo” (em guerra perpétua com o seu oposto que lhe dá significado). Ao lado das oposições entre “homem” e “mulher” – que estão aquém e além dos nossos aparelhos genitais – e entre “velho” e “jovem”, que relativamente escapam da idade biológica, essas diferenciações são aprendidas em tenra idade.

Numa pesquisa que realizei há dez anos, descobri como sujeira e limpeza eram cruciais, embora pouco mencionadas pelos nossos “entendidos em Brasil”. Crianças de 4 anos de idade tinham plena consciência de quando estavam sujas ou limpas.

Somos todos tão intolerantes com o sujo quanto com as divisões aparentemente hiperestabelecidas de gênero, idade e etnia. Um dos pontos mais sérios de divisões cósmicas é a sua capacidade de contaminação e criminalização.

Se você “andar” com pessoas de categorias alvo de preconceito, você corre o risco de ser contaminado. No estrangeiro, ou “lá fora”, quando brasileiros se reúnem para comer feijoada, ouvir samba, tomar uma caipirinha e falar mal dos seus anfitriões, um ponto remarcado é o cheiro e a sujeira. Os franceses são elegantes, mas não tomam banho; os ingleses não usam desodorante, os alemães são azedos e os americanos não lavam as mãos depois de “ir ao banheiro”. Nós somos pobres, mas limpos e honestos... Cuidar do corpo e, sobretudo, “ter um bom cheiro” é um importante sintoma de limpeza.

Se as ambiguidades de gênero e de etnia promovem preconceito, acusações e fobia, em certas circunstâncias, contaminam; a oposição entre o sujo e o limpo opera de modo imediato e sutil.

Num rotineiro lanche de domingo, em casa de parentes, um amigo passou com a mão um pedaço de pão a um cunhado. A surpreendente recusa veio na forma de uma rude desculpa: “Não sei onde você botou sua mão!”, ouviu daquele que gentilmente lhe passava o pão. Os indianos se horrorizavam quando os ingleses construíram banheiros públicos nas suas estações ferroviárias: como usar papel para limpar-se? A água e a mão esquerda seria o modo exclusivo para realizar tal ritual de pureza. Um intelectual americano que visitava o Brasil foi devidamente ensinado a tomar banhos e a trocar de camisa diariamente. Na minha pesquisa, há casos de mulheres que recusaram namorados estrangeiros quando viram suas cuecas, e de homens brasileiros que tiveram crises de impotência com o cheiro emanado das partes íntimas das moças com as quais pretendiam amar.

A sujeira – na forma de manchas e, sobretudo, de fedor ou mau cheiro – pode contaminar todo um ambiente, empesteando-o. Um jovem antropologista de passagem por Paris foi convidado a comer um prato tradicional da densa culinária francesa num restaurante – acho que foi no Chez Marcel. O anfitrião ordenou dois andoulliettes: salsichas maturadas de tripa de porco com um recheio inconfessável. A aparência atraía, mas quando o cheiro do prato entrou sem licença pelo meu nariz, senti que estava para comer um fumegante cagalhão. O fedor contaminava o prato.

Sujo e sujeira são categorias sociais fortes no Brasil. Exigem banho ou algum outro ato purificador. “Fazer uma sujeira” define escândalos e, no limite, roubos inconcebíveis cometidos por ex-heróis nacionais. Se o ambiente fede mal quando há uma contaminação por um mísero, mas potente, peixe podre ou um pum fedorento, imagine quando ele é fabricado sistematicamente por um governo.

Aliás, em política, o podre é a soma de mendacidade com incompetência.

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PS: A democracia, queridos leitores, contamina.

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