Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|Doações e presentes


Por ROBERTO DAMATTA

As chuvas torrenciais; a morte de Mandela, um herói dos nossos tempos, que hoje é um novo ancestral do panteão dos anciãos africanos, tiraram a atenção do inopinado debate sobre o fim das doações de empresas para candidatos e partidos.Trata-se de um tema importante, mesmo nas chamadas "democracias avançadas", uma expressão duvidosa porque todas as democracias são sistemas marcados por crises, debates e impasses. Fundadas em princípios obviamente contrários (como equilibrar igualdade com justiça e liberdade?), as democracias são conjuntos dependentes de bom senso cuja coerência é uma paradoxal incoerência. A alma da democracia jaz no paradoxal direito tanto à diferença quanto consentimento de ser governado por múltiplas instituições e leis que valem para todos - sobretudo para os "diferentes". Democratizar é orquestrar contradições.A linha que divide a pessoa física da jurídica leva para o radicalismo dos utilitaristas que fundaram o mundo moderno. Para eles, os seres humanos seriam movidos pelo egoísmo. O egoísmo seria a base de instituições e regras de mediação entre os interesses humanos cuja busca e controle produzem uma inesgotável instabilidade.Não tenho a pretensão de ensinar missa a vigário. Mas garanto que o debate é complexo. Por exemplo, o argumento de que o voto é um momento igualitário do cidadão que "escolhe" o seu candidato e não deve ser influenciado por "pessoa jurídica" porque elas não votam, não se sustenta uma vez que sabemos que ninguém nasce com 18 anos e preparado para realizar escolhas. Todos entramos no mundo por "pessoas jurídicas" e, nele, fomos obrigados a aprender uma língua, a conhecer mandamentos e leis e, em paralelo, a amar e a detestar certas pessoas. Com a ressalva de que odiamos e amamos em momentos diversos as mesmas pessoas e amamos e odiamos num mesmo momento pessoas diferentes. Estamos sempre pisando em ovos.As discussões do Supremo não fundamentais para qualquer antropologista porque mesmo quando são técnicas, elas falam de questões fundamentais. O tema das doações das empresas abre a o debate sobre os níveis de influência a que estamos implícita ou explicitamente sujeitos.O ministro Barroso situou bem a questão, tal como li no Globo do dia 13: "É legítimo que uma empresa financie um candidato ou partido (que eventualmente, digo eu, é uma pessoa jurídica maior do que muitas empresas) por representar seus ideais. Mas muitos doam para dois partidos. Que ideologia é essa em que você apoia de um lado e apoia do outro? Faz-se isso por medo, ou por interesse?".Eis uma questão crucial para o funcionamento de uma democracia e para a compreensão do poder no Brasil. O ministro denuncia um absurdo: como apoiar simultaneamente partidos opostos? Já o antropologista lembraria que num sistema de éticas múltiplas, como é o caso do Brasil, os atores contemplam valores e ideais públicos impessoais que nivelam e levam ao risco e à impessoalidade; mas não esquecem os laços de amizade e a crua e nua realidade do poder e do lucro. Daí a aposta nos dois times. Ademais, há os casos nos quais se doa politicamente sem deixar de presentear um amigo. Nesse sentido, o não escolher é uma escolha.E eu digo mais. Trata-se, até agora, de uma norma porque o "ficar em cima do muro" é um valor que antecede a formação da própria República. É, para o bem ou para o mal, uma dimensão implícita do nosso modo gradual e sovina de distribuir o poder. Como não doar para os dois lados se em todas as disputas existem casos claros de conflitos de interesses jamais politizados justamente porque não somos uma sociedade fabricada por disputas, discordâncias e debates?Alguém conhece uma "pessoa" que se declarou impedida de decidir em virtude de "conflito de interesse"? Ademais, como não dar dinheiro para os dois se nenhum deles vai mudar coisa alguma no que diz respeito ao uso criterioso do dinheiro público e as empresas que crescem à sombra dos partidos? O problema não é a doação, é a lógica (ingovernável e não politizada) do doar como um presentear que eventualmente conduz à ladroagem.As empresas não podem doar, mas os seus donos doam? Haverá limites para as doações, certamente. Mas a partir de que critérios? Penso que esse debate é crítico. Ele nos leva ao velho problema de a reforma política só poder se realizar quando os atores tiverem plena consciência dos seus papéis. Pode um ex-presidente da República, ao lado da presidenta, defender os mensaleiros condenados, desafiando o STF num congresso do seu partido? Como ter democracia sem ter plena consciência dos papéis públicos que ocupamos e sem aceitar a ideia de ganhar e perder?

As chuvas torrenciais; a morte de Mandela, um herói dos nossos tempos, que hoje é um novo ancestral do panteão dos anciãos africanos, tiraram a atenção do inopinado debate sobre o fim das doações de empresas para candidatos e partidos.Trata-se de um tema importante, mesmo nas chamadas "democracias avançadas", uma expressão duvidosa porque todas as democracias são sistemas marcados por crises, debates e impasses. Fundadas em princípios obviamente contrários (como equilibrar igualdade com justiça e liberdade?), as democracias são conjuntos dependentes de bom senso cuja coerência é uma paradoxal incoerência. A alma da democracia jaz no paradoxal direito tanto à diferença quanto consentimento de ser governado por múltiplas instituições e leis que valem para todos - sobretudo para os "diferentes". Democratizar é orquestrar contradições.A linha que divide a pessoa física da jurídica leva para o radicalismo dos utilitaristas que fundaram o mundo moderno. Para eles, os seres humanos seriam movidos pelo egoísmo. O egoísmo seria a base de instituições e regras de mediação entre os interesses humanos cuja busca e controle produzem uma inesgotável instabilidade.Não tenho a pretensão de ensinar missa a vigário. Mas garanto que o debate é complexo. Por exemplo, o argumento de que o voto é um momento igualitário do cidadão que "escolhe" o seu candidato e não deve ser influenciado por "pessoa jurídica" porque elas não votam, não se sustenta uma vez que sabemos que ninguém nasce com 18 anos e preparado para realizar escolhas. Todos entramos no mundo por "pessoas jurídicas" e, nele, fomos obrigados a aprender uma língua, a conhecer mandamentos e leis e, em paralelo, a amar e a detestar certas pessoas. Com a ressalva de que odiamos e amamos em momentos diversos as mesmas pessoas e amamos e odiamos num mesmo momento pessoas diferentes. Estamos sempre pisando em ovos.As discussões do Supremo não fundamentais para qualquer antropologista porque mesmo quando são técnicas, elas falam de questões fundamentais. O tema das doações das empresas abre a o debate sobre os níveis de influência a que estamos implícita ou explicitamente sujeitos.O ministro Barroso situou bem a questão, tal como li no Globo do dia 13: "É legítimo que uma empresa financie um candidato ou partido (que eventualmente, digo eu, é uma pessoa jurídica maior do que muitas empresas) por representar seus ideais. Mas muitos doam para dois partidos. Que ideologia é essa em que você apoia de um lado e apoia do outro? Faz-se isso por medo, ou por interesse?".Eis uma questão crucial para o funcionamento de uma democracia e para a compreensão do poder no Brasil. O ministro denuncia um absurdo: como apoiar simultaneamente partidos opostos? Já o antropologista lembraria que num sistema de éticas múltiplas, como é o caso do Brasil, os atores contemplam valores e ideais públicos impessoais que nivelam e levam ao risco e à impessoalidade; mas não esquecem os laços de amizade e a crua e nua realidade do poder e do lucro. Daí a aposta nos dois times. Ademais, há os casos nos quais se doa politicamente sem deixar de presentear um amigo. Nesse sentido, o não escolher é uma escolha.E eu digo mais. Trata-se, até agora, de uma norma porque o "ficar em cima do muro" é um valor que antecede a formação da própria República. É, para o bem ou para o mal, uma dimensão implícita do nosso modo gradual e sovina de distribuir o poder. Como não doar para os dois lados se em todas as disputas existem casos claros de conflitos de interesses jamais politizados justamente porque não somos uma sociedade fabricada por disputas, discordâncias e debates?Alguém conhece uma "pessoa" que se declarou impedida de decidir em virtude de "conflito de interesse"? Ademais, como não dar dinheiro para os dois se nenhum deles vai mudar coisa alguma no que diz respeito ao uso criterioso do dinheiro público e as empresas que crescem à sombra dos partidos? O problema não é a doação, é a lógica (ingovernável e não politizada) do doar como um presentear que eventualmente conduz à ladroagem.As empresas não podem doar, mas os seus donos doam? Haverá limites para as doações, certamente. Mas a partir de que critérios? Penso que esse debate é crítico. Ele nos leva ao velho problema de a reforma política só poder se realizar quando os atores tiverem plena consciência dos seus papéis. Pode um ex-presidente da República, ao lado da presidenta, defender os mensaleiros condenados, desafiando o STF num congresso do seu partido? Como ter democracia sem ter plena consciência dos papéis públicos que ocupamos e sem aceitar a ideia de ganhar e perder?

As chuvas torrenciais; a morte de Mandela, um herói dos nossos tempos, que hoje é um novo ancestral do panteão dos anciãos africanos, tiraram a atenção do inopinado debate sobre o fim das doações de empresas para candidatos e partidos.Trata-se de um tema importante, mesmo nas chamadas "democracias avançadas", uma expressão duvidosa porque todas as democracias são sistemas marcados por crises, debates e impasses. Fundadas em princípios obviamente contrários (como equilibrar igualdade com justiça e liberdade?), as democracias são conjuntos dependentes de bom senso cuja coerência é uma paradoxal incoerência. A alma da democracia jaz no paradoxal direito tanto à diferença quanto consentimento de ser governado por múltiplas instituições e leis que valem para todos - sobretudo para os "diferentes". Democratizar é orquestrar contradições.A linha que divide a pessoa física da jurídica leva para o radicalismo dos utilitaristas que fundaram o mundo moderno. Para eles, os seres humanos seriam movidos pelo egoísmo. O egoísmo seria a base de instituições e regras de mediação entre os interesses humanos cuja busca e controle produzem uma inesgotável instabilidade.Não tenho a pretensão de ensinar missa a vigário. Mas garanto que o debate é complexo. Por exemplo, o argumento de que o voto é um momento igualitário do cidadão que "escolhe" o seu candidato e não deve ser influenciado por "pessoa jurídica" porque elas não votam, não se sustenta uma vez que sabemos que ninguém nasce com 18 anos e preparado para realizar escolhas. Todos entramos no mundo por "pessoas jurídicas" e, nele, fomos obrigados a aprender uma língua, a conhecer mandamentos e leis e, em paralelo, a amar e a detestar certas pessoas. Com a ressalva de que odiamos e amamos em momentos diversos as mesmas pessoas e amamos e odiamos num mesmo momento pessoas diferentes. Estamos sempre pisando em ovos.As discussões do Supremo não fundamentais para qualquer antropologista porque mesmo quando são técnicas, elas falam de questões fundamentais. O tema das doações das empresas abre a o debate sobre os níveis de influência a que estamos implícita ou explicitamente sujeitos.O ministro Barroso situou bem a questão, tal como li no Globo do dia 13: "É legítimo que uma empresa financie um candidato ou partido (que eventualmente, digo eu, é uma pessoa jurídica maior do que muitas empresas) por representar seus ideais. Mas muitos doam para dois partidos. Que ideologia é essa em que você apoia de um lado e apoia do outro? Faz-se isso por medo, ou por interesse?".Eis uma questão crucial para o funcionamento de uma democracia e para a compreensão do poder no Brasil. O ministro denuncia um absurdo: como apoiar simultaneamente partidos opostos? Já o antropologista lembraria que num sistema de éticas múltiplas, como é o caso do Brasil, os atores contemplam valores e ideais públicos impessoais que nivelam e levam ao risco e à impessoalidade; mas não esquecem os laços de amizade e a crua e nua realidade do poder e do lucro. Daí a aposta nos dois times. Ademais, há os casos nos quais se doa politicamente sem deixar de presentear um amigo. Nesse sentido, o não escolher é uma escolha.E eu digo mais. Trata-se, até agora, de uma norma porque o "ficar em cima do muro" é um valor que antecede a formação da própria República. É, para o bem ou para o mal, uma dimensão implícita do nosso modo gradual e sovina de distribuir o poder. Como não doar para os dois lados se em todas as disputas existem casos claros de conflitos de interesses jamais politizados justamente porque não somos uma sociedade fabricada por disputas, discordâncias e debates?Alguém conhece uma "pessoa" que se declarou impedida de decidir em virtude de "conflito de interesse"? Ademais, como não dar dinheiro para os dois se nenhum deles vai mudar coisa alguma no que diz respeito ao uso criterioso do dinheiro público e as empresas que crescem à sombra dos partidos? O problema não é a doação, é a lógica (ingovernável e não politizada) do doar como um presentear que eventualmente conduz à ladroagem.As empresas não podem doar, mas os seus donos doam? Haverá limites para as doações, certamente. Mas a partir de que critérios? Penso que esse debate é crítico. Ele nos leva ao velho problema de a reforma política só poder se realizar quando os atores tiverem plena consciência dos seus papéis. Pode um ex-presidente da República, ao lado da presidenta, defender os mensaleiros condenados, desafiando o STF num congresso do seu partido? Como ter democracia sem ter plena consciência dos papéis públicos que ocupamos e sem aceitar a ideia de ganhar e perder?

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