Roberto Piva tem toda sua poesia reunida em único volume


Edição conta com textos de intelectuais como Eliane Robert Moraes, Davi Arrigucci Júnior e Claudio Willer

Por Carlos F. B. Martin
Atualização:

Talvez não seja por acaso o retorno da poesia de Roberto Piva nos dias que correm, marcados ainda por forças conservadoras, que nos últimos anos se afirmaram sem meias palavras no Brasil. A pedido da editora Companhia das Letras, o crítico e professor Alcir Pécora voltou a reunir os poemas do autor. Em outra ocasião ele organizara a obra de Roberto Piva. Além de cuidar da reunião dos poemas, reescreveu o texto de apresentação, incluiu poemas inéditos em livro, refez o convite para que Eliane Robert Moraes, Davi Arrigucci Júnior e Claudio Willer participassem novamente com textos críticos sobre o conjunto da obra. O leitor também encontrará uma cronologia e sugestões de leituras e filmes. Como se observa, em Morda Meu Coração na Esquina o trabalho de organização foi cuidadoso, seguindo, quem sabe, o exemplo do autor, cuja elaboração dos próprios livros era não menos zelosa.

É convidativo pensar a ironia do destino: a obra foi desenvolvida sobretudo nos anos da ditadura, entre 1964 e 1985, e sua reedição ocorre sob a efervescência, ainda, dos retrocessos pelos quais passamos entre 2016 e 2022. Nesse sentido, a reedição pode ser não apenas um gesto de preservação, atraindo novos e velhos leitores, mas também um gesto de resistência.

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Mais de uma vez Alcir Pécora, em sua apresentação, nos remete à ideia de combate, ao signo do confronto no fazer poético, que se destaca pela “potência resistente à institucionalização da vida”. Quando lemos os títulos Um Estrangeiro na Legião, Mala Na Mão e Asas Pretas e Estranhos Sinais de Saturno, não temos a priori notícias de tal resistência? O menos eloquente seria o último, chamado de Fragmentos Poéticos. São títulos das partes do livro. Neles, com exceção do derradeiro, haveria um ponto fora da curva, uma incongruência em ação, algo que não aceita o lugar comum, o senso comum, a vida comum.

Se a palavra-chave é transgressão, é preciso compreendê-la. A transgressão nem sempre significa ruptura, embora a ideia de que um vínculo se rompeu esteja posta no discurso. Por vezes ela se revela parcialmente verdadeira. E não foram poucos os fogos de artifício na poesia brasileira entre 1960 e 1980, particularmente nos anos 1970. Pensando a dinâmica entre a linguagem e a realidade, Roberto Piva não se esconde em meio a palavras como se elas fossem uma fachada, deixando em surdina a preservação de hábitos e costumes criticados em primeiro plano. Em outras palavras, a relação entre o eu e o mundo é atacada no nervo das contradições, que se acumulam ao modo anti convencional do autor, a fim de tensionar ao máximo o status quo.

Nele, que caminhava na contramão, a transgressão não era um gesto que se perdia no ar tão logo mudassem de direção os ventos históricos. O diálogo com outras vozes, seja do mundo literário, seja do não literário, fazendo se alojar na página, mediadas pela linguagem, as possibilidades de articulação da própria voz, sedimenta no texto a abertura ao outro. O intercâmbio na Ode a Fernando Pessoa, percorrendo tanto os caminhos do universo pessoano quanto os da cidade onde se vive, sinaliza de antemão, no início da obra, um movimento de troca. “Ah, vamos girar pela cidade, não importa o que faças ou/ [quem sejas, eu te/ abraço, vamos!”. De par com a interação, não se deixa diminuir a aversão a toda e qualquer codificação da vida. “Não me limitem, mercadores!”. Não me limitem, burgueses, diria ele também.

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O poeta Roberto Piva foi um dos grandes nomes da poesia considerada subversiva  Foto: Luiz Prado/Estadão

Não há como não se sentir deslocado diante das imagens dos poemas. Certo que muitas solicitam do leitor algum conhecimento prévio, alguma bagagem literária, para que decodifique minimamente, entre os versos, as referências em jogo. Mas é certo que não conhecer todas as referências, e são muitas a cada poema, não deve ser lido como impeditivo ao contato. Nada disso. O deslocamento, se nos obriga a ter cautela, nos faz seguir adiante. Desperta a curiosidade. Produz o efeito contrário do amortecimento do cotidiano, regido por leis e demandas:

A MÁQUINA DE MATAR O TEMPO

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Aqui nós investimos contra a alma imortal dos gabinetes.

Procuramos amigos que não sejam sérios: os macumbeiros,

os loucos confidentes, imperadores desterrados, freiras

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surdas, cafajestes com hemorroidas e todos que detestam os

sonhos incolores da poesia das Arcadas.

Nós sabemos muito bem que a ternura de lacinhos é um

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luxo protozoário. Sede violentos como uma gastrite. Abaixo

as borboletas douradas.

Olhai o cintilante conteúdo das latrinas

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Somos obrigados a sair do lugar de praxe, onde os hábitos repousam. Como a poesia que não teme dizer seu nome, a de Piva avança sobre o cotidiano e o reapresenta em ângulo diverso. O que olhando de longe parece conter traços surrealistas, pois não apresentaria nenhuma ideia em seu lugar, olhando de perto não poderia ser mais chão a realidade pela qual a leitura nos faz caminhar. Ainda que ela nos transporte a instâncias outras de contato, outros vínculos com o real, e realmente somos transportados por ela, não perdemos de vista o contato com ele. É justamente o absurdo o real. É justamente o dedo no absurdo, qual o dedo na ferida, que faz certas institucionalizações, como certas naturalizações, aparecem com a cara que têm. Por vezes não é preciso ser literal. “A Vida explode sempre no mais além.”

TODO MEU CORAÇÃO NA ESQUINA

ROBERTO PIVA

ORG.: ALCIR PÉCORA

COMPANHIA DAS LETRAS

504 PÁGINAS R$ 100

Talvez não seja por acaso o retorno da poesia de Roberto Piva nos dias que correm, marcados ainda por forças conservadoras, que nos últimos anos se afirmaram sem meias palavras no Brasil. A pedido da editora Companhia das Letras, o crítico e professor Alcir Pécora voltou a reunir os poemas do autor. Em outra ocasião ele organizara a obra de Roberto Piva. Além de cuidar da reunião dos poemas, reescreveu o texto de apresentação, incluiu poemas inéditos em livro, refez o convite para que Eliane Robert Moraes, Davi Arrigucci Júnior e Claudio Willer participassem novamente com textos críticos sobre o conjunto da obra. O leitor também encontrará uma cronologia e sugestões de leituras e filmes. Como se observa, em Morda Meu Coração na Esquina o trabalho de organização foi cuidadoso, seguindo, quem sabe, o exemplo do autor, cuja elaboração dos próprios livros era não menos zelosa.

É convidativo pensar a ironia do destino: a obra foi desenvolvida sobretudo nos anos da ditadura, entre 1964 e 1985, e sua reedição ocorre sob a efervescência, ainda, dos retrocessos pelos quais passamos entre 2016 e 2022. Nesse sentido, a reedição pode ser não apenas um gesto de preservação, atraindo novos e velhos leitores, mas também um gesto de resistência.

Mais de uma vez Alcir Pécora, em sua apresentação, nos remete à ideia de combate, ao signo do confronto no fazer poético, que se destaca pela “potência resistente à institucionalização da vida”. Quando lemos os títulos Um Estrangeiro na Legião, Mala Na Mão e Asas Pretas e Estranhos Sinais de Saturno, não temos a priori notícias de tal resistência? O menos eloquente seria o último, chamado de Fragmentos Poéticos. São títulos das partes do livro. Neles, com exceção do derradeiro, haveria um ponto fora da curva, uma incongruência em ação, algo que não aceita o lugar comum, o senso comum, a vida comum.

Se a palavra-chave é transgressão, é preciso compreendê-la. A transgressão nem sempre significa ruptura, embora a ideia de que um vínculo se rompeu esteja posta no discurso. Por vezes ela se revela parcialmente verdadeira. E não foram poucos os fogos de artifício na poesia brasileira entre 1960 e 1980, particularmente nos anos 1970. Pensando a dinâmica entre a linguagem e a realidade, Roberto Piva não se esconde em meio a palavras como se elas fossem uma fachada, deixando em surdina a preservação de hábitos e costumes criticados em primeiro plano. Em outras palavras, a relação entre o eu e o mundo é atacada no nervo das contradições, que se acumulam ao modo anti convencional do autor, a fim de tensionar ao máximo o status quo.

Nele, que caminhava na contramão, a transgressão não era um gesto que se perdia no ar tão logo mudassem de direção os ventos históricos. O diálogo com outras vozes, seja do mundo literário, seja do não literário, fazendo se alojar na página, mediadas pela linguagem, as possibilidades de articulação da própria voz, sedimenta no texto a abertura ao outro. O intercâmbio na Ode a Fernando Pessoa, percorrendo tanto os caminhos do universo pessoano quanto os da cidade onde se vive, sinaliza de antemão, no início da obra, um movimento de troca. “Ah, vamos girar pela cidade, não importa o que faças ou/ [quem sejas, eu te/ abraço, vamos!”. De par com a interação, não se deixa diminuir a aversão a toda e qualquer codificação da vida. “Não me limitem, mercadores!”. Não me limitem, burgueses, diria ele também.

O poeta Roberto Piva foi um dos grandes nomes da poesia considerada subversiva  Foto: Luiz Prado/Estadão

Não há como não se sentir deslocado diante das imagens dos poemas. Certo que muitas solicitam do leitor algum conhecimento prévio, alguma bagagem literária, para que decodifique minimamente, entre os versos, as referências em jogo. Mas é certo que não conhecer todas as referências, e são muitas a cada poema, não deve ser lido como impeditivo ao contato. Nada disso. O deslocamento, se nos obriga a ter cautela, nos faz seguir adiante. Desperta a curiosidade. Produz o efeito contrário do amortecimento do cotidiano, regido por leis e demandas:

A MÁQUINA DE MATAR O TEMPO

Aqui nós investimos contra a alma imortal dos gabinetes.

Procuramos amigos que não sejam sérios: os macumbeiros,

os loucos confidentes, imperadores desterrados, freiras

surdas, cafajestes com hemorroidas e todos que detestam os

sonhos incolores da poesia das Arcadas.

Nós sabemos muito bem que a ternura de lacinhos é um

luxo protozoário. Sede violentos como uma gastrite. Abaixo

as borboletas douradas.

Olhai o cintilante conteúdo das latrinas

Somos obrigados a sair do lugar de praxe, onde os hábitos repousam. Como a poesia que não teme dizer seu nome, a de Piva avança sobre o cotidiano e o reapresenta em ângulo diverso. O que olhando de longe parece conter traços surrealistas, pois não apresentaria nenhuma ideia em seu lugar, olhando de perto não poderia ser mais chão a realidade pela qual a leitura nos faz caminhar. Ainda que ela nos transporte a instâncias outras de contato, outros vínculos com o real, e realmente somos transportados por ela, não perdemos de vista o contato com ele. É justamente o absurdo o real. É justamente o dedo no absurdo, qual o dedo na ferida, que faz certas institucionalizações, como certas naturalizações, aparecem com a cara que têm. Por vezes não é preciso ser literal. “A Vida explode sempre no mais além.”

TODO MEU CORAÇÃO NA ESQUINA

ROBERTO PIVA

ORG.: ALCIR PÉCORA

COMPANHIA DAS LETRAS

504 PÁGINAS R$ 100

Talvez não seja por acaso o retorno da poesia de Roberto Piva nos dias que correm, marcados ainda por forças conservadoras, que nos últimos anos se afirmaram sem meias palavras no Brasil. A pedido da editora Companhia das Letras, o crítico e professor Alcir Pécora voltou a reunir os poemas do autor. Em outra ocasião ele organizara a obra de Roberto Piva. Além de cuidar da reunião dos poemas, reescreveu o texto de apresentação, incluiu poemas inéditos em livro, refez o convite para que Eliane Robert Moraes, Davi Arrigucci Júnior e Claudio Willer participassem novamente com textos críticos sobre o conjunto da obra. O leitor também encontrará uma cronologia e sugestões de leituras e filmes. Como se observa, em Morda Meu Coração na Esquina o trabalho de organização foi cuidadoso, seguindo, quem sabe, o exemplo do autor, cuja elaboração dos próprios livros era não menos zelosa.

É convidativo pensar a ironia do destino: a obra foi desenvolvida sobretudo nos anos da ditadura, entre 1964 e 1985, e sua reedição ocorre sob a efervescência, ainda, dos retrocessos pelos quais passamos entre 2016 e 2022. Nesse sentido, a reedição pode ser não apenas um gesto de preservação, atraindo novos e velhos leitores, mas também um gesto de resistência.

Mais de uma vez Alcir Pécora, em sua apresentação, nos remete à ideia de combate, ao signo do confronto no fazer poético, que se destaca pela “potência resistente à institucionalização da vida”. Quando lemos os títulos Um Estrangeiro na Legião, Mala Na Mão e Asas Pretas e Estranhos Sinais de Saturno, não temos a priori notícias de tal resistência? O menos eloquente seria o último, chamado de Fragmentos Poéticos. São títulos das partes do livro. Neles, com exceção do derradeiro, haveria um ponto fora da curva, uma incongruência em ação, algo que não aceita o lugar comum, o senso comum, a vida comum.

Se a palavra-chave é transgressão, é preciso compreendê-la. A transgressão nem sempre significa ruptura, embora a ideia de que um vínculo se rompeu esteja posta no discurso. Por vezes ela se revela parcialmente verdadeira. E não foram poucos os fogos de artifício na poesia brasileira entre 1960 e 1980, particularmente nos anos 1970. Pensando a dinâmica entre a linguagem e a realidade, Roberto Piva não se esconde em meio a palavras como se elas fossem uma fachada, deixando em surdina a preservação de hábitos e costumes criticados em primeiro plano. Em outras palavras, a relação entre o eu e o mundo é atacada no nervo das contradições, que se acumulam ao modo anti convencional do autor, a fim de tensionar ao máximo o status quo.

Nele, que caminhava na contramão, a transgressão não era um gesto que se perdia no ar tão logo mudassem de direção os ventos históricos. O diálogo com outras vozes, seja do mundo literário, seja do não literário, fazendo se alojar na página, mediadas pela linguagem, as possibilidades de articulação da própria voz, sedimenta no texto a abertura ao outro. O intercâmbio na Ode a Fernando Pessoa, percorrendo tanto os caminhos do universo pessoano quanto os da cidade onde se vive, sinaliza de antemão, no início da obra, um movimento de troca. “Ah, vamos girar pela cidade, não importa o que faças ou/ [quem sejas, eu te/ abraço, vamos!”. De par com a interação, não se deixa diminuir a aversão a toda e qualquer codificação da vida. “Não me limitem, mercadores!”. Não me limitem, burgueses, diria ele também.

O poeta Roberto Piva foi um dos grandes nomes da poesia considerada subversiva  Foto: Luiz Prado/Estadão

Não há como não se sentir deslocado diante das imagens dos poemas. Certo que muitas solicitam do leitor algum conhecimento prévio, alguma bagagem literária, para que decodifique minimamente, entre os versos, as referências em jogo. Mas é certo que não conhecer todas as referências, e são muitas a cada poema, não deve ser lido como impeditivo ao contato. Nada disso. O deslocamento, se nos obriga a ter cautela, nos faz seguir adiante. Desperta a curiosidade. Produz o efeito contrário do amortecimento do cotidiano, regido por leis e demandas:

A MÁQUINA DE MATAR O TEMPO

Aqui nós investimos contra a alma imortal dos gabinetes.

Procuramos amigos que não sejam sérios: os macumbeiros,

os loucos confidentes, imperadores desterrados, freiras

surdas, cafajestes com hemorroidas e todos que detestam os

sonhos incolores da poesia das Arcadas.

Nós sabemos muito bem que a ternura de lacinhos é um

luxo protozoário. Sede violentos como uma gastrite. Abaixo

as borboletas douradas.

Olhai o cintilante conteúdo das latrinas

Somos obrigados a sair do lugar de praxe, onde os hábitos repousam. Como a poesia que não teme dizer seu nome, a de Piva avança sobre o cotidiano e o reapresenta em ângulo diverso. O que olhando de longe parece conter traços surrealistas, pois não apresentaria nenhuma ideia em seu lugar, olhando de perto não poderia ser mais chão a realidade pela qual a leitura nos faz caminhar. Ainda que ela nos transporte a instâncias outras de contato, outros vínculos com o real, e realmente somos transportados por ela, não perdemos de vista o contato com ele. É justamente o absurdo o real. É justamente o dedo no absurdo, qual o dedo na ferida, que faz certas institucionalizações, como certas naturalizações, aparecem com a cara que têm. Por vezes não é preciso ser literal. “A Vida explode sempre no mais além.”

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