Se você é fã de Elena Ferrante e ainda não conhece Roberto Saviano, não se deixe levar pela capa da recém-lançada edição de Os Meninos de Nápoles - Conquistando a Cidade (Companhia das Letras). As semelhanças entre as obras ficcionais desses dois escritores italianos possuem vasos comunicantes como o ultrarrealismo e os cenários do sul da Itália, mas se diferenciam drasticamente em dois pontos: a dosimetria do uso da violência, cavalar em Saviano, e a técnica narrativa, muito superior em Ferrante.
“Saviano está de volta para contar a história de uma Nápoles brutal e agonizante”, escreveu Ferrante, em trecho destacado pela editora na capa, buscando uma rabeira no sucesso comercial da autora da tetralogia que conta a saga das amigas Lenu e Lila. O aviso é necessário porque logo no primeiro capítulo o romance de Saviano enfia os dois pés no peito leitor com uma cena brutalmente escatológica, daquelas capazes de fazer os estômagos mais sensíveis abandonarem o livro numa pilha qualquer logo na largada.
Seria um erro deixá-lo de lado porque, ainda que deficiente em tecnicidade e com problemas de estrutura, Os Meninos de Nápoles é um bom romance pela relevância do tema, o da banalização e disseminação da violência entre os jovens das periferias, e, especialmente, pela semelhança com a realidade das grandes cidade brasileiras. A obra conta a história do garoto Nicolas, talhado desde sempre para o mundo da contravenção. Com seus amigos do bairro de Forcella, o rapazote vai aos poucos se envolvendo com os camorristas (mafiosos do sul da Itália) e demonstrando grande desenvoltura e espírito de liderança para os negócios do crime organizado.
Como o próprio protagonista diz em certa passagem do romance, trata-se de criar a “Camorra 2.0”, uma máfia distante daquela dos velhos ‘capos’, uma nova organização criminosa, chamada de ‘paranza’, movida a drogas, fardada com roupas esportivas de grife, conectada por smartphones e armada com fuzis AK-47.
Prosa dura. Saviano narra as aventuras da turminha de delinquentes, em conflito com outras gangues juvenis e com a velha guarda mafiosa, levando ao extremo o estilo telegráfico (porém afiado como o canivete dos meninos). Em alguns trechos deste seu mais recente trabalho, arrisca um certo lirismo e alguma reflexão elaborada, mas as palavras, as imagens e as ideias lhe escorrem pelos dedos e deixam o leitor com a sensação de que teria sido melhor prosseguir na toada da prosa sem firulas, feita para virar filme de ação – e virou mesmo, inclusive com roteiro do próprio Roberto Saviano, recentemente premiado pelo Festival de Berlim.
Os Meninos de Nápoles é ação pura, lastreada na experiência de quem conhece muito o universo abordado. Em Gomorra (2006), best-seller que o consagrou e virou filme e série televisiva de sucesso, Saviano, também jornalista, desnuda os negócios da Camorra, um trabalho de reportagem que lhe rendeu uma sentença de morte da Máfia e o obriga a andar com a escolta de seguranças até hoje. Neste mais recente trabalho, o autor preferiu o artifício da ficção, mas sem abrir mão de pesquisa de campo minuciosa.
Para os brasileiros, infelizmente acostumados com as cenas de crianças portando fuzis nas favelas de grandes cidades do País, é impossível não reconhecer nossa realidade nas páginas do livro. Os meninos das gangues da Nápoles de Saviano se diferem pouco, em sua essência, dos moleques esfarrapados da periferia do Rio de Janeiro retratados em Cidade de Deus, o filme de Fernando Meirelles inspirado no livro de Paulo Lins. O Nicolas “Marajá” de Saviano em muito lembra o “Reizinho”, protagonista do romance Inferno, de Patrícia Mello, um menino que se afasta da escola para crescer na hierarquia do tráfico de drogas nas favelas do mesmo Rio. Infâncias e pré-adolescências marcadas pela falta de oportunidades e sequestradas pelo crime. Apesar de não ter nascido na miséria degradante das favelas brasileiras, a geração de Nicolas Fiorillo também está impregnada de um consumismo vazio, de uma cultura da ostentação. Jovens, adolescentes e crianças marcados pela solidão das redes sociais, enganados pelo culto cada vez maior ao poder das armas de fogo, seduzidos pela violência e pelo individualismo. A Nápoles de Roberto Saviano, tão universal quanto a de Elena Ferrante, porém muito mais brasileira.