Pereira está fatigado dos ares que respira. Não por causa de sua obsessão com a morte, faz muito calor em Lisboa em agosto e sua minúscula sala é um bocado abafada. Inquieto, o jornalista editor da página cultural do Lisboa, um jornal vespertino de circulação modesta, sente-se comprimido pelo ambiente claustrofóbico, cujo ventilador asmático o deixa intempestivo. Irritado e com mil ideias na cabeça, o solitário Pereira desce as escadas de seu escritório fazendo preces para não trombar com a fuxiqueira zeladora, ele só deseja um copo de limonada no restaurante Orquídea.
Seria exagero dizer que o escritor italiano Antonio Tabucchi esgarçou um anaforismo ao preencher, ao final das cenas de Afirma Pereira, com “afirma Pereira”. Tabucchi é ácido como a limonada, projeta no personagem do jornalista em crise uma espécie de crítica ao jornalismo da época e sua inexorável forma de reportar. Afirma Cicrano, afirma Beltrano, e Pereira aos poucos vai se interessando por política. Mais: pela vida – que descortina à sua volta uma realidade complicada. Quando o foco da morte sai de cena, Pereira repara nos burburinhos ao redor de si, nos assassinatos, nas truculências que eram sinal da ditadura Salazar. A alma do ofício, então, não está só em reportar, afirma. O livro é visceral, embora em boa parte corpulento como o personagem, Afirma Pereira tem leveza e arremata nos finalmentes. Desengonçado, Pereira tem ímpetos de lucidez em meio à monotonia que é sua vida. Obsessivo e cauteloso, ele é um hipocondríaco depressivo viciado em limonada, católico não praticante, pois não acredita na ressureição da carne, tese esta que o aproxima do jovem filósofo Monteiro Rossi, que passa a colaborar com o caderno de cultura editado pelo experiente jornalista. O contato com o jovem e sua namorada impactam a vida do grandalhão, que cada vez mais está de olhos atentos na juventude, o futuro. Ao pedir o obituário de um grande escritor, Pereira pré-estabelece o que quer, mas deixa no colo do menino caminho aberto, para depois ele mesmo voltar atrás, se contradizer, e jogar conversa para o jovem que precisa ganhar a vida. Ágil e proativo, Monteiro Rossi escreve o necrológio de Federico García-Lorca, poeta que se tornou uma espécie de mártir no entrevero das sangrentas batalhas Franquistas, na vizinha Espanha. Pereira então adverte o jovem, afinal, o Lisboa é um jornal complicado para publicar subversivos, mesmo no caderno de cultura. Não que não o faça, mas sem spoilers. Uma fina ficção, adaptada para o cinema pelo diretor italiano Roberto Faenza, com Marcello Mastroianni como Pereira, Afirma Pereira cutuca um estereótipo que sempre assombrou as páginas dos cadernos de cultura: a perfumaria. E nada tem a ver com o perfume fétido espanhol (uma cutucada em Franco?) que Pereira, ora sim, ora não, insiste em usar, mas sim com um jargão do ofício, que injustamente rotula a seção de cultura como algo de menor importância. O diretor do Lisboa está mais interessado na loira com quem se encontra furtivamente no termas do que no caderno de Pereira, em suas palavras “A página é sua, faça como quiseres!”. Não sem pontuar, de antemão, “Quanto vai me custar?”. Em Portugal, as cracas do fascismo de Salazar saiam devorando opositores. Com censuras evidentes, Pereira se dá conta da perversidade dos veículos de comunicação calados perante o regime autoritário. Ao fundo, discorda dos podres poderes, dos que precisam dos tiranos (nas palavras do amigo Silva, um literato conformado, “Os portugueses precisam de um líder para seguir”), e prova o amargor da sua irrelevância, ao passo que conversa com o retrato de sua mulher morta. Frustrado, corpulento, Pereira entra em parafuso consigo mesmo enquanto rumina a necessidade de se posicionar, seja publicando os revolucionários poetas franceses do século 19 ou ajudando Monteiro Rossi. Tanta adrenalina o cansa, ele que sorve da monotonia; acha melhor levantar e tomar uma limonada. Com uma edição muito bem cuidada, Afirma Pereira volta às prateleiras depois de anos no esquecimento. A parceria entre o clube de livros TAG e a editora Estação Liberdade resgatou a tradução do romance feita pela esmerada Roberta Barni, a mesma do projeto editorial ousado bancado pela finada Cosac-Naify. Especialista em literatura italiana, Barni traduziu recentemente A Ilha de Arturo, de Elsa Morante, clássico adaptado para o cinema pelas lentes de Damiani. Afirma Pereira ganhou releituras no cinema, em peças de teatro, o livro é dos trabalhos mais notáveis de Antonio Tabucchi. Um tratado sobre ética jornalística. Em constante flerte com o passado, embora a morte fique em seu cangote incansável, o hipocondríaco Pereira adverte o jovem Monteiro que sai escrevendo pelos cotovelos os necrológios de grandes escritores, mas à sua maneira. Ele quer despedi-lo, mas não o faz. Monteiro Rossi segue o coração, e este é o que verdadeiramente traz sentido às coisas, afirma Pereira. Bonachão e intelectual, o jornalista se assemelha muito ao arquétipo do sr. Pickwick, o personagem de Dickens que tocava um caderno de cultura e sociedade que também não estava aí com política, embora tanto ele, quanto Pereira, a façam com mais maestria do que os cronistas políticos – e com odor de perfume francês, para agradar o olfato do leitor. *É jornalista
Afirma Pereira Autor: Antônio Tabucchi Tradução: Roberta Barni Editora: TAG/Estação Liberdade