Em um dia quente de janeiro, o irmão mais velho do narrador se suicida. Este é o ponto de partida de Dia Um, romance de estreia do poeta e jornalista carioca Thiago Camelo. O episódio aterrador da morte, que transforma em definitivo os laços familiares, abre espaço para uma investigação íntima da vida: como continuar depois de um acontecimento traumático como esse?
O relato daquilo que de início parece ser um retrato da depressão e do suicídio do irmão se torna uma espécie de espelho. “É você, quase um outro dele, o irmão que também deu lá muito certo, o irmão com alguns problemas, o que toma remédio, o hipocondríaco, o depressivo, o melancólico, aquele no qual ele poderia se projetar”, diz a certa altura o narrador.
É por esse viés autor reflexivo, então, que o irmão mais novo (também há o irmão do meio) constrói – e reconstrói – a própria vida. A ansiedade e a depressão, e o modo como lida com as próprias questões psicológicas, são tratadas com franqueza em uma espécie de diálogo interno, do narrador consigo mesmo, para discutir seu deslocamento no núcleo familiar, certa culpa que sente pela morte do irmão e (questão recorrente no debate contemporâneo) o corpo – “o poço no qual seu irmão mais velho olhou mais fundo”, segundo o narrador.
Outra característica singular da obra é a narração em segunda pessoa, esse “você” despersonificado e às vezes escorregadio, mas que funciona do início ao fim. Aliado à inventividade do autor, esse narrador atípico estrutura uma voz a um só tempo singular e universal, tornando tentadora a identificação do leitor – sobretudo nos momentos mais meditativos, desenvolvidos por meio de uma autoanálise quase obsessiva. “Você acha que se conseguisse não pensar o tempo todo sobre isso seria como se isto, a dor maior, não existisse a maior parte do tempo. Um negacionismo evolutivo, por sobrevivência. Para a maioria das pessoas é impensável refletir sobre um fato o tempo todo. Não para você. Você sente isso o tempo todo.”
Infância, adolescência e vida adulta – o tempo dividido entre o “antes” e o “depois” da morte do irmão – se misturam na narrativa para oferecer ao leitor uma espécie de panorama do luto da família. “Mas... você realmente não viu a tempestade chegando?” Quais os sinais de que a vida do irmão mais velho caminhava para aquele dia suarento de janeiro, no qual a queda do sétimo andar de um apart-hotel em Copacabana, no Rio de Janeiro, poria um fim? O que sobra para os que ficaram? São para essas perguntas que o irmão mais novo, em um jogo da memória bem-embaralhado, procura respostas.
O narrador desata os nós de sua relação com o pai, a mãe e os irmãos, o mais velho e o do meio – e é neste desenlace que está a maior riqueza do livro. Repleta de nuances que perpassam os diferentes tempos da narrativa, a amizade entre os dois irmãos que ficam, permeada de aproximações e distâncias (o irmão mais velho vive em Lisboa e o mais novo, no Rio), empresta ao livro sua ternura. “Será que apenas você, até hoje, leva o seu irmão para todo lugar, ou ele também carrega você por aí?”, escreve.
A ligação dos três irmãos, desde o período que marca infância do narrador e a adolescência dos outros dois, dá um contorno sensível para as primeiras percepções de aptidão ou contrassenso, do impacto do dinheiro na vida familiar e da comparação inevitável entre os futuros possíveis.
A rua da infância, aliás, vai do idílio ao tormento e serve de índice para a construção da identidade do irmão que narra. “Aquele lugar, no qual você atearia fogo se pudesse, era feito de uma matéria tão peculiar e atípica que você não teve para onde fugir – você, em grande parte, era feito da Rua, e o ‘nada’ que ela significava era também aquilo que você tinha obrigação de reivindicar e preservar”, escreve Camelo.
Dia Um é o quarto livro de Camelo e sua estreia na prosa de ficção. Antes, o autor publicou Verão em Botafogo (7Letras, 2010), A Ilha é Ela Mesma (Moça Editora, 2015) e Descalço nos Trópicos Sobre Pedras Portuguesas (Nós, 2017). Neste último, repleto de poemas bastante narrativos, que dão a entrever um desejo genuíno de contar histórias, o autor intitula um dos poemas ‘Histórias tristes também merecem ser contadas’. É possível ao leitor reter de seu terceiro livro a mesma imagem com que sai da leitura de Dia Um: uma viagem de avião e, pela janela, a lua (ou o sol) se pondo. A ideia de que há continuação. “Tudo vai ficar bem” – é a frase que ecoa nos ouvidos do narrador.
Estreia primorosa na prosa de ficção, Dia Um é uma leitura comovente, que trata com honestidade e beleza temas difíceis e caros para a nossa vida e a literatura, principalmente após os últimos anos de pandemia, período tão marcado pela morte e a reclusão.