A recente publicação dos Contos Reunidos (Editora 34, 552 páginas, R$ 89), de Fiodor Dostoievski (1821-1881), nos traz os 28 contos do escritor a partir de traduções feitas diretamente do russo. Com apresentação de Fátima Bianchi, professora de Língua e Literatura Russa da USP, a edição contém obras-primas como A Dócil (1876; tradução da própria Fátima Bianchi) e O Sonho de um Homem Ridículo (1877; tradução de Vadim Nikitin).
Se as personagens de Dostoievski parecem sempre tomadas por crises lancinantes, A Dócil leva as tensões às últimas consequências. Diante do caixão da esposa que se suicidara e emparedado pelo lusco-fusco de sua consciência (o marido se sabe artífice do suicídio), o narrador do conto diz e se desdiz, a verdade se esgueira sob a estória truncada pela dor e pelo veneno do remorso. Leitor de Dostoievski, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) insinua que, quando adestramos a nossa consciência, ela beija-nos – enquanto nos morde.
O Sonho de um Homem Ridículo, por sua vez, contém uma suma das grandes questões que perpassam a obra de Dostoievski. Em meio ao universo agônico do escritor, a trajetória do homem ridículo, que vai do penhasco do suicídio à descoberta de uma verdade transcendental, parece perfazer a reconciliação dantesca que, em A Divina Comédia, nos leva dos círculos infernais à paz celestial. Assim, eis o que o homem ridículo nos diz ao fim de seu sonho redentor: “Eu vi a verdade, eu vi e sei que as pessoas podem ser belas e felizes, sem perder a capacidade de viver na terra. Não quero e não posso acreditar que o mal seja o estado normal dos homens.” Aqueles que consideram Dostoievski um coveiro de Deus e um apologista inequívoco do niilismo têm dificuldade em lidar com o ímpeto de exumação divina e de reconciliação humana e social pelo qual o homem ridículo tanto clama.
Como os Contos Reunidos nos trazem, entre outros, O Sonho de Raskolnikov (extraído de Crime e Castigo, livro de 1866) e O Grande Inquisidor (extraído de Os Irmãos Karamazov, 1880), ambos traduzidos por Paulo Bezerra, façamos uma breve reflexão sobre crimes e castigos, de modo a aproximarmos Dostoievski dos crimes sem castigo de nossa época.
Filho de um tempo pródigo em questionamentos radicais em relação a Deus e ao “Não matarás”, o estudante de Direito Raskolnikov concebe um teste niilista: será possível matar a usurária Aliona Ivanovna com a indiferença moral de um Napoleão diante de seus soldados eviscerados nos campos de batalha? Notemos que, em Crime e Castigo, Raskolnikov congrega a concepção e a execução do assassínio. O mentor também empunha o machado para rachar a têmpora de Aliona e de sua irmã, que aparecera de forma inusitada no momento do crime (violada a fronteira do “Não matarás”, já não há limites para o choro e o ranger de dentes).
Em Os Irmãos Karamazov, o niilismo de Ivan Karamazov concebe a morte de seu pai, o bufão Fiodor Karamazov (Se Deus não existe e tudo é permitido – aforismo atribuído a Ivan –, é preciso ceifar todas as figuras do Pai). Para a consecução do crime, no entanto, vem à tona a divisão letal do trabalho: Ivan concebe o parricídio, mas é Smierdiakov, irmão bastardo de Ivan e filho do estupro de uma doente mental por Fiodor Karamazov, quem matará o pai. Notemos que a cisão entre a concepção e a execução do assassínio aparta o crime do castigo.
Ora, Raskolnikov não consegue esquecer o terror e as súplicas das vítimas antes das machadadas. Ivan, por sua vez, delega o crime e o castigo ao bastardo. Ivan, o mentor, não ouve o choro e o ranger de dentes. Ao delegar o crime, Ivan arremessa sobre o carrasco (e suas vítimas) o fardo do castigo. “Que os répteis se devorem”, arremata Ivan Pôncio Pilatos, aquele que pode lavar as mãos. Se levarmos a divisão letal do trabalho dostoievskiana às últimas consequências, talvez cheguemos à atualidade dos ataques aéreos dos drones, cujas vítimas/alvos são infalivelmente capturados via satélite. Ora, poderia haver maior distância entre o mentor e as vítimas? Poderia haver maior distância entre o crime e o castigo?
Talvez Aliona Ivanovna e sua irmã pudessem ter escapado das machadadas de Raskolnikov – o carrasco era humano, o carrasco era falível. Já as vítimas/alvos dos drones não têm como escapar. Para os alvos/vítimas, não há choro e ranger de dentes. O caráter paradoxal de Dostoievski poderia dizer que a letalidade dos drones é piedosa para com as vítimas: como os alvos jamais sobrevivem, a destruição total e imediata dos arredores aniquila o sofrimento. Pablo Picasso não conseguiria pintar Guernica após um ataque de drone.
Diante de crimes sem castigo – isto é, diante de castigos não arrolados como crimes –, Ivan Pôncio Pilatos, com as mãos limpas após mais um ataque de drone, bem poderia sentenciar: “Que os répteis se devorem – caso ainda haja répteis.”
*Flávio Ricardo Vassoler é doutor em Letras pela USP, com estágio doutoral junto à Northwestern University (EUA)