Saiba o que levou Graciliano Ramos não aceitar a turma moderna da Semana de 22


O alagoano, autor de ‘Vida Secas’, não era favorável às propostas dos paulistas, implicando com Mário de Andrade

Por André Jobim Martins
Atualização:

Com o título O Antimodernista: Graciliano Ramos e 1922, a nova coletânea de textos pouco conhecidos do escritor alagoano sugere que o autor de Vidas Secas seja lembrado como um obstinado antagonista da Semana de 22 e seu grupo. São crônicas, artigos críticos, cartas e entrevistas do autor, além de outros excertos, acompanhados de esclarecedor ensaio introdutório e aparato crítico cuidadosamente elaborados pelos organizadores Thiago Mio Salla e Ieda Lebensztayn. Em comum, todos os textos tocam ou pelo menos tangenciam a Semana de Arte Moderna de 1922, seus protagonistas, ou suas reverberações. Seria o título mero lance retórico? Decerto que não. Justa ou injusta, não era nada favorável a opinião do alagoano sobre o modernismo paulista.

Quando perguntaram a Graciliano, em 1948, se ele se considerava modernista, talvez esperando ver confirmada a expectativa de que seus romances seriam de alguma forma resultantes da repercussão do movimento paulista (é o ponto de vista que me foi ensinado no colégio), a resposta foi cortante a ponto de parecer cuidadosamente preparada: “Que ideia! Enquanto os rapazes de 22 promoviam o seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão”.

Graciliano Ramos e seu retrato feito por Portinari  Foto: IEB USP
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Certamente, Graciliano Ramos não era fácil de agradar: não gostava de música, era indiferente à comida, não dançava; também não ia ao cinema. Na literatura, sua preferência era pelo romance realista, de Balzac a Tolstoi. Sobre Machado de Assis, por outro lado, dizia saber que era grande, mas não gostava – opinião parecida, por sinal, com a de Mário de Andrade. Admirado como um dos maiores romancistas brasileiros nos dez ou quinze anos finais de sua vida, Graciliano ainda assim se queixava, em privado, da falta de reconhecimento – o que não o impedia de dizer à imprensa que era “cacete” quando fãs iam incomodá-lo na livraria que frequentava diariamente (para dormir, dizia) no centro do Rio. É verdade que, por trás da carranca, podia descobrir-se um homem amável. “Falsa fera”, assevera um entrevistador.

Não é difícil resumir as razões da opinião adversa de Graciliano sobre 22: o modernismo tinha muito aparato, mas pouca substância. A renovação pretendida pelo grupo de São Paulo era, na melhor das hipóteses, inócua. “Não podendo suprimir a Constituição”, o modernismo “arremessou-se à gramática”. Em críticas e entrevistas, o romancista ataca reiteradamente o cultivo afetado dos solecismos, empregados à guisa de adaptação da literatura à fala popular. Direta ou indiretamente, as invectivas do alagoano visam com frequência à figura de Mário de Andrade. Graciliano vitupera a predileção marioandradiana pelos períodos terminados em preposição e considera a gramatiquinha da fala brasileira uma “frescura” (pergunto-me se foram somente estéticos os critérios que presidiram a escolha do qualificativo). Com Oswald de Andrade, com quem tinha uma boa relação, Graciliano chegava a ser mais benevolente.

'Antropofagia', pintura de Tarsila do Amaral, que se tornou um ícone do modernismo. Graciliano foi antirromântico e viu no modernismo um novo romantismo, e nisso identificou um equívoco Foto: Acervo Estadão
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Em visita a São Paulo, ainda em 1926, escreve a um amigo: “Vê se me arranjas uma gramática e um dicionário de língua paulista, que não entendo, infelizmente”, emendando o remoque com uma referência ao escasso uso da vírgula no planalto piratiningano. Em se tratando da adaptação do texto literário à fala popular, o melhor seria imitar os caboclos do sertão nordestino, onde “a língua se conserva mais pura”. “Num caso de sintaxe de regência”, declara a uma revista, “entre a linguagem de um doutor e a de um caboclo, não tenha dúvida, vá pelo caboclo”. O romancista não dispensava, por outro lado, a leitura meticulosa de dicionários. Aos que se espantassem diante desse seu hábito, Graciliano alegava com desembaraço que, como escritor, estava “obrigado a jogar com as palavras” – era preciso, portanto, “conhecer o seu valor exato”, pois “não há talento que resista à ignorância da língua”.

Uma imagem sintetiza o que o escritor pensava do movimento paulista: panelinha de “literatos por nomeação”, que “se vestem bem, comem direito, gargarejam discursos, dançam e conversam besteira com muita suficiência”. De positivo, nos modernistas, Graciliano Ramos via o fato de terem sabido “empunhar e meter fundo a picareta, espalhar o terror e abrir o caminho”. Isso era, para ele, muito, mas era tudo que puderam aqueles “garotos propensos a conquistar a glória num mês”. A “revelação do verdadeiro Brasil” não foi obra de 1922, mas da geração posterior de romancistas, os do chamado “romance de 30″ – movimento ao qual Graciliano se viu associado.

Palmeira dos Índios, cidade DO agreste alagoano ficou famosa por ter tido o escritor Graciliano Ramos como prefeito; a casa onde Graciliano morou abriga um pequeno museu com objetos do autor Foto: Nilton Fukuda/Estadão
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Os escritos reunidos em O Antimodernista Já num discurso a uma célula do PCB, denuncia a irresponsabilidade dos que se põem a “encher papel sem muita reflexão” e a “admiração palerma pelo trabalho simples”, frequentemente combinada com “desprezo ostensivo pelo trabalho complexo”. Mais ainda do que antimodernista, Graciliano parece ter sido um antirromântico – sem que ele tenha se exprimido nesses termos, creio que ele viu no modernismo um novo romantismo, e nisso identificou seu pecado maior.

Contra uma literatura recreativa de diletantes, Graciliano Ramos queria que a arte fosse praticada como um autêntico ofício, aturadamente aperfeiçoado pelo aprendizado da técnica. Ideia magistralmente apresentada na imagem do escritor como sapateiro em artigo de 1940: “Éramos retirantes, os flagelados da literatura”, escreve ele, opondo a si mesmo e aos seus companheiros os literatos dos salões. “Tomamos o costume de arrastar os pés no asfalto, frequentarmos as livrarias e os jornais e arranjamos por aí ocupações precárias e ficamos na tripeça, cosendo, batendo, grudando”, fabricando seus textos com faca e sovela: “armas insignificantes”, mas armas mesmo assim. Graciliano acreditava que nossa literatura alcançaria patamares superiores apenas quando os escritores pudessem viver exclusivamente de seu ofício e dedicar integralmente seu tempo ao trabalho artístico – as insuficiências da arte brasileira tinham, para ele, causas materiais. Sobre contos de seu conterrâneo Aurélio Buarque de Holanda, lemos que “com certeza não foram concebidos nesse estado de sonambulismo, indispensável, segundo alguns pensam, à execução da obra sublime. Fizeram-se em plena lucidez – e por isto são sublimes.” Os tipos, “construídos pacientemente, peça por peça”. Teria o êxito das histórias algo a ver com “o gênio, o sobrenatural, o estalo?” Resposta: “Nada. Somente paciência. E, no fim, clareza, simplicidade”. Não erraria, penso eu, quem dissesse a mesma coisa sobre a arte de Graciliano Ramos.

O ANTIMODERNISTA: GRACILIANO RAMOS E 1922

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ORG. THIAGO MIO SALLA E IEDA LEBENSZTAJN

EDITORA RECORD

249 PÁGINAS

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R$ 59,90 ou 38,90 (E-book)

Com o título O Antimodernista: Graciliano Ramos e 1922, a nova coletânea de textos pouco conhecidos do escritor alagoano sugere que o autor de Vidas Secas seja lembrado como um obstinado antagonista da Semana de 22 e seu grupo. São crônicas, artigos críticos, cartas e entrevistas do autor, além de outros excertos, acompanhados de esclarecedor ensaio introdutório e aparato crítico cuidadosamente elaborados pelos organizadores Thiago Mio Salla e Ieda Lebensztayn. Em comum, todos os textos tocam ou pelo menos tangenciam a Semana de Arte Moderna de 1922, seus protagonistas, ou suas reverberações. Seria o título mero lance retórico? Decerto que não. Justa ou injusta, não era nada favorável a opinião do alagoano sobre o modernismo paulista.

Quando perguntaram a Graciliano, em 1948, se ele se considerava modernista, talvez esperando ver confirmada a expectativa de que seus romances seriam de alguma forma resultantes da repercussão do movimento paulista (é o ponto de vista que me foi ensinado no colégio), a resposta foi cortante a ponto de parecer cuidadosamente preparada: “Que ideia! Enquanto os rapazes de 22 promoviam o seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão”.

Graciliano Ramos e seu retrato feito por Portinari  Foto: IEB USP

Certamente, Graciliano Ramos não era fácil de agradar: não gostava de música, era indiferente à comida, não dançava; também não ia ao cinema. Na literatura, sua preferência era pelo romance realista, de Balzac a Tolstoi. Sobre Machado de Assis, por outro lado, dizia saber que era grande, mas não gostava – opinião parecida, por sinal, com a de Mário de Andrade. Admirado como um dos maiores romancistas brasileiros nos dez ou quinze anos finais de sua vida, Graciliano ainda assim se queixava, em privado, da falta de reconhecimento – o que não o impedia de dizer à imprensa que era “cacete” quando fãs iam incomodá-lo na livraria que frequentava diariamente (para dormir, dizia) no centro do Rio. É verdade que, por trás da carranca, podia descobrir-se um homem amável. “Falsa fera”, assevera um entrevistador.

Não é difícil resumir as razões da opinião adversa de Graciliano sobre 22: o modernismo tinha muito aparato, mas pouca substância. A renovação pretendida pelo grupo de São Paulo era, na melhor das hipóteses, inócua. “Não podendo suprimir a Constituição”, o modernismo “arremessou-se à gramática”. Em críticas e entrevistas, o romancista ataca reiteradamente o cultivo afetado dos solecismos, empregados à guisa de adaptação da literatura à fala popular. Direta ou indiretamente, as invectivas do alagoano visam com frequência à figura de Mário de Andrade. Graciliano vitupera a predileção marioandradiana pelos períodos terminados em preposição e considera a gramatiquinha da fala brasileira uma “frescura” (pergunto-me se foram somente estéticos os critérios que presidiram a escolha do qualificativo). Com Oswald de Andrade, com quem tinha uma boa relação, Graciliano chegava a ser mais benevolente.

'Antropofagia', pintura de Tarsila do Amaral, que se tornou um ícone do modernismo. Graciliano foi antirromântico e viu no modernismo um novo romantismo, e nisso identificou um equívoco Foto: Acervo Estadão

Em visita a São Paulo, ainda em 1926, escreve a um amigo: “Vê se me arranjas uma gramática e um dicionário de língua paulista, que não entendo, infelizmente”, emendando o remoque com uma referência ao escasso uso da vírgula no planalto piratiningano. Em se tratando da adaptação do texto literário à fala popular, o melhor seria imitar os caboclos do sertão nordestino, onde “a língua se conserva mais pura”. “Num caso de sintaxe de regência”, declara a uma revista, “entre a linguagem de um doutor e a de um caboclo, não tenha dúvida, vá pelo caboclo”. O romancista não dispensava, por outro lado, a leitura meticulosa de dicionários. Aos que se espantassem diante desse seu hábito, Graciliano alegava com desembaraço que, como escritor, estava “obrigado a jogar com as palavras” – era preciso, portanto, “conhecer o seu valor exato”, pois “não há talento que resista à ignorância da língua”.

Uma imagem sintetiza o que o escritor pensava do movimento paulista: panelinha de “literatos por nomeação”, que “se vestem bem, comem direito, gargarejam discursos, dançam e conversam besteira com muita suficiência”. De positivo, nos modernistas, Graciliano Ramos via o fato de terem sabido “empunhar e meter fundo a picareta, espalhar o terror e abrir o caminho”. Isso era, para ele, muito, mas era tudo que puderam aqueles “garotos propensos a conquistar a glória num mês”. A “revelação do verdadeiro Brasil” não foi obra de 1922, mas da geração posterior de romancistas, os do chamado “romance de 30″ – movimento ao qual Graciliano se viu associado.

Palmeira dos Índios, cidade DO agreste alagoano ficou famosa por ter tido o escritor Graciliano Ramos como prefeito; a casa onde Graciliano morou abriga um pequeno museu com objetos do autor Foto: Nilton Fukuda/Estadão

Os escritos reunidos em O Antimodernista Já num discurso a uma célula do PCB, denuncia a irresponsabilidade dos que se põem a “encher papel sem muita reflexão” e a “admiração palerma pelo trabalho simples”, frequentemente combinada com “desprezo ostensivo pelo trabalho complexo”. Mais ainda do que antimodernista, Graciliano parece ter sido um antirromântico – sem que ele tenha se exprimido nesses termos, creio que ele viu no modernismo um novo romantismo, e nisso identificou seu pecado maior.

Contra uma literatura recreativa de diletantes, Graciliano Ramos queria que a arte fosse praticada como um autêntico ofício, aturadamente aperfeiçoado pelo aprendizado da técnica. Ideia magistralmente apresentada na imagem do escritor como sapateiro em artigo de 1940: “Éramos retirantes, os flagelados da literatura”, escreve ele, opondo a si mesmo e aos seus companheiros os literatos dos salões. “Tomamos o costume de arrastar os pés no asfalto, frequentarmos as livrarias e os jornais e arranjamos por aí ocupações precárias e ficamos na tripeça, cosendo, batendo, grudando”, fabricando seus textos com faca e sovela: “armas insignificantes”, mas armas mesmo assim. Graciliano acreditava que nossa literatura alcançaria patamares superiores apenas quando os escritores pudessem viver exclusivamente de seu ofício e dedicar integralmente seu tempo ao trabalho artístico – as insuficiências da arte brasileira tinham, para ele, causas materiais. Sobre contos de seu conterrâneo Aurélio Buarque de Holanda, lemos que “com certeza não foram concebidos nesse estado de sonambulismo, indispensável, segundo alguns pensam, à execução da obra sublime. Fizeram-se em plena lucidez – e por isto são sublimes.” Os tipos, “construídos pacientemente, peça por peça”. Teria o êxito das histórias algo a ver com “o gênio, o sobrenatural, o estalo?” Resposta: “Nada. Somente paciência. E, no fim, clareza, simplicidade”. Não erraria, penso eu, quem dissesse a mesma coisa sobre a arte de Graciliano Ramos.

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Quando perguntaram a Graciliano, em 1948, se ele se considerava modernista, talvez esperando ver confirmada a expectativa de que seus romances seriam de alguma forma resultantes da repercussão do movimento paulista (é o ponto de vista que me foi ensinado no colégio), a resposta foi cortante a ponto de parecer cuidadosamente preparada: “Que ideia! Enquanto os rapazes de 22 promoviam o seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão”.

Graciliano Ramos e seu retrato feito por Portinari  Foto: IEB USP

Certamente, Graciliano Ramos não era fácil de agradar: não gostava de música, era indiferente à comida, não dançava; também não ia ao cinema. Na literatura, sua preferência era pelo romance realista, de Balzac a Tolstoi. Sobre Machado de Assis, por outro lado, dizia saber que era grande, mas não gostava – opinião parecida, por sinal, com a de Mário de Andrade. Admirado como um dos maiores romancistas brasileiros nos dez ou quinze anos finais de sua vida, Graciliano ainda assim se queixava, em privado, da falta de reconhecimento – o que não o impedia de dizer à imprensa que era “cacete” quando fãs iam incomodá-lo na livraria que frequentava diariamente (para dormir, dizia) no centro do Rio. É verdade que, por trás da carranca, podia descobrir-se um homem amável. “Falsa fera”, assevera um entrevistador.

Não é difícil resumir as razões da opinião adversa de Graciliano sobre 22: o modernismo tinha muito aparato, mas pouca substância. A renovação pretendida pelo grupo de São Paulo era, na melhor das hipóteses, inócua. “Não podendo suprimir a Constituição”, o modernismo “arremessou-se à gramática”. Em críticas e entrevistas, o romancista ataca reiteradamente o cultivo afetado dos solecismos, empregados à guisa de adaptação da literatura à fala popular. Direta ou indiretamente, as invectivas do alagoano visam com frequência à figura de Mário de Andrade. Graciliano vitupera a predileção marioandradiana pelos períodos terminados em preposição e considera a gramatiquinha da fala brasileira uma “frescura” (pergunto-me se foram somente estéticos os critérios que presidiram a escolha do qualificativo). Com Oswald de Andrade, com quem tinha uma boa relação, Graciliano chegava a ser mais benevolente.

'Antropofagia', pintura de Tarsila do Amaral, que se tornou um ícone do modernismo. Graciliano foi antirromântico e viu no modernismo um novo romantismo, e nisso identificou um equívoco Foto: Acervo Estadão

Em visita a São Paulo, ainda em 1926, escreve a um amigo: “Vê se me arranjas uma gramática e um dicionário de língua paulista, que não entendo, infelizmente”, emendando o remoque com uma referência ao escasso uso da vírgula no planalto piratiningano. Em se tratando da adaptação do texto literário à fala popular, o melhor seria imitar os caboclos do sertão nordestino, onde “a língua se conserva mais pura”. “Num caso de sintaxe de regência”, declara a uma revista, “entre a linguagem de um doutor e a de um caboclo, não tenha dúvida, vá pelo caboclo”. O romancista não dispensava, por outro lado, a leitura meticulosa de dicionários. Aos que se espantassem diante desse seu hábito, Graciliano alegava com desembaraço que, como escritor, estava “obrigado a jogar com as palavras” – era preciso, portanto, “conhecer o seu valor exato”, pois “não há talento que resista à ignorância da língua”.

Uma imagem sintetiza o que o escritor pensava do movimento paulista: panelinha de “literatos por nomeação”, que “se vestem bem, comem direito, gargarejam discursos, dançam e conversam besteira com muita suficiência”. De positivo, nos modernistas, Graciliano Ramos via o fato de terem sabido “empunhar e meter fundo a picareta, espalhar o terror e abrir o caminho”. Isso era, para ele, muito, mas era tudo que puderam aqueles “garotos propensos a conquistar a glória num mês”. A “revelação do verdadeiro Brasil” não foi obra de 1922, mas da geração posterior de romancistas, os do chamado “romance de 30″ – movimento ao qual Graciliano se viu associado.

Palmeira dos Índios, cidade DO agreste alagoano ficou famosa por ter tido o escritor Graciliano Ramos como prefeito; a casa onde Graciliano morou abriga um pequeno museu com objetos do autor Foto: Nilton Fukuda/Estadão

Os escritos reunidos em O Antimodernista Já num discurso a uma célula do PCB, denuncia a irresponsabilidade dos que se põem a “encher papel sem muita reflexão” e a “admiração palerma pelo trabalho simples”, frequentemente combinada com “desprezo ostensivo pelo trabalho complexo”. Mais ainda do que antimodernista, Graciliano parece ter sido um antirromântico – sem que ele tenha se exprimido nesses termos, creio que ele viu no modernismo um novo romantismo, e nisso identificou seu pecado maior.

Contra uma literatura recreativa de diletantes, Graciliano Ramos queria que a arte fosse praticada como um autêntico ofício, aturadamente aperfeiçoado pelo aprendizado da técnica. Ideia magistralmente apresentada na imagem do escritor como sapateiro em artigo de 1940: “Éramos retirantes, os flagelados da literatura”, escreve ele, opondo a si mesmo e aos seus companheiros os literatos dos salões. “Tomamos o costume de arrastar os pés no asfalto, frequentarmos as livrarias e os jornais e arranjamos por aí ocupações precárias e ficamos na tripeça, cosendo, batendo, grudando”, fabricando seus textos com faca e sovela: “armas insignificantes”, mas armas mesmo assim. Graciliano acreditava que nossa literatura alcançaria patamares superiores apenas quando os escritores pudessem viver exclusivamente de seu ofício e dedicar integralmente seu tempo ao trabalho artístico – as insuficiências da arte brasileira tinham, para ele, causas materiais. Sobre contos de seu conterrâneo Aurélio Buarque de Holanda, lemos que “com certeza não foram concebidos nesse estado de sonambulismo, indispensável, segundo alguns pensam, à execução da obra sublime. Fizeram-se em plena lucidez – e por isto são sublimes.” Os tipos, “construídos pacientemente, peça por peça”. Teria o êxito das histórias algo a ver com “o gênio, o sobrenatural, o estalo?” Resposta: “Nada. Somente paciência. E, no fim, clareza, simplicidade”. Não erraria, penso eu, quem dissesse a mesma coisa sobre a arte de Graciliano Ramos.

O ANTIMODERNISTA: GRACILIANO RAMOS E 1922

ORG. THIAGO MIO SALLA E IEDA LEBENSZTAJN

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Com o título O Antimodernista: Graciliano Ramos e 1922, a nova coletânea de textos pouco conhecidos do escritor alagoano sugere que o autor de Vidas Secas seja lembrado como um obstinado antagonista da Semana de 22 e seu grupo. São crônicas, artigos críticos, cartas e entrevistas do autor, além de outros excertos, acompanhados de esclarecedor ensaio introdutório e aparato crítico cuidadosamente elaborados pelos organizadores Thiago Mio Salla e Ieda Lebensztayn. Em comum, todos os textos tocam ou pelo menos tangenciam a Semana de Arte Moderna de 1922, seus protagonistas, ou suas reverberações. Seria o título mero lance retórico? Decerto que não. Justa ou injusta, não era nada favorável a opinião do alagoano sobre o modernismo paulista.

Quando perguntaram a Graciliano, em 1948, se ele se considerava modernista, talvez esperando ver confirmada a expectativa de que seus romances seriam de alguma forma resultantes da repercussão do movimento paulista (é o ponto de vista que me foi ensinado no colégio), a resposta foi cortante a ponto de parecer cuidadosamente preparada: “Que ideia! Enquanto os rapazes de 22 promoviam o seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão”.

Graciliano Ramos e seu retrato feito por Portinari  Foto: IEB USP

Certamente, Graciliano Ramos não era fácil de agradar: não gostava de música, era indiferente à comida, não dançava; também não ia ao cinema. Na literatura, sua preferência era pelo romance realista, de Balzac a Tolstoi. Sobre Machado de Assis, por outro lado, dizia saber que era grande, mas não gostava – opinião parecida, por sinal, com a de Mário de Andrade. Admirado como um dos maiores romancistas brasileiros nos dez ou quinze anos finais de sua vida, Graciliano ainda assim se queixava, em privado, da falta de reconhecimento – o que não o impedia de dizer à imprensa que era “cacete” quando fãs iam incomodá-lo na livraria que frequentava diariamente (para dormir, dizia) no centro do Rio. É verdade que, por trás da carranca, podia descobrir-se um homem amável. “Falsa fera”, assevera um entrevistador.

Não é difícil resumir as razões da opinião adversa de Graciliano sobre 22: o modernismo tinha muito aparato, mas pouca substância. A renovação pretendida pelo grupo de São Paulo era, na melhor das hipóteses, inócua. “Não podendo suprimir a Constituição”, o modernismo “arremessou-se à gramática”. Em críticas e entrevistas, o romancista ataca reiteradamente o cultivo afetado dos solecismos, empregados à guisa de adaptação da literatura à fala popular. Direta ou indiretamente, as invectivas do alagoano visam com frequência à figura de Mário de Andrade. Graciliano vitupera a predileção marioandradiana pelos períodos terminados em preposição e considera a gramatiquinha da fala brasileira uma “frescura” (pergunto-me se foram somente estéticos os critérios que presidiram a escolha do qualificativo). Com Oswald de Andrade, com quem tinha uma boa relação, Graciliano chegava a ser mais benevolente.

'Antropofagia', pintura de Tarsila do Amaral, que se tornou um ícone do modernismo. Graciliano foi antirromântico e viu no modernismo um novo romantismo, e nisso identificou um equívoco Foto: Acervo Estadão

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Palmeira dos Índios, cidade DO agreste alagoano ficou famosa por ter tido o escritor Graciliano Ramos como prefeito; a casa onde Graciliano morou abriga um pequeno museu com objetos do autor Foto: Nilton Fukuda/Estadão

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Contra uma literatura recreativa de diletantes, Graciliano Ramos queria que a arte fosse praticada como um autêntico ofício, aturadamente aperfeiçoado pelo aprendizado da técnica. Ideia magistralmente apresentada na imagem do escritor como sapateiro em artigo de 1940: “Éramos retirantes, os flagelados da literatura”, escreve ele, opondo a si mesmo e aos seus companheiros os literatos dos salões. “Tomamos o costume de arrastar os pés no asfalto, frequentarmos as livrarias e os jornais e arranjamos por aí ocupações precárias e ficamos na tripeça, cosendo, batendo, grudando”, fabricando seus textos com faca e sovela: “armas insignificantes”, mas armas mesmo assim. Graciliano acreditava que nossa literatura alcançaria patamares superiores apenas quando os escritores pudessem viver exclusivamente de seu ofício e dedicar integralmente seu tempo ao trabalho artístico – as insuficiências da arte brasileira tinham, para ele, causas materiais. Sobre contos de seu conterrâneo Aurélio Buarque de Holanda, lemos que “com certeza não foram concebidos nesse estado de sonambulismo, indispensável, segundo alguns pensam, à execução da obra sublime. Fizeram-se em plena lucidez – e por isto são sublimes.” Os tipos, “construídos pacientemente, peça por peça”. Teria o êxito das histórias algo a ver com “o gênio, o sobrenatural, o estalo?” Resposta: “Nada. Somente paciência. E, no fim, clareza, simplicidade”. Não erraria, penso eu, quem dissesse a mesma coisa sobre a arte de Graciliano Ramos.

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