Em um dos principais contos de Pássaros na Boca e Sete Casas Vazias, da argentina Samanta Schweblin, uma jovem passa a se alimentar exclusivamente de pequenas aves, para o desespero de seus pais. Entretanto, o choque inicial - provocado pelo horror da situação - cede espaço para a possibilidade de aceitação. A narrativa exemplifica bem o tom da coletânea, que chega ao Brasil pela Fósforo, com tradução do escritor Joca Reiners Terron.
Schweblin segue a tradição do conto argentino. Em especial, de orientação fantástica, com nomes como Adolfo Bioy Casares, Borges e Cortázar. É com Silvina Ocampo, uma das principais escritoras do país Sul- americano, contudo, que podemos perceber a maior influência da seleta, no flerte com o terror cotidiano.
O livro reúne dois volumes de Samanta Schweblin: Pássaros na Boca (2009) e Sete Casas Vazias (2015). Em ambos, somos apresentados ao catálogo de personagens peculiares da obra da autora. Como fator comum, todos lidam com seus próprios fantasmas, em um misto de terror e fantástico.
A fuga ao ordinário e à ordem do real, entretanto, esconde possíveis alusões a problemas sociais contemporâneos, como a situação feminina, a fome, a desigualdade social, o vício e a saúde mental. A combinação entre um enredo fantasioso e uma minuciosa análise dos comportamentos humanos é repetida por Schweblin no romance Kentucis, de 2018, disponível no Brasil também pela Fósforo.
O horror presente nos dezoito contos de Pássaros na Boca é construído em passos lentos. Como fórmula, a autora inicia as narrativas com exposições diretas, apostando na economia verbal. Logo, o conflito é gestado. Longe de clichês do terror clássico, Schweblin instiga o incômodo do leitor, como em um thriller psicológico.
A autora argentina resgata a tradição do grotesco, no qual categorias fixas e estáveis são rompidas, com a coexistência simultânea de elementos opostos. Desse modo, Schweblin desafia as noções do mundo tal qual conhecemos, corrompendo-o com violência, espanto e desconforto. O grotesco se faz presente ainda no tom tragicômico de grande parte das peças de Pássaros na Boca.
Em Sete Casas Vazias, o procedimento retorna de maneira mais sutil. O foco está no horror da domesticidade, subvertendo a noção de lar. A autora perscruta as relações familiares, tornando-as subitamente estranhas e alvo de suspeitas. Novamente, nos deparamos com uma gama de personagens às voltas com suas manias, obsessões e mistérios.
Ainda que a análise dos espinhosos laços familiares seja um mote recorrente, em especial na literatura de autoria feminina, Schweblin se aproveita do tema de maneira diversa a de outras autoras, como Clarice Lispector. Enquanto na obra da brasileira o estranho se dá por uma sucessão de fatos banais, para a argentina ele se irrompe na sugestão de comportamentos e subjetividades desviantes.
Na primeira narrativa do volume, uma filha se vê obrigada a confrontar a mãe, obcecada pelo luxo de desconhecidos e afeita a invadir mansões e furtar seus objetos. A leitura de Sete Casas Vazias nos permite, assim como para a personagem voyeur, ter um gosto do cotidiano alheio, suas experiências e segredos.
A coletânea transita ainda entre as perdas familiares, os paralelos entre a senilidade e a infância e os percalços da vida conjugal. O destaque fica com “A respiração cavernosa”, que destoa do conjunto tanto por sua extensão, quanto pelo caráter fragmentário. Acompanhando a rotina de uma metódica idosa, o conto é uma verdadeira aula de ficção breve.
Embora Schweblin não se aproprie de radicalizações formais, a originalidade dos contos se expressa no pleno equilíbrio entre o que é revelado e o que deve permanecer oculto. A escritora argentina também demonstra um ritmo próprio no qual, logo após o clímax, nos é oferecido um desfecho aberto. Ao final, a estabilidade nunca é recuperada.
Com Pássaros na Boca e Sete Casas Vazias, Samanta Schweblin investiga o desarranjo das situações irreversíveis. Por meio do grotesco e da peculiaridade, a autora questiona comportamentos naturalizados e o conceito de normalidade. Se para o escritor Ricardo Piglia, conterrâneo de Schweblin, um conto sempre conta duas histórias, cabe ao leitor a coragem de buscar novas camadas na coletânea. Uma coisa é certa: ao fim da leitura, a noção de familiar é perdida. Resta apenas o incômodo.
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